"Isolamento?". O questionamento vem em tom de negação e poderia até soar como negligência, mas é apenas a realidade dos mais de 7 mil moradores da comunidade da Vila da Barca, uma das maiores favelas de palafitas do Brasil, localizada em Belém, capital do estado do Pará. Palafita é um tipo de habitação sustentada por estacas às margens de um rio ou qual outra área alagadiça.
A vila fica próxima a um dos bairros mais ricos da capital paraense, que conta com apartamentos que atingem o valor de mais de R$ 1 milhão.
A comunidade sofre com o descaso das autoridades públicas. Cenas inconcebíveis como crianças andando em meio ao lixo, falta de água nas torneiras, esgoto sanitário a céu aberto e ausência de energia elétrica fazem parte da rotina das pessoas.
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O Brasil de Fato esteve na Vila da Barca e foi recebido pela líder da Associação de Moradores, Inez Medeiros. Ela denuncia o abandono a que estão submetidos os moradores do local e que o problema da falta de moradia digna se intensificou com a pandemia.
"A falta de água, a inexistência do esgotamento sanitário, (...) muitas casas não têm água na torneira e muitas vezes os moradores tentam sanar isso e não conseguem. Nesse período de isolamento social, ficou ainda mais acentuado esse problema, visto que muitos precisam, pelo menos, do mínimo para se manter", afirma.
A Vila da Barca faz parte de um projeto da Prefeitura de Belém que visa acabar com as palafitas e construir um conjunto habitacional com casas de alvenaria no local. Porém, a obra está parada há cerca de 15 anos, segundo Medeiros. Ela afirma ainda que ao abandono se somam outras questões para a comunidade, como a concentração de dependentes químicos e pessoas em situação de rua.
Para além das disparidades sociais gritantes entre pessoas que moram tão próximo, o local onde foram construídos os prédios está em área de preservação permanente e terrenos da Marinha, por lei, inalienáveis.
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Em nota, a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) disse que as obras do projeto Vila da Barca estão em andamento. "Ele se divide em três etapas, onde já foram entregues 168 unidades habitacionais da Etapa I, 12 unidades da Etapa II e oito unidades da Etapa III, restando para serem executadas 78 unidades da Etapa II e 120 da Etapa III, que já possuem empresas contratadas e estão em andamento", afirma o órgão.
A equipe do Brasil de Fato visitou o local às 11h da última segunda-feira (13) e não constatou as obras em andamento.
Saneamento e covid-19
Na última quarta-feira (15), o presidente Jair Bolsonaro sancionou o novo marco legal do saneamento básico. A lei tem por objetivo ampliar a presença do setor privado na área. Atualmente, o saneamento é prestado, majoritariamente, por empresas públicas estaduais.
Apesar de parecer uma boa ideia, o Pará tem como exemplo a privatização da energia elétrica. A concessionária foi vendida em 1988 e, desde então, o aumento na conta paga pelo cidadão paraense chega a 500%.
Segundo dados do último censo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Pará tem mais de 8 milhões de habitantes.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), por sua vez, também realizada pelo IBGE, aponta que apenas 27,4% das casas da região Norte do Brasil possuem acesso à rede geral de esgotos. No Pará, esse número chega somente a 4,7% dos domicílios com esgotamento sanitário do tipo rede coletora de esgoto, que trata o material coletado.
Se hábitos básicos de higiene, como lavar as mãos com água limpa, contribuem para evitar o contágio, uma população privada de água de qualidade consequentemente estaria à mercê da doença.
Rosana dos Santos, de 24 anos, nasceu na Vila da Barca e vive na pele essa realidade. Ela mora em uma pequena casa de quatro cômodos onde mora com a mãe, o pai, três filhos, um sobrinho e mais um primo.
Apesar da gravidade da pandemia, os problemas na comunidade são tantos que parece não haver espaço para se preocupar com um vírus letal. Questionada sobre o isolamento social ou as medidas de proteção, ela foi categórica em responder que não houve prevenção.
Sua mãe, que é empregada doméstica, por sua vez, foi infectada pelo novo coronavírus, porque apesar de ser do grupo de risco, não foi liberada pela sua empregadora, que mora em Ananindeua, um município da Região Metropolitana de Belém, distante cerca de uma hora e meia de ônibus de onde ela mora.
