Os agricultores Edelaine Voinarski e Jorge Aparecido de Deus, de São João do Triunfo, no Paraná, estavam com a produção pronta para ser enviada ao seu destino quando a pandemia da covid-19 chegou ao país. Com ela, veio a paralisação das aulas nas escolas públicas. E veio a preocupação: o que fazer com a couve, alface, acelga, escarola, repolho, brócolis e abobrinha, entre outros 50 itens produzidos na pequena propriedade, destinados à merenda escolar? O que parecia um grande problema estava solucionado 15 dias depois. Os alimentos produzidos sem o uso de agrotóxicos e outros agroquímicos logo voltaram a ser entregues à secretaria municipal de Educação por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar.
Em 23 de abril, respaldada pela Lei 13.987, sancionada dias antes pelo governo federal, a prefeitura local passou a entregar alimentos da merenda escolar aos alunos das escolas municipais cadastrados no programa Bolsa Família e para famílias em condições de vulnerabilidade social. A lei permite a distribuição de alimentos da merenda escolar às famílias de alunos da educação básica em escolas públicas.
De acordo com a secretaria de Educação, cada kit distribuído contém alimentos não perecíveis, além de carnes, frutas, verduras, legumes e panificados produzidos por agricultores familiares associados à Cooperativa Mista Triunfense Dos Agricultores e Agricultoras Familiares (Coaftril), à qual o casal de pequenos produtores é associado. As escolas estaduais do pequeno município, a 106 quilômetros de Curitiba, também receberam kits da merenda escolar. “No meu tempo, a merenda era chá com bolacha. Minha filha pegou o tempo da comida enlatada, até feijão enlatado. Graças ao Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar), as crianças hoje não estão merendando, mas se alimentando na escola”, diz Jorge.
Alimentação escolar
Em Morros, no Maranhão, a 100 quilômetros de São Luís, a agricultora assentada da reforma agrária Maria Leia Borges dos Reis trabalha com plantas medicinais obtidas de sementes e cascas. Mas o carro-chefe de sua produção são alimentos para a merenda escolar, como frutas, legumes, farinha seca e tapioca, entre outros. “Houve muita preparação, participação em palestras, formação e acabamos fazendo uma grande feira para mostrar que tínhamos muita produção em nossos quintais que não era comprada. O Pnae mudou a vida de muita gente. Mas não é só dinheiro. Queremos a saúde, o bem estar das crianças”, diz dona Leia, como é mais conhecida.
Segundo ela, em geral a prefeitura retira a produção nas propriedades, mas alguns produtores circunvizinhos a escolas fazem a entrega. Todos esses alimentos são levados para uma central de distribuição, na sede do município, e ali são divididos em cestas que serão distribuídas, a cada quinzena, para mães de família inscritas no Cadastro Único. Uma iniciativa, contou, que não é seguida por todos os municípios da região.
Exceção à regra
No entanto, essas experiências, relatadas em uma live realizada nesta terça-feira (21) pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), não prevalecem na maioria dos estados e municípios brasileiros em tempos de pandemia. Embora a Lei 11.947, de 2009, assegure que pelo menos 30% dos recursos destinados à alimentação escolar sejam destinados para comprar legumes, frutas e verduras da agricultura familiar, não é o que está acontecendo nesse período de crise.
Segundo as entidades, que lançaram na última sexta-feira a campanha Agricultura Familiar é Saúde na Alimentação Escolar (assista vídeo no final da reportagem), muitos prefeitos e governadores estão deixando de comprar de famílias agricultoras e comprando de grandes redes de supermercados. São na grande maioria alimentos ultra-processados, produzidos com matérias-primas artificiais e poucos ingredientes frescos e saudáveis, sem agrotóxicos, em um momento em que os brasileiros precisam fortalecer as defesas naturais do organismo.
Além disso, a prática traz inúmeros prejuízos. Com renda reduzida, circula menos dinheiro nos municípios em que eles vivem. Logo, distribuir alimentos desses produtores, além de favorecer a saúde, beneficia a economia local e a distribuição de renda.
Comida de verdade
De acordo com a nutricionista Vanessa Schottz, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante do FBSSAN e da ANA, a Lei 13.987 autorizou a distribuição dos alimentos da merenda escolar às famílias dos estudantes da educação básica da rede pública, cujas aulas foram suspensas devido à pandemia. E embora não tenha alterado a lei do Pnae, que visa assegurar que os estudantes tenham boa parte do cardápio constituído por comida de verdade e saudável, muitos dos gestores estão deixando a agricultura familiar de fora.
“O direito à alimentação não se limita a não ter mais fome, mas também que o alimento seja saudável. Há no país distribuição de kits e cestas básicas com alimentos industrializados, além de vouchers e cartões de compra, que beneficiam grandes supermercados. Quando se compra no varejo, paga-se mais caro, compra-se menos alimentos e de pior qualidade nutricional, e não há benefícios para a economia local”, disse à RBA.
Outro problema, segundo ela, é que muitos alunos que precisam de auxílio e amparo neste momento ficam fora do benefício. “Muitas vezes o recorte utilizado é excludente. É o caso de a família ser beneficiária do Bolsa Família. Com a redução do programa e com milhares aguardando na fila, estes são excluídos da distribuição da merenda”.