Coluna

É preciso enfrentar o poder das empresas transnacionais e a hipocrisia corporativa

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Durante a pandemia, a solidariedade popular se concretiza na auto-organização que identifica as necessidades de cuidado - Iara B. Facalde Pereira
A maquiagem lilás e a mercantilização da solidariedade têm em comum a manipulação de slogans

Por Tica Moreno*

Cuidar da vida exige muita solidariedade, um princípio e uma prática popular dos movimentos sociais. Durante a pandemia, a solidariedade popular se concretiza na auto-organização que identifica as necessidades de cuidado, enfrenta a pobreza e a violência, em ações articuladas por movimentos sociais que estão em luta para interromper o projeto de morte que governa o país.

Mas “solidariedade” também é uma palavra mobilizada por grandes empresas para propagandear suas iniciativas “sociais”. Há algumas semanas, mais de 50 organizações e movimentos sociais denunciaram a farsa dessa estratégia corporativa de limpar a imagem das marcas com doações no contexto da pandemia.

Empresas de todos os setores (celulose, mineração, farmacêuticas, de cosméticos ou alimentação) tem feito isso, que a rede globo veicula como “Solidariedade S/A”.

 A carta-denúncia contrapõe o marketing em torno dessas doações às práticas das empresas que, aproveitando essa crise como uma oportunidade para aumentar seus lucros, levaram a muitos trabalhadores e trabalhadoras à contaminação pela covid-19, por impedir o isolamento e não proporcionar condições de trabalho adequadas à prevenção da disseminação do novo coronavírus.

As doações ficam muito pequenas quando comparadas aos lucros e às renegociações de dívidas com o Estado.

O fato de estarmos sob um governo ultraliberal, sem políticas direcionadas ao cuidado da vida – e, ao contrário, que é responsável pelo número escandaloso das mortes provocadas pela covid-19 –, abre ainda espaço para que as grandes empresas ampliem sua legitimação como protagonistas da organização da vida.

Enfrentamos forças de extrema-direita, antidemocráticas, e precisamos ficar atentas ao autoritarismo do mercado e seus mecanismos. Mesmo maquiado e colorido, o capitalismo continua sendo baseado na exploração.

Em todo o mundo, as empresas transnacionais acumulam riqueza e poder sem precedentes. Com o objetivo de ampliar a compreensão das dinâmicas de acumulação do capital, a Marcha Mundial das Mulheres lançou a série de materiais Crítica feminista ao poder corporativo, com textos e animações em vídeo.

A negação da política e a violência contra a organização popular é parte do modus operandi das grandes empresas, basta ver o que acontece em cada território onde elas querem instalar seus megaprojetos. Quando olhamos de perto para as dinâmicas e mecanismos do poder corporativo, fica evidente que o desmonte da democracia é resultado de décadas de neoliberalismo.

Os ataques à soberania popular e as direitos dos povos se apoiam em tratados de comércio e investimento, que permitem que os investidores apresentem processos jurídicos, em tribunais de arbitragem, quando um governo implementa uma política pública que possa ser um obstáculo a seus lucros. São exemplos disso as disputas de investidores contra as políticas de saúde pública, no Uruguai, ou o direito à água, na Bolívia.

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Uma das estratégias das grandes empresas transnacionais, especialmente das marcas que são dirigidas às mulheres, é limpar sua imagem com propagandas e ações que incorporam slogans e ideias feministas. É o que chamamos de maquiagem lilás, uma hipocrisia corporativa que vai além das propagandas, e não se limita a uma ou outra empresa.

Além das propagandas que vinculam empoderamento ao consumo de um produto, essa estratégia articula o financiamento a projetos sociais, a instalação de agendas em âmbito internacional, a promoção de um ativismo de hashtags que manipula valores para engajar as pessoas com os produtos e as marcas, uma mercantilização do feminismo.

Durante a pandemia, temos visto campanhas em torno da violência doméstica de redes de supermercado (Extra, Pão de Açúcar). Novamente, enquanto no governo federal, e em muitos governos estaduais e municipais, não existem políticas efetivas de enfrentamento à violência contra as mulheres, as empresas ocupam esse espaço buscando redefinir os parâmetros da cidadania.

As empresas, por meio de seus institutos, se apresentam como protagonistas na ausência do Estado, ou como “parceiras” de políticas privatizadas. Mas é preciso sempre lembrar que as empresas são movidas pelo lucro, e essas ações fazem parte dessa engrenagem.

O lucro é resultado da exploração, mesmo quando isso é insistentemente ocultado ao longo de cadeias globais de produção. Não por acaso, a Avon e a Natura anunciam que pretendem mobilizar as milhões de revendedoras (não reconhecidas como trabalhadoras, portanto, sem direitos) como “voluntárias” de suas campanhas contra a violência.

A normalização do mercado e suas falsas soluções como referências para os graves problemas que enfrentamos é uma armadilha do poder corporativo. A maquiagem lilás e a mercantilização da solidariedade têm em comum a manipulação de palavras e slogans, dissociados de sujeitos políticos coletivos que os construíram, de perspectivas que reforcem o público e o comum.

É preciso desmercantilizar a vida e a política para derrotar o autoritarismo do mercado. E isso significa reconstruir e reforçar horizontes emancipatórios, vinculados com sujeitos políticos coletivos e organizados, orientados pela soberania popular. Enfrentar o poder das empresas transnacionais – nos territórios, nos discursos, nas políticas – é condição para construir alternativas de esquerda que coloquem a sustentabilidade da vida acima do capital.

Tica Moreno é socióloga, integra a equipe da SOF e é militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Edição: Leandro Melito