"Ela passou bastante tempo 'arriada' e com muita dor. Às vezes ela nem encostava perto dos meninos. Eles ficavam dentro do quarto, mas, mesmo assim, ela ia trabalhar", disse.
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O Pará é atualmente um dos estados brasileiros com mais infectados e mortos pela covid-19. Segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), são quase 137 mil casos confirmados e mais de 5,4 mil, contabilizados até este domingo (19).
Proteção que vem do rio
Para muitos povos, o rio é sagrado, pois representa fartura e abundância. Os moradores da Baía do Guajará, apesar de viveram com uma série de privações, também são gratos ao rio, porque na falta de água limpa é a baía que eles usam.
A presidenta da Associação, Inez Medeiros, detalha a contradição de que quanto mais perto do rio, maiores os problemas de abastecimento de água para os moradores.
"Engraçado, porque tem uma controvérsia aí, as pessoas que estão mais próximas do rio aqui na Vila da Barca são as que mais sofrem com a falta de água potável e, com isso, eles acabam tendo que buscar uma forma de conseguir essa água e como vai ser? Através do rio. E eles acabam tendo contato com a baía, que é contaminada, cheia de dejetos, porque como as casas das palafitas não têm esgotamento sanitário, então, todo os dejetos despejados pelas residências entram em contato com esse rio e, com isso, acumulam sujeira, coliformes fecais, todos esses problemas que até de maneira leiga conseguimos identificar que são sérios", diz ela.
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Moradora da comunidade há 10 anos, Tatiana Beltrão, de 29 anos, tem quatro filhos. Ela conta que as gestões municipais mudam, mas os problemas permanecem e a água é um dos mais difíceis de administrar.
Apesar de ter uma linda vista da Baía do Guajará e bomba d'água em casa, Tatiana sofre com o abastecimento de água potável e reconhece que nem todos têm condições de comprar uma bomba e que a solução acaba sendo puxar água de um cano com balde.
Desempregada, ela cuida da casa enquanto o marido, que é soldador, recebe como salário o necessário para que eles possam sobreviver.
Tatiana recebeu a equipe da reportagem do Brasil de Fato em sua casa de madeira e foi se desculpando pelo excesso de louça na pia. Isso porque, no dia anterior, a água não havia chegado na torneira. Quando isso ocorre, o jeito é usar a água da maré. Durante a pandemia essa foi, quase sempre, a solução encontrada. "A gente chega, lava a mão, mas guarda também a água da maré e aproveita para nos mantemos asseados", resume.
Questionada se a água do rio faz mal para a sua família, ela diz que todos já se acostumaram. “Eles tomam banho constantemente com a água do rio, então, acabaram se adaptando. Eu falo que são anticorpos. Eles têm bastante anticorpos da água”, diz ela.
Angélica Lopes, 44 anos, outra moradora da comunidade, também utiliza a água do rio para realizar as atividades do dia a dia.
Próximo à casa dela, há um cano por onde ela puxa a água através de um balde. Na entrada da casa, em uma espécie de pátio, uma máquina de lavar que não funciona mais e diversos baldes servem de recipiente para armazenar água limpa.
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Angélica explica que há toda uma mecânica para poder usar a água da maré: é preciso esperar o rio encher para somente assim poder puxar a água.
"A dificuldade é essa, não dá água na torneira aqui, só se for com bomba, e quando não tem água e a maré está enchendo, a gente espera a maré encher para a gente poder pegar água para fazer as coisas, menos para lavar roupa e lavar louça”, explica.
O cuidado de esperar a maré encher ou vazar é necessário, porque quando a maré sobe, ela traz a água do rio, mas quando ela desce, ela leva todo tipo de lixo e dejetos humanos inviabilizando o seu uso pelos moradores.
Apesar de tanta dificuldade e privações de direitos, Angélica admite que não pensa em trocar seu lar na beira do rio. Ao lado dos seus recipientes cheios de água, usada para lavar louça, roupa e cozinhar, ela afirma que gostaria, apenas, que as autoridades reconhecessem que os moradores da Vila da Barca têm tanto direito quando quem mora em um apartamento de R$ 1 milhão.
Edição: Mauro Ramos e Vivian Fernandes