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Quantos votos valem um genocídio?

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Neste cenário de trégua, cada um pode fazer o que mais lhe interessa: Rodrigo Maia e os militares governam, Bolsonaro faz campanha eleitoral - Alan Santos/PR
Até quando erra, Bolsonaro acaba "ajudado" pela oposição e lidera corrida da direita para 2022

Nesta edição explicamos o que está por trás do suposto racha do centrão no Congresso e mostramos o movimento de acomodação das placas tectônicas em Brasília, sob o cinismo de Bolsonaro diante de quase 100 mil mortes.

1. Pandemia eleitoral. O Brasil vai superar a mórbida marca de 100 mil pessoas mortas pelo coronavírus, apenas de acordo com os registros oficiais, sem que o tamanho da tragédia provoque qualquer comoção. A morte do apresentador Rodrigo Rodrigues na semana que passou foi um dos raros momentos desde o começo da pandemia em que as redes sociais pararam para lamentar a perda de uma vítima do coronavírus, fenômeno explicado pelo carisma do apresentador, sua boa relação com colegas de profissão e por suas passagens marcantes por várias grandes emissoras, especialmente no meio do futebol.

Mas podemos contar nos dedos outros momentos de comoção coletiva. Em meio ao retorno do futebol e às pressões pela volta às aulas, o Brasil age como se nada estivesse acontecendo, como se a nossa média de mortes não estivesse acima das mil por dia. Tal calmaria é uma conquista de Bolsonaro, que está em campanha pela reeleição e segue fazendo com que o enfrentamento à pandemia não fosse sua responsabilidade, em mais uma imitação barata de Donald Trump. Como disse o sociólogo Celso Rocha de Barros em sua coluna na FolhaBolsonaro já precificou nossa morte e aposta que o genocídio não custa voto. Para que seu plano dê certo, é preciso que a sociedade não tenha nenhuma empatia sobre as vítimas e que seus seguidores sigam mobilizados em torno de teorias da conspiração.

É neste sentido que se encaixa a insistência maluca na cloroquina, agora pelo menos alvo de um pedido de abertura de CPI. “O presidente sem projeto e do 'a culpa não é minha' não precisa que a cloroquina funcione, precisa só que as pessoas acreditem que funciona. A estratégia para 2022 é dizer que, por culpa dos seus adversários, as pessoas foram impedidas de se salvar”, escreve a colunista Gabriela Prioli. A corrida pela vacina também serve às teorias da conspiração e à campanha permanente.

A falta de empatia diante de tantas mortes tem várias explicações possíveis. Do ano passado para cá, tivemos Brumadinho, Ninho do Urubu, Suzano. Tragédia após tragédia, o brasileiro normalizou a morte. Diluídas no tempo, as mortes pela pandemia não provocam o mesmo impacto de um acontecimento como uma queda de avião ou o rompimento de uma barragem. Mas, fundamentalmente, essa apatia nacional é resultado do cinismo inacreditável de Bolsonaro, que nesta semana “comemorou” a superação das 90 mil mortes montado numa égua no Piauí. Cinismo com o qual grande parte da imprensa não sabe lidar - ou passou a aceitar.

2. A volta da moral e dos bons costumes. Há algo de muito curioso acontecendo no submundo da internet. Na mesma medida em que Bolsonaro se acomoda no Congresso, como veremos abaixo, seus apoiadores nas redes sociais retomam os ataques em massa, agora tendo como alvos personalidades como Xuxa, Luciano Huck e Felipe Neto. O famoso youtuber, que tem sido uma voz crítica a Bolsonaro, teve vídeos antigos revirados e declarações falsas atribuídas a si: em dois dias, foram mais de 477 grupos e páginas do Facebook com conteúdos atacando o influenciador. Como dissemos na edição passada, de uma hora para outra voltaram com força os temas morais e os alvos dos ataques nem são pessoas de esquerda.

No caso de Felipe Neto, acusações falsas sobre pedofilia foram levantadas pela extrema-direita no Twitter, que depois passou atacar Luciano Huck, que saiu em defesa do youtuber. A apresentadora Xuxa também está sendo atacada porque irá lançar um livro infantil com temática LGBT e a empresa de cosméticos Natura também está sendo alvo de ataques após contratar Thammy Miranda, que é homem trans, para participar de uma ação relacionada ao Dia dos Pais. “Nota-se um padrão no método de destruição de reputação bolsonarista: sempre há um elemento moral. É o momento espaço-tempo no qual a máquina bolsonarista se encontra com a força das redes de WhatsApps das igrejas conservadoras”, escreve o analista Thomas Traumann. Já o próprio Bolsonaro se empenha pessoalmente para desbloquear seus aliados no Twitter, ingressando com uma ação no STF contra a decisão de Alexandre de Moraes, enquanto seus principais apoiadores tentam driblar as restrições no Twitter e bombar a rede social Parler, que tem se tornado reduto da extrema-direita.

