Durante a pandemia do novo coronavírus, o aumento da violência policial nas periferias de São Paulo tem também refletido em violações de direitos contra instituições que se dedicam a proteger as vítimas e a denunciar ilegalidades. É o que aponta a realidade no bairro Sapopemba, Zona Leste da capital paulista.
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Há algumas semanas, a moradora e militante de uma das organizações que atua no bairro, Jéssica Soares*, de 60 anos, foi surpreendida invasão de sua casa por policiais sem mandato.
“A polícia já entrou na minha casa, sem máscara, sem proteção nenhuma dentro da minha casa, com a idade que eu estou, sem se preocupar se eu sou grupo de risco ou não. Eu achei isso o cúmulo, a falta de segurança da gente em tudo”, conta.
O ocorrido aconteceu durante a abordagem policial do filho de 36 anos, que estava na calçada de casa durante a tarde. Ele teve dois acidentes vasculares cerebrais (AVCs), que provocaram sequelas na locomoção e fala, e já teve passagem pela polícia.
A polícia já entrou na minha casa, sem máscara, sem proteção nenhuma dentro da minha casa.
“Eu desci correndo para ver o meu filho, o meu filho teve AVC, então ele para ficar de pé ele tem que ficar encostado ou se não ele tem dificuldade, a vizinha veio correndo para me chamar porque o que ela pensou, vai mandar ele levantar o braço pra cima e ele não vai conseguir e eles podem bater nele. E na cabeça que não pode, que é onde está o problema maior dele que é o AVC que ainda está em transformação, em risco”.
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Mesmo explicando as dificuldades do filho para os policiais e sem reações, ela relata que os policiais continuaram pressionando a abordagem do filho, que não conseguia desenvolver nenhuma palavra devido ao quadro de saúde. Segundo ela, os policiais fizeram uma série de perguntas, mas já tinham a resposta para uma parte delas.
“Eles vieram e sabiam da minha vida, ele pegou e falou assim – ‘você tem dois filhos que morreram né, do que?’ –, daí eu falei – ‘um a polícia que matou e outro a própria violência da região’. Eu fiquei muito assustada, porque como é que sabe que eu tinha filho morto, pergunta da minha formação, pergunta meu partido.”
Eu pensei comigo, imagina o povo da viela o que não sofre na mão desses caras.
Para ela, a ação violenta da PM foi uma retaliação e uma ameaça à atuação das organizações de direitos humanos, que têm denunciado a violência policial crescente no último período. Jéssica atua no acompanhamento de vítimas e familiares e demorou a denunciar a violência que sofreu ao Brasil de Fato por medo de represália. Seu vizinho, que também foi vítima da mesma abordagem deixou a casa e tudo para trás com receio da perseguição.
“Hoje eu consigo falar com você tranquila, mas foi muito violento, foi uma coisa assim. Uma coisa que dói, pessoas entrando na sua casa mexendo nas suas coisas, você tendo que provar a todo momento que você é honesta. O que eles fazem é desonesto com as famílias. Eu pensei comigo, imagina o povo da viela o que não sofre na mão desses caras, imagina, tamanha a violência que foi aqui, com meus vizinhos, que fez até um pai de família optar por sair daqui e não voltar mais. É muito triste isso, muito triste”, desabafa Soares, com a voz trêmula.
Casos de Violência
Segundo, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em abril deste ano os assassinatos cometidos por policiais militares durante e fora de serviço fez 116 vítimas no estado, um recorde de casos nos últimos 14 anos. Embora os dados de maio e junho ainda não tenham sido divulgados, no bairro de Sapopemba, as vítimas já tem nomes e sobrenomes.
“Nesse momento da pandemia, a gente viu um grande aumento na violência policial na região, tem acompanhado alguns casos. Acho que não só aqui na nossa região, mas se a gente pegar desde a questão do George Floyd nos Estados Unidos, tem acontecido muitas ocorrências aqui em São Paulo. Aqui na região do Sapopemba, em maio, a gente teve o acompanhamento de quatro óbitos de forma bem violenta da polícia, que foge do que a lei determina”, relata o representante do Centro de de Direitos Humanos de Sapopemba (CDHS), Paulo Marques*.
Entre eles, está o caso da morte do jovem negro, Juan Oliveira Ferreira, de 16 anos. Segundo testemunhas e a família, o jovem foi executado por um policial civil à paisana, dentro de casa na frente dos irmãos pequenos de 10, 8 e 3 anos. A PM teria escoltado o veículo do autor dos oito disparos que atingiram o jovem. O defensor Paulo Marques relata que a mãe do jovem chegou a ser ameaçada pela polícia e conseguiu uma medida protetiva com ajuda do CDHS .
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“A polícia tem atuado de uma forma muito violenta, tem invadido casas aqui, o relato de algumas pessoas, que têm até medo de se identificar e fazer a denúncia. Mas a gente tem relatado isso para que a gente encaminhe para as autoridades e isso não fique impune”, pontua Marques.
