“A minha irmã mais velha vendia bala no farol, a gente saia para pedir comida de porta em porta. A gente conseguiu sair desta situação foi pelo atendimento do projeto. É uma coisa que marcou muito a minha vida, porque acho que eu não seria esta mulher se não fosse ele”, o relato é da estudante Pamela Moura, de 19 anos, sobre o Projeto Meninos e Meninas de Rua (PMMR), localizado na cidade de São Bernardo do Campo, grande São Paulo.
Ela, assim como milhares de jovens do município e da região, participa das atividades no espaço que há 30 anos oferece atendimento a crianças e adolescentes, promove oficinas de cultura, educação e lazer tanto na periferia do município como na sede da entidade, que fica no centro da cidade. Mas agora o projeto corre o risco de ser despejado do local cedido pela Prefeitura desde 1989.
No dia 10 de julho, poucos dias antes de o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completar 30 anos, a organização foi surpreendia por um oficial de justiça dando um prazo de 15 dias para a desocupação do imóvel.
Sem conversa
Segundo o PMMR, a ordem foi dada pelo prefeito Orlando Morando (PSDB) que havia anunciado que iria retomar todos os prédios públicos do município. A coordenadora do projeto e socióloga, Néia Bueno, conta que existia uma negociação com a Secretaria de Assistência Social desde o final de 2019, mas o processo acabou indo para a Justiça sem conhecimento da entidade.
“Achamos que ainda estava na esfera administrativa. De repente a gente é surpreendido, o processo andou e foi para o jurídico. Quando vai para o jurídico, quer dizer, ele não quer mais negociar, não quer mais conversar nada", relata Bueno.
O ofício de despejo tem previsão de ser cumprido dia 24 de julho e, de acordo com o documento, o imóvel deve ser destinado para o Centro de Referência do Idoso, localizado hoje em uma área que a gestão destinou para a Centro de Operações Integradas (COE), que reúne as polícias militar, civil e municipal.
"Tudo que é de polícia está lá e a assistência foi ficando exprimida. Na verdade a assistência social está sem espaço nenhum. Ele precisa arranjar espaço e o espaço que ele está querendo arranjar é o nosso”, analisa a coordenadora.
Referência social
Para a entidade, por trás desta justificativa do prefeito está o viés político e “o ataque que vem a todo mundo que pensa diferente e atua com direitos humanos”, como definiu Bueno, visto que o espaço é uma referência do movimento social da região e possibilita não só o trabalho do PMMR, como também de grupos. Segundo ela, Morando chegou a de posicionar a favor da posição intolerante do governo Bolsonaro inúmeras vezes.
“É o local de referência para muitos grupos quando a gente pensa em juventude: o pessoal da Batalha da Matrix se reúne ali, do Fórum de Mulheres, do movimento de moradia, Levante Popular da Juventude, Sarau do Fórum, Cursinho pré-vestibular Uneafro, todo mundo se reúne ali. Desmontar aquilo, pra gente que é defensor dos direitos humanos, tem um impacto muito grande. É um local de referência”, pontua Bueno.
Outro impacto levantando pela socióloga é a distribuição de cestas básicas para famílias em situação de vulnerabilidade social em meio a pandemia do novo coronavírus. Cerca de 300 unidades estão sendo distribuídas pelo projeto mensalmente, uma vez que a organização paralisou as atividades presenciais para evitar a transmissão do vírus, o que, segundo, ela tem sido substancial na sobrevivência das famílias.
Direito à cultura e lazer
Além do próprio espaço da juventude. A jovem Pamela Moura destaca a importância do direito a cultura. “É uma coisa que a gente gosta, que aprende, que quer multiplicar. Quando o governo tira isso da gente, não reconhece nosso direito de acesso à cultura, lazer”, expressa ela.
A estudante frequenta o espaço desde os 8 anos de idade, quando conheceu o projeto através da música do bloco EURECA (Eu Reconheço o Estatuto da Criança e do Adolescentes) durante uma apresentação no bairro Montanhão, periferia de São Bernardo. Ela e as irmãs estavam em uma “situação precária”, como definiu ela, trabalhando para ajudar a mãe, mas a partir do contato com o projeto elas começaram a participar de oficinas de percussão e formação à crianças e adolescentes, o que, segundo ela, transformou sua vida.
“O Projeto Meninos e Meninas de Rua é a minha vida, minha identidade, eu vivo por ele e pra ele. Porque se eu sou uma mulher negra, que me aceito do jeito que eu sou, se eu não sigo padrões de beleza para ser quem eu sou, foi graças ao projeto. Então, pra mim ele é tudo, se eu estudo, se eu fui conselheira nacional dos direitos da criança e do adolescente no Conanda, foi tudo graças a ele, eu devo tudo a ele”, declara.
Resistência
A entidade atua desde 1983 na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes e foi uma das organizações à frente do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, com forte participação na criação do ECA e nas mobilizações para inserir os Direitos da Criança e Adolescente na Constituição Federal, Estadual (São Paulo) e na Lei Orgânica de São Bernardo do Campo.
O projeto tenta reverter na Justiça a ação de despejo, argumentando que o espaço é uma área de inclusão e interesse social. Além de já ter protocolado inúmeros oficios solicitando uma reunião com o prefeito Orlando Morando (PSDB).
“Ele (prefeito) tinha que ter um pouco de respeito pela nossa história e nosso trabalho, pelo menos chamar de novo oficialmente para gente conversar, acertar e de repente ele oferecer um outro lugar. Esse tipo de diálogo não teve. Fomos conversar sempre quando já estávamos com a faca no pescoço”, reforça Bueno. Ainda de acordo com o projeto, o município não ofereceu nenhum outro espaço para a organização.
A mobilização também acontece nas redes sociais através da petição Contra o despejo do Projeto Meninos e Meninas de Rua em São Bernardo do Campo.
Até o fechamento desta reportagem o Brasil de Fato não obteve retorno da Prefeitura de São Bernardo do Campo.
Atualização: Na quinta (23) a PMMR divulgou em suas redes sociais que a ordem de despejo foi suspensa por oito meses. Eles passam agora a lutar para que a decisão seja permanente. Leia abaixo o comunicado:
"JUÍZA SUSPENDEU o despejo do PMMR, em razão da Pandemia;
Em reunião nesta manhã com Procurador Geral do Município, tivemos a garantia do Prefeito suspender a desocupação por oito (08) meses; e
Procurador Geral se comprometeu agendar reunião com o Prefeito.
Mas, A MOBILIZAÇÃO CONTINUA, pela fragilidade da garantia e o curto prazo indicado pelo executivo municipal; e
QUEREMOS A PERMANÊNCIA com segurança legal na Rua Jurubatuba 1610, no Centro de São Bernardo do Campo, ESPAÇO que há 31 anos faz parte da história de caminhada e luta das Crianças, Adolescentes em situação de rua, suas famílias e comunidade."
Edição: Rodrigo Durão Coelho