A ideia de ter que sair de casa depois de tanto tempo em isolamento social te causa algum receio? A volta a uma suposta normalidade assusta a ponto de você preferir continuar enclausurado? Esse sentimento tem sido comum a muitas pessoas em meio à reabertura das atividades econômicas nas principais capitais do país durante a pandemia do novo coronavírus.
Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, a psiquiatra Ana Carolina Pieretti explica que o sentimento é uma reação normal após períodos muito longos em isolamento.
O fenômeno psicológico, conhecido como Síndrome da Cabana, foi descrito pela primeira vez em 1900 nos Estados Unidos, em referência a caçadores que ficavam por muito tempo isolados durante invernos rigorosos e encontravam dificuldades de socialização no retorno à sociedade.
No contexto atípico da pandemia, a especialista afirma que é preciso estar atento às respostas individuais de cada um com a imposição do “novo normal”.
“Agora as pessoas vão adquirindo outra forma de lidar com a dificuldade de controle. Então pensam: ‘Deixa eu ficar na minha casa. Aqui eu sei que está tudo limpo, que higienizei tudo’. Sentir um pouco de ansiedade é normal ao ser confrontada com essa necessidade de sair e entrar em contato com outras pessoas, mas se isso chega a impedir completamente essa pessoa de comprar um item de necessidade ou de trabalhar, pode ser que estejamos diante de algo mais problemático”, alerta Pieretti, integrante da Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares.
A ausência de medidas governamentais e orientações que garantam segurança à população, assim como a inexistência de uma vacina contra o coronavírus, são elementos de um cenário de incertezas que, de acordo com a psiquiatra, torna o quadro ainda mais delicado.
“Podemos nos sentir muito desamparados a ter que fazer decisões individuais. Então temos que trabalhar muito na perspectiva de avaliar o risco, respeitarmos nosso tempo e elegermos prioridades”, diz a psiquiatra.
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Segundo ela, a busca por um apoio psicológico em casos mais extremos é imprescindível. “O medo e a ansiedade nesse momento são respostas absolutamente normais a uma situação de completa anormalidade. Mas, quando isso passa do ponto, nos impede de manter nossos relacionamentos, manter alguma forma de atividade produtiva, e isso perdura, temos realmente uma situação que precisa de algum cuidado”.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: É inegável que o isolamento social e a própria pandemia nos afeta psicologicamente. Mas para se referir a não vontade de sair de casa e voltar para um contexto supostamente normal, as pessoas tem falado sobre a Síndrome da Cabana. O que seria essa síndrome? A que o termo se refere?
Ana Carolina Pieretti: É um termo que estamos ressignificando na pandemia. Ele vai surgir por volta de 1900 no Norte dos Estados Unidos, se referindo a caçadores que acabavam ficando isolados, em casa, numa cabana, principalmente em invernos mais rigorosos. E no retorno à vida, em sociedade, eles sentiam medo, dificuldade de se reconectar com as pessoas. De retomar uma rotina em sociedade devido a esse isolamento por um tempo maior de isolamento durante o inverno.
Esse sentimento de fato pode acontecer agora, é algo com que é preciso se preocupar?
Que está acontecendo, está. O que vai trazer a preocupação vai depender muito de cada situação, de cada pessoa. A primeira coisa pra gente falar é que reações anormais, fora da normalidade que tínhamos antes, diante de uma situação que ninguém esperava viver, até certo ponto, isso é normal.
Falar de Síndrome da Cabana, tentar transportar daquele cenário de 1900 pra cá, não quer dizer que as pessoas que estão apresentando dificuldade de reconexão, esse medo de sair de casa, tenham distúrbio. A Síndrome da Cabana não é um transtorno mental, não é um distúrbio psicológico. A priori, isso vai ser até uma forma de lidar com a angústia desse período de isolamento que vivemos e que agora começa a passar por algumas medidas de abertura. Mas também de uma insegurança muito grande.
