No dia 16 de março de 2020, Cuba contava com sete casos confirmados de covid-19 quando anunciou que receberia o navio de cruzeiro inglês MS Braemar, com mais de 600 pessoas a bordo e cinco casos confirmados da doença. O navio que há dias buscava um porto para atracar e repatriar os infectados - pese as tratativas da diplomacia britânica que sem sucesso apelava a acordos humanitários - finalmente encontrou acolhida na maior das Antilhas.
A operação foi um sucesso e os passageiros retornaram por meio de voos fretados aos países de origem. O Ministério de Relações Exteriores de Cuba emitiu uma nota ressaltando que “são tempos de solidariedade, de entender a saúde como um direito humano, de reforçar a cooperação internacional para enfrentar nossos desafios comuns, valores que são inerentes à prática humanista da Revolução e de nosso povo”.
A expressão “tempos de solidariedade” nos remete a um dos debates centrais de nossos dias: qual mundo emergirá após a pandemia e a brutal crise que se avizinha? Nitidamente os países que priorizaram a defesa da vida em detrimento da economia, tem apresentado uma melhor resposta à pandemia e cautelosamente retomam suas atividades econômicas.
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No atual estágio de evolução do capitalismo, o neoliberalismo e sua vertente política mais aclamada, a democracia liberal, encontram-se em uma encruzilhada, pois cultuando o individualismo e o consumo não foram capazes de construir justiça social e desenvolvimento sustentável. Chegamos a emergência sanitária impossibilitados de responder ao imenso desafio comum que nos corresponde como espécie, assolados pela desigualdade extrema, pelo desprezo à vida e ao meio ambiente.
Uma pequena ilha bloqueada há 59 anos, carregada de dificuldades e desafios, resiste e nos sinaliza o caminho: a solidariedade.
Há quase seis décadas, Cuba envia ao mundo seus exércitos de jalecos brancos, que levam na mão não um fuzil e sim um estetoscópio e na bagagem cuidados e esperança, deixando um rastro de generosidade por onde passam. A ilha dá uma lição, mesmo sendo um país pequeno, pobre em recursos econômicos, consegue posicionar-se como um gigante moral no cenário internacional, exibindo uma das respostas mais eficientes à pandemia em todo o mundo e enviando mais de 2 mil profissionais a cerca de 30 nações, compartilhando o que tem de melhor, sem pedir nada em troca.
Soma-se a esse número os quase 30 mil médicos e médicas que já atuavam em 60 países antes da pandemia, em várias modalidades de cooperação.
O capítulo da colaboração médica cubana é amplo, atraente e ainda está sendo escrito. Na Unidade Central de Cooperação Médica (UCCM), em Havana, uma sala da história da cooperação nos mostra que seu início oficial foi em 23 de maio de 1963, quando a primeira brigada médica composta por 56 médicos partiu rumo à Argélia, onde permaneceram por 14 meses. Um pouco antes, em 1960, somente um ano após a revolução social que levou Fidel Castro ao poder, após um terremoto no Chile, Cuba enviou um hospital de campanha com oito toneladas de equipamentos e insumos médicos além de uma brigada com 25 colaboradores da saúde.
Formação
A partir de 1961, o governo cubano deu início a entrega de bolsas para formação de profissionais e técnicos da saúde voltados aos países do sul global que se estende até os dias de hoje. A partir de 1965 até 1980, Cuba iniciou a colaboração com a luta independentista na África, em Angola, Etiópia, Congo e Argélia onde houve uma destacada participação dos médicos junto aos combatentes e ao povo africano. Nelson Mandela em diversas ocasiões agradeceu ao povo e ao líder cubano pela participação nas lutas de libertação do continente e pelo protagonismo na maior batalha na região após a segunda guerra mundial, a batalha de Cuito Cuanavale.
Ocorrida de novembro de 1987 a março de 1988, no sul da Angola, entre os exércitos de Angola (FAPLA) e Cuba (FAR) contra a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) - comandada por Jonas Savimbi - e o exército da maior potência militar regional, a África do Sul. A vitória pavimentou o caminho rumo ao fim do Apartheid, a libertação de Mandela e a independência da Namíbia. Em outubro de 1998, foi iniciado o Programa Integral de Saúde (PIS) nos países da América Central afetados pelos furacões George e Mitch, que devastou parte da costa da região, deixando um saldo de mais de 10 mil mortos.