O aumento da gritaria nas redes sociais pode ter a ver com a perda de espaço da “ala ideológica” no governo, especialmente no Ministério da Educação, mas parece ter mais relação com a única preocupação de Bolsonaro: reeleger-se em 2022 e, antes disso, manter o bolsonarismo em alta nas eleições municipais. Para isso, enquanto faz velha política em Brasília, é preciso manter a militância mobilizada e as redes sociais em permanente batalha, que é a forma como o bolsonarismo sabe se comunicar. Só que esta estratégia pode ter problemas. Como sugere Thomas Traumann em outro artigo, uma hora tanto barulho pode cansar a população, mais ou menos como está acontecendo com Donald Trump nos EUA. Além disso, como alerta o pesquisador Fábio Malini, essa ofensiva sobre personalidades como Felipe Neto aumenta a visibilidade do influenciador, que agora passa a ser conhecido não somente pelos jovens e adolescentes. Na quinta (30), ele foi entrevistado pelo Jornal Nacional e debateu políticas para a juventude com o ministro do STF Luís Roberto Barroso.

3. Clube do Bolinha. Até então escondido atrás de uma pilha de pedidos de impeachment, Rodrigo Maia, com uma única jogada, bagunçou a articulação de Bolsonaro no Congresso, aumentou o preço das alianças e de quebra antecipou as movimentações para 2022. Tudo isso com a saída do DEM e do MDB do bloco do centrão.

Vamos por partes. O centrão, formalmente, era um bloco montado para definir a formação da Comissão Mista de Orçamento e era composto por PL, PP, PSD, MDB, DEM, Solidariedade, PTB, PROS e Avante. Na prática, era um terreno pantanoso, nem um pouco ao centro, mas bem à direita e bastante fisiológico. Para impedir o impeachment, a operação de salvamento dos militares abriu espaço para a turma do toma-lá-dá-cá na Esplanada dos Ministérios.

A movimentação animou os desejos de Arthur Lira (PP) em suceder Maia, tornando-se nas últimas semanas o líder do governo na prática. O fracasso de Lira na votação do Fundeb e a saída do DEM-MDB frustram a expectativa do Planalto em ter uma base governista de 300 deputados, devendo se contentar em ter apenas o necessário para livrar Bolsonaro de um eventual impeachment. A saída também turbinou a candidatura de Baleia Rossi (MDB) para a presidência da Casa, quase na mesma proporção em que despenca a candidatura de Lira.

Enquanto isso PSL, PSC, PTB e Pros já entenderam que com o centrão de Arthur Lira desidratado é possível cobrar um preço mais alto para garantir as votações de interesse do governo e também devem deixar o antigo centrãoassim como o PSD, obrigando Bolsonaro a negociar e atender vários “centrinhos”. Segundo Vera Magalhães, o cálculo da turma de Maia é de que, até o fim do ano, Bolsonaro terá pouco de concreto a oferecer ao centrão, além da já tradicional desorganização na articulação política, o que levaria os partidos a paulatinamente voltarem para a segurança de uma aliança com Maia.

A desagregação foi comemorada por parlamentares do PT e do PSOL que consideraram como uma derrota de um governo que não terá maioria. E agradou muito a João Doria, que vê no movimento do DEM-MDB o embrião para uma coalizão em torno da sua candidatura em 2022.

4. Acossados. Outros movimentos desta mesma partida estão se dando no Judiciário, com a cruzada do procurador-geral da República, Augusto Aras, contra os membros da “força-tarefa” da Lava Jato. Na terça (28), Aras afirmou que a Lava Jato em Curitiba tem os dados de 38 mil pessoas e funciona como uma “caixa de segredos”, armazenando mais informações que todo o sistema do Ministério Público Federal, e que o lavajatismo é um desvio que precisa ser corrigido.