É uma abertura que não vem junto com medidas governamentais que garantam uma segurança maior. Não vem junto com a imunização por meio de uma vacina. Esse cenário de muitas incertezas, que faz com que cada um tenha que decidir se vai sair, se não vai sair, que risco vai arcar com esse retorno a uma normalidade que já não existe mais, é o que vai trazer essa angústia. E o quanto isso vai estar pesando pra cada pessoa é que vai nos ajudar as melhores formas de cuidar disso.
Como identificar o limite entre essa "ansiedade natural", por assim dizer, que surge no contexto da pandemia, de algo mais sério?
O medo, diante de uma ameaça, é adaptativo. É o medo de se contaminar que faz com que eu lave minhas mãos, que use máscara que mantenha o distanciamento físico das outras pessoas. Agora, quando esse medo deixa de ser um medo adaptativo, um medo que faz a gente se cuidar, e passa a ser um medo que se transforma em esquiva, em distanciamento excessivo, em paralisação, pode ser um problema. Algo patológico realmente.
A Síndrome, por si só, não vamos dizer que é patológica. Mas sabemos que no período em que estamos, começamos a ter respostas psicológicas diferentes. Elaborações diferentes das pessoas de como lidar com a quantidade de mudanças, de riscos, de perdas que fomos tendo.
Se no começo tínhamos uma ansiedade excessiva, um medo excessivo, os distúrbios de sono, agora as pessoas vão adquirindo outra forma de lidar com a dificuldade de controle. Então pensam: "Deixa eu ficar na minha casa. Aqui eu sei que está tudo limpo, que higienizei tudo". Se ao ser confrontada com essa necessidade de sair e entrar em contato com outras pessoas, sentir um pouco de ansiedade é normal. É normal ter pensamentos se vai se contaminar ou não, e isso gerar algum grau de comportamento que faça com que essa pessoa se proteja, isso está dentro da normalidade do que temos agora.
Mas, se isso chega a impedir completamente essa pessoa de comprar um item de necessidade ou de trabalhar... Se ela pediu demissão porque não quer ir para o emprego, corta todos os laços sociais, pode ser que estamos diante de algo mais problemático. Em um isolamento mais intenso, algumas pessoas podem desenvolver características de outros quadros, como transtorno de ansiedade, transtorno do pânico, um quadro depressivo. Um transtorno de estresse pós-traumático, onde esse momento da pandemia possa funcionar para essa pessoa como um evento muito traumático.
O distanciamento social ainda é a principal orientação contra o coronavírus mas muitas capitais já estão com um processo de reabertura consolidado. Enquanto alguns estão em casa, outros estão vivendo uma vida normal. Há um descompasso. Há uma forma melhor de lidar com isso, tendo em vista que a necessidade do isolamento é ainda a realidade?
Fácil não é. Mas o distanciamento não precisa ser social. É um distanciamento físico. Podemos manter contato com as pessoas, seja redes sociais, telefonemas, chamadas, seja de contato que vamos tendo nessa saída, mas que mantenhamos as orientações dos organismos de saúde a respeito do uso da máscara, do não toque no rosto, lavar as mãos, manter higienizado, manter uma distância segura das pessoas. Vai ser no dia a dia que a gente vai construir essa resposta.
Não temos uma resposta única dos governos, algo que nos ampare completamente nesse sentido. Então podemos nos sentir muito desamparados a ter que fazer decisões individuais. Então temos que trabalhar muito na perspectiva de avaliar o risco, entender quais são os riscos que temos, minimizá-los. E respeitarmos nosso tempo, elegermos prioridades. Aquilo que não for imprescindível, espere mais um pouco. Aquilo que for, se proteja.
Quais são as orientações para lidar com tantas restrições e sentimentos em meio ao cotidiano da pandemia? Há uma discussão sobre a importância da rotina...
Isso é muito importante. Isso, inclusive, faz que quem conseguiu ser efetivo no estabelecimento de uma rotina esteja reticente em sair de casa. Agora vai ser o momento de estabelecer novas rotinas, para que possamos manter hábitos saudáveis, de sono, de autocuidado também.
