A marca de 100 mil mortes e quase três milhões de casos da covid-19 no Brasil intensifica o debate sobre a necessidade de medidas mais efetivas para o isolamento social. Junto com a testagem em massa, a quarentena é considerada a ação mais efetiva para conter a propagação da doença enquanto não há vacina. Segundo projeções da plataforma Geocovid, se todas as medidas de distanciamento fossem canceladas hoje, em trinta dias o número de infectados pelo coronavírus seria superior a 7,2 milhões de pessoas.
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Usando um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre o deslocamento de pessoas entre municípios, a iniciativa avalia o impacto que o coronavírus teria em um Brasil com vida normal. Combinando recursos de geotecnologias e inteligência, o sistema também analisa as informações sobre a própria doença, em uma fórmula que leva em consideração os infectados sintomáticos, quem tem sinais leves da doença, aqueles que precisam de internação, os que chegam a ir para UTI, pacientes que se recuperam e os casos fatais. Todos os dados usados são oficiais e públicos, divulgados pelas secretarias de saúde dos estados e disponibilizados para toda a população.
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O trabalho reúne universidades, empresas de tecnologia e organizações do terceiro setor, em uma equipe multidisciplinar formada por cientistas, geocientistas, pesquisadores em epidemiologia e saúde pública, engenheiros de computação, além de programadores e analistas. Um dos integrantes desse grupo, Washington Franca Rocha, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana e pesquisador em geotecnologia, afirma que as análises podem servir de guia para definições sobre políticas de retomada da economia e ressalta que o possível cenário decorrente do fim do isolamento social serve como um alerta.
“Se você pegasse as nossas projeções iniciais e comparasse com as cidades, principalmente do interior, durante um bom tempo muitas cidades do interior não tinham nenhum caso e se duvidava que chegasse lá. Mas, nos nossos modelos a gente dizia vai chegar, porque o fluxo está aberto. Mas aí, o que aconteceu, algumas cidades começaram a criar medidas de contenção. Houve lockdown? Não. A gente não viu nenhuma cidade ser cercada. Foram criadas algumas barreiras. Mas a gente mantém a projeção sem supressão de fluxo, porque a gente precisa mostrar aos gestores e à população o que provavelmente vai acontecer se estiver tudo aberto. Vai acontecer isso aí. A projeção é essa”.
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A Geocovid também estima a demanda hospitalar que seria gerada sem as medidas de isolamento. As conclusões levam à interpretação de que o sistema de saúde do Brasil poderia chegar a um grau de total esgotamento, que nunca foi observado na história. Em trinta dias seriam necessários mais de 63,5 mil leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Atualmente, segundo dados da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), o país conta com 45.848 vagas de UTI.
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Se o cenário projetado sem o isolamento social é dramático, também é verdade que as medidas colocadas em prática por estados e municípios, desde que o vírus foi identificado oficialmente no Brasil, ajudaram a salvar vidas. Um estudo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) mostra que a quarentena reduz fortemente as taxas de transmissão. A conta feita é a seguinte: quando o isolamento cresce 1% as infecções caem 37%. Os pesquisadores da UFRRJ descobriram também que o sistema de saúde brasileiro economizou, pelo menos R$ 17,5 bilhões com as ações de distanciamento, isso só no que diz respeito aos gastos com leitos de UTI.
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Outra forma de avaliar os impactos do isolamento social no Brasil é a análise sobre o crescimento de casos da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), uma das principais consequências da covid-19. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) faz esse monitoramento e divulga os dados semanalmente no Boletim InfoGripe. No levantamento mais recente, referente ao período de 26 de julho a 1 de agosto, foi identificado sinal de leve queda nos números, mas os casos e óbitos continuam em nível considerado “acima do muito alto”. O pesquisador da Fiocruz, Daniel Villela, que atua no Observatório Covid-19 da instituição, detalha o que vem sendo observado.
“Mais de 95% do que está sendo notificado hoje (dos casos de SRAG) é covid-19. Quando a gente olha para a curva, lá no início, em março, começou a ter um crescimento muito intenso. Nas regiões Norte, Nordeste isso aconteceu muito claramente e nas regiões Centro Oeste, Sul e Sudeste essa curva dá uma freada. Então, isso é uma evidência. Naquele momento, os governos estaduais e municipais implementaram várias medidas de isolamento. A curva chega a frear um pouco e depois, mais a frente, começa a acelerar mais uma vez. Então, o que teria acontecido se não tivesse feito isolamento lá atrás? Você teria uma explosão de casos. Dado que naquele momento os serviços de saúde estavam menos preparados, você ia ter um número de óbitos bem maior. Já está sendo uma tragédia, a gente sabe, mas ia ser algo muito mais dramático.”
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A percepção se repete em outros países. Um estudo da Universidade da Califórnia (Estados Unidos), publicado em junho na revista científica Nature aponta, que pelo menos 62 milhões de pessoas poderiam ter se infectado sem restrições à circulação e a viagens em nações como China, França, Itália e Coreia do Sul. Na mesma publicação, uma pesquisa do Imperial College de Londres (Inglaterra) calcula 3 milhões a mais de mortes em 11 países europeus sem a quarentena. Entre essas nações estão Itália, Espanha, Reino Unido, Áustria, Bélgica, Dinamarca, França e Alemanha. No Brasil, com índices de desenvolvimento inferiores e problemas estruturais, que vão desde moradias precárias, falta de água tratada e saneamento básico até a informalidade dos trabalhadores, a catástrofe certamente seria potencializada.
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Para justificar a falta de um direcionamento nacional de isolamento social, o governo de Jair Bolsonaro vem dizendo que cumpre uma determinação do Supremo Tribunal Federal. Em abril, o STF decidiu por unanimidade que estados e municípios têm poder para determinar regras de isolamento. A definição respondia a ameaças do governo federal de reverter medidas de proteção à população tomadas por governadores e prefeitos. Na visão do Supremo, os entes de governo, as instâncias precisariam trabalhar coletivamente.
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No entanto, em diversas ocasiões, não só Jair Bolsonaro, como representantes do Ministério da Saúde afirmavam que estavam impedidos pela corte de tomar medidas. Em paralelo, o presidente defendia a retomada da normalidade, participava de manifestações, ia as ruas e causava aglomerações e minimizava o potencial de destruição do coronavírus. A advogada, Tânia Maria de Oliveira, integrante da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), explica que a definição do STF prevê responsabilidade compartilhada e não proíbe ou exime o governo federal de atuar nessa questão.
“O governo federal nunca, em tempo algum, fez plano de contenção da pandemia. Muito pelo contrário. A decisão do Supremo foi uma resposta ao governo federal, que queria manter comércio aberto. A responsabilidade compartilhada, juridicamente falando, significa exatamente o que a interpretação gramatical permite verificar: ela é compartilhada. Significa dizer que não existe uma hierarquia, mas a responsabilidade é de todos. Dentro da sua responsabilidade, o governo federal teria obrigação de fazer um planejamento de contenção da expansão do vírus.”
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Ainda que as medidas de isolamento sejam comprovadamente eficazes para diminuir os números de infecções e mortes pelo coronavírus e que tenham surtido determinado efeito no Brasil, elas não foram suficientes para diminuir as curvas de contágios e óbitos. Segundo dados levantados pela Inloco, startup brasileira especializada em geolocalização, o índice nacional estava em cerca de 36% no dia 06/07. De todas as unidades da federação, apenas o Acre estava com mais de 40% da população em casa. A taxa ideal para contenção da pandemia, é de no mínimo 70%.
Edição: Michele Carvalho