Quase três décadas após o fim do regime segregacionista do apartheid, a repressão política e estatal contra pobres na África do Sul ainda é uma realidade. Segundo o Dossiê nº31 do Instituto Tricontinental, lançado nesta terça-feira (4), os mesmos aparatos de repressão continuam a promover uma “política de morte” contra movimentos populares e determinada parcela da população.
Os dados apresentados pelo documento retratam um cotidiano militarizado e ostensivo. Entre abril de 2012 e março de 2019, por exemplo, as forças policiais sul-africanas foram investigadas por mais de 2,8 mil óbitos, 800 casos de estupro e mais de 27 mil denuncias de tortura ou agressão. Apenas nos últimos 8 anos, mais de 230 mil pessoas foram detidas.
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A violência não foi interrompida nem mesmo com a chegada da pandemia do novo coronavírus. Entre 23 de março de 2020 até o fim de maio, 11 pessoas foram assassinadas em meio ao isolamento social. Uma 12ª pessoa foi assassinada pelo Exército.
De acordo com o Dossiê, o presente contexto dá continuidade a uma repressão política e social que por décadas coloca em xeque o fim do apartheid. Mesmo com a promulgação de uma Nova Constituição pelo então presidente, Nelson Mandela, em dezembro de 1996, que consagrou direitos liberais e protegeu a atividade política livre, um “autoritarismo colonial” seguiu em curso.
Além das centenas de vítimas fatais dos conflitos em meio à segregação racial, as disputas por recursos e poder no Conselho Nacional Africano (CNA) vitimou centenas de pessoas. Um estudo realizado em 2013 pelo pesquisador David Bruce, contabilizou 450 assassinatos políticos em KwaZulu-Natal desde o fim do apartheid.
Ao longo das últimas décadas, formas independentes de auto-organização e reivindicações populares por instâncias mais participativas de democracia foram e são frequentemente criminalizadas.
Segundo Richard Pithouse, professor associado do Wits Institute for Social & Economic Research (WiSER) e pesquisador do Instituto Tricontinental, a violência política na África do Sul se faz presente de diversas formas. Manifestantes são atingidos por tiros em protestos, assim como são alvos de assassinatos planejados.
Ativistas que se opõem à mineração em terras de comunidades tradicionais, pessoas que lutam em defesa do direito à terra, assim como aqueles que denunciam a corrupção, estão no centro da repressão.
"Não é a classe média da África do Sul que está correndo risco da violência política. São, esmagadoramente, as pessoas negras e pobres. O Estado se tornou uma ferramenta de acumulação para uma violenta, corrupta e predatória elite. Eles se opõem a qualquer um que se coloque em seu caminho”, alerta Pithouse.
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Ele explica que a perseguição política realmente encontrou um hiato em nível nacional após o fim do apartheid. Mas, em KwaZulu-Natal, a violência política deixou rastros da guerra civil com recorrentes violações.
No início dos anos 2000, porém, a repressão ressurgiu em todo país e se aprofundou, principalmente, na província sul-africana.
“A divergência de interesses entre a elite política que controla o Estado e as pessoas para quem eles governam, se aprofundaram. Em 2004, houve protestos em todo o país e eles continuaram. São uma ameaça à legitimidade daqueles que controlam o Estado. São uma ameaça às diferentes formas de acumulação”, critica o pesquisador.
De acordo com Pithouse, os sul-africanos que questionam o status quo e as decisões daqueles que estão no poder são vítimas de uma política de morte deliberada.
“O que acontece na África do Sul não é único. Não é diferente do que vemos em algumas partes da América Central, algumas partes da Índia e do Caribe. Temos um Estado que normalizou a violência entre as pessoas pobres e negras. Que usa a violência como uma forma de controle social”.
Ápice da violência
O chamado Massacre de Marikana é um exemplo histórico da violência sistemática no país. O episódio que ganhou repercussão internacional aconteceu em 16 de agosto de 2012, quando a polícia sul-africana assassinou 34 mineiros que reivindicavam aumento salarial.
Maior chacina pós-apartheid, o massacre é considerado um símbolo do colapso do acordo institucional que apaziguou a segregação racial na África do Sul e instalou a democracia com a chegada de Nelson Mandela no poder na década de 1990.
Os assassinatos em massa trouxeram mudanças significativas no cenário político, com grande impacto nas políticas de base e sindicais. Após as mortes, o tensionamento entre o CNA e seus opositores se acirraram ainda mais.
Nos meses seguintes, pelo menos doze pessoas foram mortas pela polícia, incluindo um integrante da Abahlali baseMjondolo, um movimento de moradores de favelas da África do Sul. Desde então, ativistas começaram a nomear a contínua repressão como “política de sangue”.
O esgarçamento das relações sociais e políticas dos últimos anos aumentaram a pressão pela saída de Jacob Zuma da presidência do país. O político renunciou em fevereiro de 2018, após nove anos no poder.
Coronavírus
Para além da brutalidade policial, a população mais pobre da África do Sul também é atingida pelos efeitos mais nefastos da covid-19 e pelo desamparo do Estado.
Richard Pithouse afirma que a situação já era extremamente grave antes da pandemia, com alto índice de desemprego e parcela da população sem condições básicas de moradia. Ainda segundo ele, com o lockdown, mais de três milhões de postos de trabalho foram fechados, agravando ainda mais a crise socioeconômica.
No contexto da pandemia, os sindicatos também não têm sido consultados para nenhuma tomada de decisão. Conforme registra o Dossiê n°31 do Instituto Tricontinental, o isolamento social enfraqueceu a possibilidade da organização popular, deixando as categorias de mãos atadas em relação às demissões em massa.
O Abahlali baseMjondolo, movimento de moradores da favela, também tem encontrado dificuldade para manter suas ocupações urbanas em meio à pandemia, frente ao cerco policial mesmo durante o isolamento.
Para Pithouse, a tendência é que os conflitos sociais se acirrem ainda mais na África do Sul. “Em um país com tanto desemprego e miséria massiva, perder tantos empregos é uma catástrofe. Cada trabalho era fonte de sobrevivência de 5 ou 6 pessoas. Não são só 3 milhões de pessoas que estão com a vida muito pior. Não vimos protestos em massa porque o lockdown os impossibilita. Mas parece inevitável que, em algum ponto, a revolta popular vai explodir”, analisa o pesquisador.
Edição: Rodrigo Durão Coelho