Esses tipos de ameaça veladas acontecem muito.
A organização também acompanha casos de abusos durante abordagem de moradores das comunidades. Em um deles, jovens sofreram agressões físicas, tiveram cabelo cortado, foram fotografados e tiveram a chave do carro levada pelos policiais. Ele destaca que esse tipo de conduta extrapola totalmente a legislação e os direitos durante a abordagem.
O representante relata que está sempre atento e em alerta no trabalho e em casa, uma vez que os moradores costumam frequentemente chamá-lo pelo nome na frente do seu portão quando há situações de violência ou abuso policial e que sempre ouve ameaças "indiretas" durante os acompanhamentos das famílias nas unidades de polícia.
“Quando a gente acompanha esses procedimentos a gente ouve algumas indiretas, 'a desse lugar aí que defende bandido'. A gente fica em alerta para o que possa vir até para gente poder tentar se resguardar. Isso acontece, principalmente, quando algumas pessoas são abordadas e as vezes elas fazem menção ao Centro de Defesa como um espaço que as acompanha. E muita vezes eles [policiais] falam ‘esse lugar ai só defende marginal, só defende quem não presta’. De certa forma, esses tipos de ameaça veladas acontecem muito”, relata.
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“Só que é uma inversão porque uma comunidade periférica não tem apoio de nenhum lugar, mais ou menos um atendimento na saúde, principalmente, agora. Quando morre um policial, um agente do Estado, a gente entende que o Estado deve dar esse apoio. Não que a gente não se preocupa, é preocupante. A gente não compactua com qualquer outra forma de violência seja com um civil ou um agente do estado”, completa.
Violência não é de hoje
Durante os mais de 25 anos de atuação na região, Paulo Marques ressalta que a violência policial não é de hoje e que há períodos em que está mais abusiva e em outros que está mais branda. Conforme o volume da força policial, também há maior repressão sob os que denunciam as violações de direitos por parte do Estado. Uma das advogadas da organização já teve que se mudar do bairro três vezes por ter a vida ameaça pelos militares.
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A diarista, Sol Oliveira, de 48 anos, sentiu na pele por anos a perseguição ao buscar justiça pelo assassinato do seu filho, de 20 anos por um policial em março de 2015. As ameaças acontecem até hoje, diante da sua atuação com outras mães que perderam os filhos em decorrência da ação da polícia com o grupo Mães em Luto da Zona Leste.
“O policial parava na minha porta e ficava olhando no portão. Uma vez eu fui ver meu filho jogando bola na rua, porque eu tenho um filho que hoje está com 17 anos, à noite, e passou uma tática. Eu fiquei de um lado com meu filho e meu cachorro e os meninos que estavam jogando ficou do outro lado. Assim que o policial passou, os meninos falaram ‘Sol entra, porque o policial passou e falou ‘olha lá ela, é ela’”, relembra Oliveira.
Ela diz que o filho de 17 anos também foi ameaçado por policiais que teriam dito: “sua mãe é bem direitos humanos, né, eu quero te pegar de madrugada eu quero ver o que os direitos humanos vão ajudar ela”.
Moradora da região desde que nasceu, a diarista chegou a instalar câmeras em decorrência da perseguição policial, e tem a história semelhante às de outras mães. “Tem mãe que teve de polícia bater na porta, de policia entrar dentro da casa, falar pra elas deixar quieto, não ir atrás de nada."
Impunidade
O representante do Centro de Defesa aponta que apesar das denúncias de assassinatos de jovens, de abordagens abusivas, perseguições e ameaças nos órgãos competentes como Ouvidoria da Polícia, Corregedoria e Ministério Público não há resultado. “O que tem ainda pra gente fazer é recorrer a esses órgãos do estado, mas eu não confio. A gente faz pra dizer que não tem se calado isso e tem acontecido, mas resultado positivo não tem”, pontua.
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Para ele, quando há investigações de policiais, os processos são “complicados, burocráticos" e muitas vezes esbarram na conivência do Poder Judiciário. A militante Sol Oliveira, que viu o caso da execução do filho ser arquivado pela Justiça, agora recorre à Organização dos Estados Americanos (OEA). “O policial mata na rua com a bala, mas o promotor também mata quando ele pede arquivamento. Então ele mata com a caneta”, afirma.
Em nota enviada ao Brasil de Fato, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP) informou que avalia e implementa permanentemente medidas para reduzir a letalidade policial e que "todas as ocorrências de morte decorrente de intervenção policial são analisadas pelas instituições, rigorosamente investigadas e comunicadas ao Ministério Público".
A SSP informou ainda que, entre janeiro e maio deste ano, mais de 80 policiais civis e militares foram demitidos ou expulsos por desvios de conduta.
*Nomes fictícios - os personagens preferiram preservar a sua identidade. A organização em que Jessica Soares atua também teve o nome preservado.
Edição: Rodrigo Chagas