A ausência de ações específicas, colocou uma palavra na boca dos brasileiros: solidariedade
Por Stella Paterniani e Lauro Carvalho*
Seguimos com nossa série de textos que abordam experiências, questões e análises sobre os impactos da pandemia do novo coronavírus nas periferias. Buscamos priorizar temas que muitas vezes passam despercebidos ou não são priorizados em muitos debates, bem como reforçar a rede de pesquisa, informação e produção de conhecimento comprometida com a vida das pessoas nas periferias.
Entendemos as periferias tanto as do chamado Sul Global, como o Brasil, como as periferias dessas periferias: as regiões e pessoas vulnerabilizadas por condições produtivas estruturais e conjunturais e que, no entanto, produzem suas vidas e seus modos de conhecer e de estar no mundo para além das urgências e da miséria do presente e do possível. Este texto, terceiro da série, busca demonstrar as experiências de solidariedade e as saídas populares para superar o CoronaChoque.
Veja o primeiro texto da série, "Periferias e pandemia: desigualdades, resistências e solidariedade", e o segundo, "Os efeitos sociais da pandemia no trabalho e na renda dos mais pobres".
Solidariedade: do quê estamos falando?
O agravamento da crise econômica, política e social com a pandemia do novo coronavírus, que já estava instalada no Brasil, tem afetado especialmente as periferias. A ausência de ações específicas de prevenção e cuidado de acordo com a necessidade de cada território por parte do Estado e dos governos colocou uma palavra na boca dos brasileiros: solidariedade.
Neste sentido, é possível identificar dois tipos principais de solidariedade: solidariedade S.A. e solidariedade popular. A solidariedade S.A., como chamou Kelli Mafort, da direção nacional do MST, funciona como a caridade: vertical, a partir de uma relação entre quem tem e escolhe doar e quem não tem e só pode receber.
Essa relação entende as pessoas que recebem as doações como meros receptáculos da benevolência de quem doa. É um modo de olhar e se relacionar muito parecido com o que Paulo Freire chama de educação bancária. Sabemos, ainda, no caso das grandes corporações, que as doações funcionam como propaganda, que poderão estimular ainda mais os lucros das empresas num futuro próximo.
Já a solidariedade popular, da periferia para a periferia, é protagonizada por coletivos de cultura, movimentos populares, movimentos negros, associações de bairro, torcidas antifascistas de times de futebol, grupos de amigos e familiares que se juntam para exercitar a solidariedade horizontal.
Essa solidariedade funciona a partir de uma relação orgânica, próxima ao que Paulo Freire denomina educação popular, e entende a solidariedade, ela mesma, como uma relação: na qual todos os envolvidos participam e todos têm algo a partilhar e receber.
Duas das experiências marcantes desse tipo de solidariedade são: a Campanha Periferia Viva, constituída pelo MST, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), Levante Popular da Juventude, Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) e Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM); e a campanha “Vamos precisar de todo mundo” [inserir link pro video da campanha], composta pelas Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem Medo.
Ambas as campanhas contam com a participação de diversas organizações urbanas e do campo na arrecadação e distribuição, promovendo o encontro do alimento fruto da reforma agrária com a panela vazia da periferia e o encontro entre pessoas do campo e da cidade, fortalecendo uma rede de luta contra o atual governo e por reforma agrária e urbana popular.
Em Pernambuco, a distribuição de marmitas solidárias, que acontece diariamente no Armazém do Campo, fechou o mês de maio com a produção e distribuição de 42 mil marmitas. As marmitas solidárias também são doadas em todos os outros estados em que o Armazém do Campo está consolidado: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Pernambuco e São Luís do Maranhão.
Veja mais números das doações da Campanha Periferia Viva aqui.
Comunicar, articular, organizar, doar
Além das campanhas articuladas em âmbito nacional, como mencionadas acima, também têm destaque as ações de solidariedade popular desenvolvidas mais localmente, o “nós por nós” de cada periferia, que tentamos organizar em três tipos: comunicação, articulação e organização.