Para procuradores, Aras escancarou o racha dentro do MPF. Haveria uma articulação para formar uma “frente ampla” dentro da instituição para se contrapor ao discurso do PGR. De acordo com Andrei Meireles, no site Divergentes, a ação de Aras teria como objetivo romper o cerco interno que sofre no MPF e também se colocar como um anti-Moro, postura que agrada a Bolsonaro e pode ajudar numa futura indicação ao STF. A corrida pelas cadeiras que hoje pertencem a Celso de Mello e a Marco Aurélio Mello, aliás, tem provocado uma disputa para ver quem presta mais e melhores serviços ao presidente.

No placar de derrotas da Lava Jato ainda consta a decisão de Dias Toffoli de suspender as investigações da operação sobre José Serra, numa questão que parece ser mais um jogo de cena dos procuradores, já que as acusações provavelmente prescrevam, considerando que o senador tucano já tem mais de 70 anos. Deltan Dallagnol ainda pode ser afastado do comando da operação, já que o relator de um dos processos no Conselho do MPF deve pedir o afastamento do procurador, em função da tentativa de criação de uma fundação com recursos de R$ 2,5 bilhões da Petrobras.

Além disso, Aras estuda a possibilidade de dividir a Lava-Jato em quatro, reduzindo os poderes de Dallagnoll. Por fim, no âmbito do combate ao lavajatismo, deve ter agradado aos ouvidos de Bolsonaro a ideia defendida por Toffoli e Maia de criar um período de quarentena para que juízes possam se candidatar a cargos eletivos, o que na prática não se aplicaria a Sérgio Moro, um dos alvos presenciais de Bolsonaro no momento. A medida conta com a inusitada oposição de Hamilton Mourão, talvez fazendo cálculos eleitorais, talvez preocupado que a ideia atinja também nos militares.

5. Congestionamento. As expectativas de Doria e a sobrevivência da Lava-Jato, cabo eleitoral de Sérgio Moro, devem ser vistas no contexto da busca da direita por um candidato com o programa de Paulo Guedes sem que seja novamente Bolsonaro. Não à toa, o PSDB é o alvo das ações pirotécnicas e pouco efetivas da Lava Jato, como mencionamos acima no caso de José Serra e no indiciamento de Geraldo Alckmin. Considerando que Luciano Huck e quem sabe até Rodrigo Maia sonham com esta vaga, este lado da pista está bastante congestionado.

O problema deste pelotão é que à frente deles, com tranquilidade, está Jair Bolsonaro. A queda de popularidade estancou, por vários motivos elencados por Ricardo Capelli, como a continuidade do auxílio emergencial e "o veneno da dúvida sobre a eficiência do isolamento plantado em parte da população". Até quando erra, Bolsonaro acaba "ajudado" pela oposição, que assim como na votação do auxílio emergencial e do Fundeb viram sua bandeira sendo apropriada pelo derrotado. E tudo isso a um custo baixo de abandono simulado do bolsonarismo, ao qual deputados como Carla Zambelli se adaptaram muito rápido e estão todos muitos confortáveis na companhia da “Velha Política”.

Para sorte dos operadores da salvação do governo, os militares viram sua própria aprovação crescer. Nos cálculos de Alon Feuerwerker, a quantidade de aprovação de Bolsonaro nas pesquisas está próxima de sua votação no segundo turno, ou seja, ele teria uma base social de sustentação consistente e ampla o suficiente para se segurar na cadeira e ser competitivo em 2022. Neste cenário de trégua, cada um pode fazer o que mais lhe interessa: Rodrigo Maia e os militares governam, Bolsonaro faz campanha eleitoral.

Mas, antes de 2022, há 2021. Vale lembrar que o Congresso aprovou uma minirreforma política há dois anos, que já diminuiu o número de legendas com acesso ao fundo eleitoral, e que nestas eleições municipais não permitirá mais a coligação proporcional. Certamente, os resultados vão desencadear uma reorganização das legendas partidárias.

Para o pesquisador Fernando Abrucio (FGV), este movimento é parte de outro, maior, de renovação também de lideranças partidárias, onde Bolsonaro “não é o novo, é a transição desses ciclos”. Para Abrucio, o antibolsonarismo dará a tônica da campanha de 2022:  “O antibolsonarismo é maior que o bolsonarismo, isso é matemático. Mas o eleitor ainda não identificou quem será o polo antibolsonarista. Isso está em construção”. Pela esquerda, dificilmente as eleições municipais anteciparão qualquer forma de unidade para as eleições de 2022. Diferenças de tática e mesmo a necessidade de lançar candidaturas próprias para viabilizar as candidaturas proporcionais afastam as legendas de centro-esquerda umas das outras.

