Neste início de agosto do indefinível ano de 2020, alguns sites e blogs se renderam à busca por ganhar cliques em cima da sensibilização alheia e resolveram “matar” Dom Pedro Casaldáliga sem combinar com o bispo. Logo ele, um jornalista nato, que sempre acreditou na função social da comunicação e vive entre os marginalizados, aqueles cuja morte não costuma sensibilizar a muitos.
Aos 92 anos, o lendário bispo de São Félix do Araguaia está internado com problemas respiratórios, porém seu teste de covid deu negativo. Foi transferido de São Félix para um hospital melhor em Batatais, São Paulo, em UTI aérea, na última terça-feira (4).
Certamente, seus inimigos estão na torcida para que as notícias da morte se confirmem logo, pois, apesar de ele já não estar ativo há muitos anos, sua presença física tem uma força mística profunda, emanando ao redor uma áurea de paz e vida.
Pedro Casaldáliga, tanto como jornalista, criador do jornal Alvorada, que existe há 50 anos, quanto ao longo de sua trajetória profética como bispo, sempre priorizou a vida.
Sob as botas dos generais, no início dos anos 1970, fez denúncias corajosas e apontou os caminhos do seu episcopado com a carta pastoral Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social.
Antes, já havia denunciado a escravidão no campo com o documento Escravidão e Feudalismo no Norte do Mato Grosso. Não à toa, o bispo viria, já nos anos 2000, a dar nome a um prêmio de jornalismo com a temática do combate ao trabalho escravo.
Sempre pela vida e pela liberdade, Casaldáliga sofreu as consequências de sua opção radical. Muitas vezes foi ameaçado de morte e se viu cara a cara com armas de fogo que poderiam tê-lo matado muito antes de ele ficar tão fraco e debilitado como está hoje.
Em 1976, o padre João Bosco Penido Burnier foi morto numa delegacia de Ribeirão Cascalheira, que na época se chamava Ribeirão Bonito, pelo militar Ezy Ramalho Feitosa.
Segundo diversos relatos, Feitosa acreditava estar matando outra pessoa. Dona Frutuosa, moradora antiga da cidade, diz ter ouvido do delegado: “Matamos o bispo”. Casaldáliga de fato estava lá com Burnier – estavam defendo mulheres negras que estavam sendo torturadas – mas o bispo sobreviveu.
Por ter sobrevivido, pude conhecê-lo. E pude me encantar com sua luta contra todas as opressões.
Mas não só com sua luta. Também com sua afetuosidade diante das coisas do mundo. Nunca me esquecerei do dia em que cheguei para visitá-lo em São Félix do Araguaia, em sua casa simples e sem muros, e a primeira coisa que ele me perguntou foi se eu já havia andado de barco pelo rio Araguaia. “Vai lá, menina, o sol está lindo”. Eu fui e naquele dia me deu um estalo sobre todo o significado de “ser duro e não perder a ternura”, como nos pediu Che Guevara.
Conheci Pedro, como o bispo gosta de ser chamado, em 2012, quando fui entrevistá-lo por causa de um trabalho jornalístico sobre a ditadura militar. Eu tinha 27 anos, ele tocou a mão no meu ombro ao final da entrevista e me pediu com sua voz baixa e firme: “Nunca se esqueça das causas da vida”.
Assim, resolvi contar a sua história através de suas causas. Publiquei sobre ele uma “causografia”, como ele gosta de chamar. Sou, como digo sempre, uma repórter que se apaixonou pelo entrevistado e uma pessoa que aprendeu que só o amor dá sentido à nossa caminhada.
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Neste tristíssimo 2020, eu estava transformando o meu livro sobre Pedro em peça de teatro, com a ajuda do meu querido amigo Jesus Chediak, que sugeriu que a peça deveria se chamar “Malditas todas as leis”, frase de um poema do Pedro.
Mas perdi meu parceiro de sonhos revigorantes e abraços apertados. Jesus foi levado pela pandemia. Decidi, então, que, após ter biografado o bispo, eu biografaria Jesus. E é a isso que tenho dedicado meus dias.
Ao contrário dos que querem matar, meu sonho é manter as pessoas vivas, de todos os modos possíveis, valorizando e respeitando sua memória.
Pedro ainda não foi levado de nosso convívio. Espero que quando esse momento chegar sua vontade seja respeitada e seu corpo possa ser enterrado perto dos marginalizados a quem sempre defendeu. Em São Félix do Araguaia, no cemitério dos Karajás, à beira do rio, de baixo de um pé de pequi, entre um peão e uma prostituta.
*Ana Helena Tavares é jornalista, conselheira da ABI, autora do livro “Um bispo contra todas as cercas – A vida e as causas de Pedro Casaldáliga”.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Leandro Melito e Mariana Pitasse