O primeiro tipo são as iniciativas visando a informação e a comunicação: podcasts, boletins, produção de informação de e para as periferias. Esse tipo de iniciativa confronta tanto as fake news, como as informações e orientações de contágio e prevenção que não levam em conta as especificidades das periferias.
Tornar o isolamento social e a máxima do “Fique em casa” como a única política de prevenção e combate à Covid-19 a ser disseminada, universaliza uma experiência específica: a de quem pode ficar em casa. Isso não leva em conta quem está tendo que sair às ruas por pressão e exigência de patroas e patrões, para colocar comida na mesa de casa.
Assim, iniciativas de informação e comunicação que levem em conta a realidade das periferias são fundamentais, tanto para informar sobre medidas de prevenção como sobre medidas do poder público relacionadas à Covid-19.
O segundo tipo de ação nas periferias pelas periferias são as articulações. A Central Única das Favelas (CUFA), presente no Brasil inteiro, montou uma logística em mais de cinco mil favelas com mais de cem mil voluntários que atuam na logística de doações e no combate às fake news. Preto Zezé destaca a centralidade das “mães da favela”, ação que prioriza o auxílio às mães solteiras nas favelas, as mais afetadas pela pandemia por não conseguirem sair de casa para trabalhar, por terem seus filhos em casa.
O terceiro tipo tem sido as experiências de organização, que tem reunido militantes, lideranças comunitárias e voluntários em torno de cursos, doações, atuação e formação política. A Organização Mundial da Saúde tem destacado a importância das lideranças comunitárias na comunicação dos riscos e do controle da epidemia, especialmente em territórios socialmente vulnerabilizados.
Uma das experiências de organização mais exemplares e efetivas de combate à pandemia vem acontecendo em Paraisópolis, na cidade de São Paulo, como mostra uma pesquisa do Instituto Pólis divulgada em 23 de junho de 2020. A comunidade de Paraisópolis organizou-se a partir da criação de presidentes de rua, voluntários responsáveis por monitorar a saúde dos moradores – cada um encarregado por 50 famílias de sua rua.
Além disso, a comunidade construiu um sistema de saúde comunitário, que transforma escolas públicas em centros de acolhimento para infectados poderem ficar em quarentena de maneira segura; contratar médicos, socorristas e enfermeiros e ambulâncias; capacitar moradores para atuar como socorristas, dentre outras coisas. Por fim, a Associação de Mulheres de Paraisópolis tem articulado campanhas de doações, atividades de geração de renda e produção de alimentação para a comunidade.
Essas são iniciativas de solidariedade popular nacionais e locais que, embora não contem com o volume de recursos financeiros e midiático da solidariedade S.A., geram grande impacto na realidade da população das periferias: comunicam, informam, fortalecem e organizam a vida do povo.
São formadas e estruturadas em relações que, diferente da forma bancária, entendem as relações como participativas: todos os envolvidos na relação acrescentam, produzem e constroem a solidariedade. Com o corona choque, o agravamento de relações precárias de trabalho e seus impactos negativos sobre a renda da população, a autonomia, a criatividade, a ousadia e a responsabilidade coletiva do “nós por nós” se mostram fundamentais para garantir a vida nos territórios constantemente vulnerabilizados pelo Estado.
Reconhecer e resgatar a solidariedade popular é apostar na infinita capacidade de ação, superação e criação do povo para seguir produzindo e reconstruindo o Brasil que queremos.
*Stella Paterniani é Pesquisadora do Observatório das juventudes em periferias urbanas, é doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Tem feito pesquisa com movimentos de luta por moradia e de juventude, sobre relações raciais, participação e modos de produção de conhecimento;
*Lauro Carvalho é Pesquisador do Observatório das juventudes em periferias urbanas, é doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas. É militante do Levante Popular da Juventude e professor de Sociologia na rede pública estadual.
Edição: Rodrigo Durão Coelho