O PT dos anos oitenta já deixou de existir. Partidos não são imutáveis. Tampouco são eternos.
Na casa de Kautsky, assistimos à festa que eles deram em homenagem a Ledebour quando ele completou sessenta anos. Entre os convidados, havia cerca de dez de nós, estava Augusto Bebel, que estava prestes a completar oitenta anos. Foi o momento em que a festa estava atingindo seu auge. A unidade tática parecia perfeita. Os velhos registraram os triunfos e olharam com confiança para o futuro. Foi nessa festa íntima que tive a oportunidade de conhecer Bebel e sua esposa, Julia. Todos os presentes, sem excluir Kautsky, estavam pendurados nos lábios do velho Bebel assim que ele falou uma palavra, e muito menos naquele velho. seco parecia feito de paciente, mas vontade indomável (...) Em seus pensamentos, em seus discursos, em seus artigos, Bebel não desperdiçou uma única energia espiritual que não foi posta diretamente a serviço de um fim prático. E foi isso que deu uma beleza e um sentimento especiais à sua personalidade política. Bebel representava aquela classe que só pode dedicar as horas livres para estudar, que sabe o que cada minuto significa, e assimila o essencial, mas apenas isso. Uma figura humana incomparável à sua. Bebel morreu durante a conferência de paz de Bucareste, entre a guerra dos Balcãs e a guerra mundial. Ouvi as notícias na estação de Ploischti, na Romênia. O que seria a socialdemocracia sem ele? Lembrei-me das palavras de Ledebour, que descreviam a vida interior do Partido Social Democrata Alemão nestes termos: Vinte por cento radicais, trinta por cento oportunistas; o resto vota com Bebel .
(Leon Trotsky)
A decisão do Diretório Nacional do PT de referendar, na cidade de Belford Roxo na Baixada Fluminense, uma Frente Ampla até com bolsonaristas deixou abismada, espantada, e estupefata muita gente na esquerda, dentro e fora do PT. Mas, convenhamos, embora chocante, não é propriamente, uma surpresa.
O cálculo eleitoral “realista” subverte tudo. Princípios, programa, estratégia. Prepara “vitórias” eleitorais que não são, somente, derrotas políticas. São uma desmoralização estratégica.
A Frente Política e o Programa
Enfim, está previsto um recurso em próxima reunião, e a decisão pode, eventualmente, até ser revertida. Mas ela indica uma tendência de evolução histórica. A questão de fundo remete aos dilemas do destino do PT. E este tema deve interessar toda a esquerda.
O PT passou por muitas crises ao longo de uma história de quarenta anos, e se transformou em cada uma delas. Mudar é deixar de ser, é um vir a ser. O PT dos anos oitenta já deixou de existir. Partidos não são imutáveis. Tampouco são eternos, imperecíveis, imortais.
Já vimos muitos partidos no Brasil que são “cadáveres insepultos”: continuam a existir, mas são agrupamentos de mortos, feridos e mutantes, como os zombies. Um partido só tem os seus dias contados quando perde a capacidade de ser expressão de sua base social, ou seja, um instrumento útil.
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Mas, enquanto não surgir um partido ou movimento que ocupe o seu lugar, um partido pode agonizar, lentamente, desde que consiga preservar sua influência. Ainda que derrotado, o PT provou, irrefutavelmente, que estava vivo em 2018, e levou Fernando Haddad ao segundo turno. Qualquer análise honesta deve reconhecer a resiliência do PT, ainda que enfraquecido.
Comparações históricas podem ser estimulantes. As semelhanças entre as histórias do SPD alemão, antes da Primeira Guerra Mundial e o PT do Brasil são, evidentemente, muito menores do que as especificidades e diferenças. Ainda assim, o papel de Bebel no SPD lembra muito o lugar de Lula no PT até a eleição de 2002. Mas tiveram destinos distintos.
Bebel morreu antes da amargura de ver o SPD sucumbir à pressão patriótica, quando do início da Primeira Guerra em 1914, e muito antes do SPD chegar ao governo na República de Weimar, e ajudar a enterrar a revolução alemã, que teria mudado a história do mundo.