Cuba respondeu de imediato a solicitação e manifestou sua total disposição de enviar todo o pessoal médico e auxiliar pelo tempo que fosse necessário, além de convocar os países desenvolvidos a fornecer materiais e medicamentos. No formato de cooperação horizontal - próximo a concepção brasileira de Cooperação Sul-Sul Estruturante em Saúde - o PIS permitiu não somente salvar milhares de vidas, como promover a formação de milhares de profissionais na área da saúde, contribuindo com a criação e fortalecimento dos sistemas de saúde locais.
Ainda como parte integrante do PIS, em novembro de 1999, foi inaugurada a Escuela Latinoamericana de Medicina (ELAM), que surgiu com a proposta de formar gratuitamente jovens procedentes das nações da América Central e Caribe afetadas pelos furacões George e Mitch, mas acabou acolhendo jovens carentes de mais de uma centena de países - incluindo dos Estados Unidos- e hoje após 20 anos da inauguração já conta com mais de 30 mil médicos formados.
Tive o privilégio de ser filho deste internacionalismo solidário como parte desta usina multicultural durante seis anos e meio, que nos ofereceu uma sólida base humanista e internacionalista, lançando médicos de ciência e consciência por todos os continentes para atuarem nas comunidades carentes de onde são originários.
Em 2014, o então Secretário Geral das Nações Unidas, Ban kiMoon, visitou a ELAM e declarou que tratava se da Escola Médica mais avançada do mundo. Em abril de 2003, foi criado na Venezuela o programa "Barrio Adentro", como uma experiência solidária entre os dois países irmãos, criando uma vasta rede de atenção à saúde aos mais necessitados. Em julho de 2004, Cuba deu início ao atendimento de pacientes venezuelanos, que se deslocavam até a ilha para realizar procedimentos cirúrgicos oculares, chamada “Operacion Milagro”, que ao longo dos anos se estendeu a mais 27 países do Caribe e América Latina.
O sargento do Exército Boliviano Mário Terán, que em 1967 foi o responsável por executar o guerrilheiro argentino Ernesto Guevara, El Che, 40 anos depois, na mesma Bolívia, teve sua visão recuperada devido a uma cirurgia gratuita realizada por médicos cubanos como parte do programa.
"Quatro décadas depois de Mario Terán ter tentado destruir um sonho e uma ideia, Che retorna para vencer mais uma batalha", diz o jornal cubano Granma e complementa, ”hoje um homem idoso, ele pode apreciar de novo as cores do céu e admirar os sorrisos dos seus netos”.
Referência mundial
Em 19 de setembro de 2005, foi criado o Contingente Internacional de Médicos Especializados no Enfrentamento a Desastres e Grandes Epidemias Henry Reeve. Após a passagem do furacão Katrina na cidade de New Orleans, 10 mil médicos cubanos se ofereceram para ajudar o povo norte-americano. A ajuda foi rechaçada pelo governo dos EUA e a partir daí foram enviadas brigadas a Guatemala, Paquistão, Indonésia, Bolívia, Peru, Haiti, México, China, El Salvador e Chile, com um destacado protagonismo no enfrentamento a Ebola na África.
Tive a honra de ser parte do Contingente Henry Reeve em 2010, após o terremoto no Haiti que ceifou quase 300 mil vidas, deixando mais de 1 milhão de desabrigados.
Integrando um grupo de cerca de mil médicos de mais de 30 países que se somaram as brigadas médicas que atuavam no Haiti desde 1998 como parte integrante do PIS, permanecemos durante o período de emergência pós-catástrofe atuando na reconstrução do sistema de saúde local.
Várias conquistas elevaram Cuba ao patamar de referência mundial em saúde. A construção de um sistema público e universal coordenado por uma atenção primária sólida, alcançando indicadores de países centrais. A elaboração de um amplo sistema de inovação e um complexo industrial da saúde com forte produção nacional de medicamentos e imunobiológicos através de centros de referência internacionais como o Centro de Imunologia Molecular e o Centro de Engenharia Genética. Logros alcançados baixo um desumano e ferrenho bloqueio econômico, campanhas milionárias e covardes de desinformação, difamação, sabotagem e roubo de cérebros.
Apesar da hostilidade, Cuba em nenhum momento abriu mão de princípios solidários, ajudando e defendendo os sem voz deste mundo, os excluídos, os invisíveis, e consolida nos 15 anos de atuação do Contingente Henry Reeve, a materialização dos valores que serão necessários ao mundo que virá. Será um Prêmio Nobel à solidariedade.
*Adriano Carneiro é médico formado na ELAM, em Cuba, mestre em Saúde Global pela Universidade de Barcelona e integrante do Contingente Henry Reeve.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Rodrigo Chagas e Mariana Pitasse