Sabemos que está um pouco mais difícil manter a atividade física como era antes, temos que nos reinventar, buscar aplicativos, aulas online. Mas é uma oportunidade de estarmos reinventando essa forma de cuidado, realmente.
Quando saber quando procurar ajuda?
Quando percebermos que, apesar da movimentação que estamos tentando fazer, de retorno às atividades mas isso gera ansiedade demais, gere muitos sintomas físicos, isso acabe não se dissipando, durando muito tempo... Prejudicando as atividades de trabalho, relacionamentos, talvez seja o momento de realmente procurar uma ajuda profissional.
Terão algumas pessoas que serão mais suscetíveis a não terem respostas adaptativas diante de situações que demandam demais, como é o caso da pandemia, do que estamos vivendo. Pessoas que já tem um histórico de adoecimento mental prévio, transtorno de ansiedade, pânico ou já tem um quadro depressivo, ou que sofreram perdas muito importantes, um parente em função da covid-19.. Profissionais da saúde que estão na linha de frente e que até pelo seu trabalho, estão vivenciando muito aquela situação, lidando com as perdas e diferentes processos de luto, acho que temos que ter um olhar diferente. Um suporte profissional antecipado, pensar um pouco melhor sobre isso.
A Síndrome da Cabana existe mas também é preciso tomar cuidado com alguma tentativa de diagnóstico constante? Corremos esse risco?
O medo e a ansiedade nesse momento são respostas absolutamente normal a uma situação de completa anormalidade que vivemos. Quando isso passa do ponto, que nos impede de manter nossos relacionamentos, manter alguma forma de atividade produtiva e isso perdura, temos realmente uma situação que precisa de algum cuidado. É procurar algum profissional, algum grupo de auxílio. Quando identificamos que não somos nós que estamos vivendo aquilo ali, dá uma apaziguada. Se colocarmos na internet, vamos acabar nos diagnosticando com muita coisa e nem sempre vai ser o melhor. Isso talvez gere até mais ansiedade.
Esse está sendo um momento em que todos estão aprendendo a como lidar com algo tão fora do que pensamos que poderia acontecer. Como todos estão submetidos a mesma situação, estamos vivenciando isso. Uma das primeiras coisas para pensarmos é aceitar que não temos controle sobre a situação.
Isso é algo que gera muita insegurança e fomenta o isolamento. As pessoas tentam readquirir o controle ficando em casa. Primeiro, é aceitar que podemos fazer a nossa parte. Nos higienizar, usar nossos equipamentos de proteção individual, como a máscara, manter uma distância adequada, mas que não temos controle sobre tudo.
Outra coisa que podemos pensar é que cada um respeite seu tempo. Tem pessoas que estão realmente saindo mais de casa, indo para os locais, enquanto outras estão mais reclusas e vão precisar de um tempo maior para se sentirem seguras e voltar a circular em ambientes com outras pessoas.
Se você vai no supermercado, acha que ele está muito cheio e isso desencadeia sintomas de ansiedade, sintomas físicos, começa a faltar o ar, o coração acelera, não quer dizer que você precise não ir ao mercado, já que é uma atividade que precisa ser feita. Mas você pode escolher um horário que tenha menos gente.
Isso é respeitar os limites. É não sucumbir a esse medo e a esse sentimento, gerando mais isolamento e amplificando essa angústia e essa esquiva. Começar devagarinho, mas começar. Tentar raciocinar o que vai ser importante retomar. O que é imprescindível, gerar prioridades. Mas ir aos poucos retomando e respeitando seu tempo.
E ao mesmo tempo que a pessoa vai começando a fazer essas pequenas movimentações, como andar perto de casa em um horário que não tem muita gente, o corpo tende a ter menos esse tipo de resposta. Seja mentais, de ansiedade, preocupações e pensamentos não controlados, sejam físicos, como falta de ar, palpitação, coração acelerado e náuseas.
Edição: Rodrigo Durão Coelho