6. Eterna vigilância. Se a velha política à qual Bolsonaro recorreu para se segurar no cargo remete ao presidencialismo de coalizão da Nova República, uma velha política ainda mais velha que a velha política remete à ditadura militar e está em plena vigência no governo federal.

O repórter Rubens Valente revelou que o Ministério da Justiça colocou em prática em junho uma ação sigilosa sobre um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança identificados como integrantes do "movimento antifascismo" e três professores universitários. A informação causou reação de parlamentares, com pedidos de convocação do ministro André Mendonça, requerimentos de informação, um procedimento no MPF e um pedido ao STF para que o tribunal investigue o caso. Cerca de 50 entidades de direitos humanos também se manifestaram contra o dossiê do Ministério da Justiça.

Em outra frente, o site Congresso em Foco mostrou que uma nota técnica da CGU defende que a divulgação por servidores federais "de opinião acerca de conflitos ou assuntos internos, ou de manifestações críticas ao órgão ao qual pertença" em suas redes sociais são condutas passíveis de de apuração disciplinar. Parlamentares de oposição também apresentaram um pedido de informações para o ministro da CGU.  

7. Genocídio indígena. Ainda no domingo passado (26), a Rede Sindical Brasileira UNISaúde protocolou uma denúncia contra Bolsonaro por crimes contra a humanidade e genocídio no Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia. Ao longo da semana, vários especialistas vêm afirmando que a denúncia não deve passar da fase preliminar, ainda que venha a causar algum desgaste político ao Bolsonaro. Um dos motivos é a dificuldade em caracterizar a juridicamente sua omissão no enfrentamento à pandemia.

Esta é a quarta comunicação apresentada contra Bolsonaro no tribunal, que recebe centenas de documentos do tipo todos os anos, esclarece este arrazoado do Nexo Jornal. As denúncias mencionam questões como o negacionismo presidencial, o boicote às medidas de proteção, a promoção de aglomerações, a gestão do Ministério da Saúde e a campanha tresloucada pela cloroquina.

Outro ponto denunciado diz respeito à lei sobre o enfrentamento da covid-19 em comunidades tradicionais, que teve trechos vetados por Bolsonaro. Foi o caso, por exemplo, do ponto que liberava verba para a saúde indígena e do que exigia do governo a facilitação do acesso dessas comunidades ao auxílio emergencial. Em 15 de julho, entidades indígenas usaram a palavra genocídio para resumir as consequências da falta de um planejamento específico para conter o coronavírus nas aldeias.

O STF marcou para a próxima segunda (3) uma sessão extraordinária para julgar ação que questiona as medidas que o governo federal têm adotado para conter o avanço da pandemia do novo coronavírus nas comunidades indígenas. O processo foi movido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e seis partidos políticos pedindo medidas legais imediatas pelo risco real de genocídio da população indígena.  

8. Ponto Final: nossas recomendações de leitura.

Exemplos no Brasil e no mundo mostram fracasso da privatização do saneamento básico. Reportagem do Brasil de Fato demonstra como a privatização do saneamento não alcançou a universalização e levou à reestatização em mais de trezentas cidades.

Nova base eleitoral expõe contradição da guerra cultural bolsonarista. O sociólogo Roberto Dutra escreve sobre como a mudança na base social de apoio ao governo pode obrigar o bolsonarismo a enfrentar as questões econômicas e sociais e diminuir a “guerra cultural”.

Grupos religiosos se unem ao movimento antivacina na contramão da pandemia. Reportagem da Agência Pública, em parceria com outros veículos sul-americanos, levanta a agenda comum de igrejas conservadoras durante a pandemia contra direitos adquiridos e a ciência, mas com a manutenção dos dízimos.

Podcast Guilhotina #76 – Roberto Leher. O Podcast Guilhotina, do Le Monde Diplomatique, recebe o ex-reitor da UFRJ Roberto Leher, que fala sobre o avanço da mercantilização do ensino e a ascensão conservadora a partir do golpe de 2016.

E se todos os mortos por Covid?19 no Brasil fossem seus vizinhos?. Infográfico da Agência Lupa publicado no site da revista Piauí simula a evolução das mortes pelo coronavírus como se elas ocorressem todas em nossa vizinhança, fazendo comparações que tentam dar uma dimensão do tamanho da tragédia.

Quando tudo parecia ser tão distante daqui: a eclosão das narrativas sobre Covid-19. O pesquisador das mídias sociais Fábio Malini faz um histórico das primeiras menções ao coronavírus no Twitter brasileiro e a evolução das narrativas desde então.

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Edição: Rodrigo Chagas