No governo Bolsonaro, tem se intensificado o uso das instituições para perseguir adversários
Em maio de 2016, impressionada com a perseguição perpetrada contra juízes e membros do Ministério Público que se manifestavam contra o golpe parlamentar em curso, escrevi um artigo no portal Empório do Direito intitulado "Microfísica de um golpe de Estado".
O título deveu-se à compreensão de que o desenho estudado por Michel Foucault para decifrar a microfísica do poder poderia ser utilizado como esteio teórico para assimilar o formato da persecução levada a cabo contra indivíduos e entidades contrários ao processo de impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff (PT). Aquele processo ocorria dentro da institucionalidade formal e sob uma roupagem de legalidade, com a participação ativa de autoridades investidas de comando e poder de decisão.
No governo Bolsonaro, tem se intensificado o uso das instituições do aparelho de Estado para perseguir adversários, membros de movimentos, coletivos e entidades da sociedade civil. O exemplo mais recente é a criação de dossiês contra militantes antifascistas dentro da estrutura do Estado. Um documento com quase mil nomes e informações pessoais e profissionais foi confeccionado pelo deputado bolsonarista Douglas Garcia (PSL-SP), há cerca de um mês e meio. Outro foi produzido no âmbito de uma secretaria do Ministério da Justiça há duas semanas, com mais de 500 nomes.
A outra perna desses procedimentos intimidatórios é a contínua perseguição que ocorre dentro dos órgãos de controle, Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), sob o discurso de conter a atuação “político-partidária” de juízes e procuradores, que participam de atividades em defesa do Estado Democrático de Direito.
Na última década do século XX, o número de autoridades eleitas no mundo era maior do que em qualquer outro momento da história da humanidade. Mesmo com inconsistências, e sem tentar generalizações, entendendo que as diferentes formas de autoritarismo em diferentes partes do mundo se desintegraram cada uma a seu modo, é correto afirmar que quase todos os processos se deram em transições negociadas entre segmentos opostos das classes social e política. A mobilização popular e social não prescindiu do pacto das elites.
Em alguns países, a barganha feita para possibilitar a transição para a democracia cobrou um preço demasiado alto. É o caso do Brasil, em que a Lei de Anistia, dita ampla, geral e irrestrita, significou o silêncio sobre as torturas e mortes cometidas pelo regime civil-militar, a impunidade dos criminosos e a ausência de memória coletiva sobre os fatos, possibilitando o “esquecimento” e narrativas negacionistas. O ponto importa para buscarmos caminhos de elucidação de como o país se encontra hoje sob o jugo de um governo eleito, com características claramente autoritárias.
Muitos cientistas políticos sustentam a tese de que, após a ocorrência de regimes ditatoriais, a democracia somente encontra campo fértil para se manter em países desenvolvidos, estabelecendo uma relação positiva entre governo democrático e desenvolvimento econômico com distribuição de renda, ou entre autoritarismo e pobreza. Nesse rumo, uma linha de conclusão é que o investimento na destruição de políticas públicas e na diminuição do papel do Estado na economia anda lado a lado com o fortalecimento de um poder político centralizado, sem controle social, e com eliminação das divergências.
A remontagem de sistemas de controle à moda da ditadura no governo de Jair Bolsonaro ficou ainda mais evidente com a edição do Decreto nº 10.445, de 30 de julho de 2020, que promove alterações na estrutura interna da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), fortalecendo seu papel de investigação interna por meio do novel Centro de Inteligência Nacional.
A criação de estrutura dentro do Estado brasileiro por decreto é uma evidente declaração de afirmação de intenção de tornar oficial o procedimento. A Lei nº 9.883/99, que criou a Abin, prevê que "§ 1o O Sistema Brasileiro de Inteligência tem como fundamentos a preservação da soberania nacional, a defesa do Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana, devendo ainda cumprir e preservar os direitos e garantias individuais e demais dispositivos da Constituição Federal, os tratados, convenções, acordos e ajustes internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte ou signatário, e a legislação ordinária."
Diante da obviedade jurídica de que, pelo princípio da legalidade, um decreto não pode modificar a lei a que se vincula e tampouco estabelecer parâmetros que estejam em desacordo com ela e que, portanto, a Abin não pode ter estrutura que desrespeite o direito e garantia constitucional às liberdades de organização, de manifestação e de expressão, é de se questionar a que se deve a nova estrutura e a que servirá.
Sob ditaduras formais, além do conjunto da população que, por motivos vários, possa ignorar o que ocorre no poder central, dos militantes em luta aberta ou clandestina, dos que colaboram com os regimes, há um grande contingente de cidadãos que traçam estratégias de convívio e mecanismos de sobrevivência. Essa tática implica conviver ou fingir não perceber o que acontece.
Bolsonaro já deu diversas mostras de intenção de fechar o regime, no que se convencionou chamar de autogolpe. Matéria recente da revista Piauí narra o quão perto já chegamos de que essa intenção se tornasse um ato efetivo. O formato não necessariamente será com tanques nas ruas, mas nas microestruturas de poder, como lecionou Foucault. Dessa maneira, resta saber qual a capacidade e vontade das instituições democráticas de reação, já que não pode ser aceitável fingir não saberem da existência do “rinoceronte no quarto ao lado”, como na locução de Eugene Ionesco.
Edição: Daniel Giovanaz