Lula chegou ao governo, e articulou, pessoalmente, as condições de concertação com a classe dominante para manter a governabilidade durante dois mandatos. Elegeu Dilma Rousseff sua sucessora e viu, mesmo depois das jornadas de 2013, a sua reeleição.
Nesse longo processo, Lula cometeu muitos erros políticos e pessoais. Terminou sendo denunciado, condenado e preso pela Lava Jato. Mas não deixou de manter uma impressionante autoridade.
A Alemanha na virada do XIX para o século XX era um dos dois países centrais em maior dinâmica de industrialização, enquanto o Brasil da virada do XX para o século XXI é um país dependente na semiperiferia, em estagnação há uma década; o SPD alemão foi oposição durante décadas ao governo do Kaiser, enquanto o PT chegou aos governos locais e estaduais em tempo, relativamente, precoce; os desdobramentos da crise do SPD foram precipitados pela derrota do Império alemão na guerra, e a vitória da revolução russa, que abriu o caminho para a formação de um partido comunista na Alemanha que era o maior e mais importante do mundo.
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O partido alemão foi a seção mais importante da Segunda Internacional. Quando ocorreu a mudança qualitativa na natureza da direção do SPD alemão? Quais teriam sido, afinal, os fatores decisivos da sua adaptação política e degeneração burocrática é um tema pouco explorado.
A direção de Bebel e Kautsky foi a mais prestigiosa de seu tempo, e não sem razão. Entretanto, os processos degenerativos das organizações do movimento operário demonstraram-se, historicamente, de uma rapidez não só surpreendente, como irreversível.
A visão mais comum, e também a menos convincente, é a que considera que a agonia do SPD coincide com o dia da votação dos créditos de Guerra, ou seja, agosto de 1914.
Uma esquerda com instinto de poder
Mas o salto de qualidade já deveria ter ocorrido com uma enorme antecedência. Só isso pode explicar o isolamento dos internacionalistas, depois reagrupados no Spartakusbund entre os membros do partido. A hipótese mais interessante é a que destaca que o processo de burocratização teria se iniciado nos sindicatos, e só posteriormente se estendido ao partido.
Por um certo período, os sindicalistas formaram um bloco com as outras tendências reformistas, pressionando a direção do partido, e até desafiando a sua orientação em público. Este processo se iniciou nos sindicatos ainda nos anos 90 do XIX e, quando dos debates sobre as greves de massas, depois de 1905, já estava cristalizado. No SPD, o salto de qualidade parece ter ocorrido a partir de 1912, quando a bancada de deputados do SPD no Reichtag passou a ser a maior do Parlamento.
A crise do PT se agudizou no contexto da última década, quando não só não assistimos à vitória de revoluções, mas, ao contrário, testemunhamos uma ofensiva reacionária, e acumulamos derrotas. O significado do diktat contra Lula, impedindo a recuperação dos seus direitos políticos, é simples.
Autocrítica não diminui ninguém, engrandece
Uma esquerda implantada na classe operária e entre os mais oprimidos não pode voltar ao poder nacional no Brasil. Não importa se for semimoderada, hipermoderada, criptomoderada. Claro que, muito menos, se for radical. Durante a guerra fria existia um ultimato semelhante contra os partidos comunistas nos países da área de influência dos EUA. Agora não é somente contra o PT. É contra toda a esquerda.
Ainda assim, um lento, porém, contínuo processo de transição geracional, e de reorganização da esquerda tem favorecido uma relativo fortalecimento do PSOL, que não é somente eleitoral. É muito possível que, em algumas das capitais do Sudeste, talvez até em grandes cidades do sul do país, o PSOL se posicione nas eleições de 2020 na frente do PT. Que impacto estes resultados poderão ter no interior do PT?
A votação sobre a tática em Belford Roxo não corresponde à votação dos créditos de guerra, evidentemente. Mas, tampouco, é somente uma decisão paroquial. É mais um sintoma de um longo, lento e triste processo. A boa notícia é que há uma altiva reação defensiva. Ela merece admiração.
Edição: Leandro Melito