Há seis meses, Elias* trabalha como entregador na Pedidos Já e viaja diariamente da cidade de San Martín até Buenos Aires com sua moto, pouco mais de 22 quilômetros. São 12 a 16 horas de trabalho por dia. "Aqui na Argentina, nenhum dos aplicativos nos reconhece como trabalhadores. Somos supostos colaboradores", conta.
Com a pandemia do novo coronavírus, os aplicativos de entrega faturam como nunca: suas atividades cresceram cerca de 400% só na Argentina. Os principais no país são Pedidos Já, Glovo, Rappi e Uber Eats, e estabelecem como valor base aos entregadores cerca de 60 pesos por entrega (aproximadamente R$ 4). "Há dois anos, não reajustam o valor, e a inflação já chega a 120%. Nossos salários vão à miséria", relata Elias, também integrante do movimento do setor, a Agrupação de Trabalhadores de Entrega (ATR, na sigla em espanhol).
Além disso, não há qualquer seguro por acidente ou roubo nem qualquer direito trabalhista aos entregadores de apps. Não é só Elias que viaja à capital federal todos os dias pelas maiores demandas de clientes de aplicativos, a cidade também é uma região mais segura em relação à província de Buenos Aires, onde fica San Martín, que faz parte das conhecidas "zonas liberadas". Tratam-se de zonas onde roubos acontecem em acordo com a polícia local.
A situação dos trabalhadores do setor se agravou com uma lei na capital federal, que exige ter domicílio na cidade para exercer a atividade no território. Esse é o ponto mais crítico da lei, aprovada pelo governador Horacio Larreta, do Proposta Republicana (PRO), de centro-direita, contra todas as reivindicações do setor. Também exige que os trabalhadores usem um uniforme, sem atribuir os custos à empresa.
Além disso, só durante a quarentena, já foram pelo menos sete trabalhadores mortos em acidentes no país enquanto exerciam suas atividades para os aplicativos de entregas.
Trabalhadores organizados
Os entregadores já mobilizaram diversos protestos e convocaram greves para reivindicar a regularização da atividade. Eles lutam pelo aumento de 100% do pagamento base por entrega, seguro por acidente de trabalho e melhores condições, como a possibilidade de rejeitar pedidos sem a punição do bloqueio definitivo – algo similar a estar demitido. O setor já dialoga com trabalhadores de outros países e, no início deste mês, foi publicada uma declaração internacional de entregadores de aplicativos.
O primeiro app da modalidade de entregas a chegar na Argentina foi o Pedidos Já, em 2009, e enfrentou conflitos sindicais na categoria, inicialmente representada pela Associação Sindical de Motociclistas, Mensageiros e Serviços e pelo sindicato de Serviços Rápidos CCT. Diante da exigência pela regularização do trabalho, a empresa adotou uma manobra, contratando alguns entregadores por meio período.
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Em 2015, as portas se abriram a novas empresas de aplicativos, o que se refletiu em um crescente número de ciclistas e motociclistas com a mochila da Glovo pelas ruas de Buenos Aires. Em um ano, 10 mil entregadores se registraram no aplicativo da empresa espanhola. Em 2018, foi a vez do colombiano Rappi. No mesmo ano de sua inauguração no país, mais de 20 mil pessoas se inscreveram no aplicativo para trabalhar, contando com essa fonte como principal ou única de sustento.
Com a concorrência, a Pedidos Já passou a dispensar massivamente seus funcionários contratados. Foram cerca de 400 demissões que impulsionaram a criação do primeiro movimento de entregadores de aplicativos, a ATR. Em meio ao boom dos aplicativos no país, também surgiu, em 2018, o primeiro sindicato do setor, a Associação de Trabalhadores de Plataformas (APP, na sigla em espanhol).
O paraíso dos apps
Secretário da Central Autônoma de Trabalhadores da Argentina, Daniel Jorajuría aponta como o sucesso desses aplicativos se dá pela facilidade que encontram nos países onde atuam. "O risco não é a tecnologia, mas os governos que agem como inimigos dos trabalhadores", aponta, destacando os casos de Brasil, Paraguai e Uruguai. "Na Argentina, a força popular conseguiu tirar o governo de direita [referindo-se a não reeleição de Mauricio Macri, em 2019]. Agora, devemos construir iniciativas para proteger os trabalhadores", conclui.
É como a lei do teletrabalho: ou se regula ou as lei são impostas pelo mercado.
Daniel Jorajuría
O diálogo entre centrais sindicais que atuam há anos no país e as organizações mais recentes de entregadores é fundamental para alavancar o debate a âmbitos legislativos e conformar um projeto. Isso inclui atualizar as terminologias que a modalidade exige. "Estar trabalhando é estar conectado. Estar geograficamente em um lugar é estar geolocalizado. Ser demitido é ser bloqueado", aponta Daniel.
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População excluída e precarizada
A população migrante conforma grande parte dos trabalhadores de aplicativos em Buenos Aires, especialmente venezuelanos. Mais de 70% dos migrantes na Argentina trabalham no mercado informal, não trabalham ou sobrevivem de bicos. Além disso, 60% dos migrantes teve sua relação laboral interrompida durante a pandemia, segundo levantamento da Agenda 2020.
Nos últimos anos, e em paralelo ao crescimento do trabalho por aplicativos, observou-se uma maior dificuldade dos migrantes ao documento nacional de identidade do país, o DNI. "Falar de acesso ao mercado trabalhista da população migrante exige falar também da dificuldade de regularização dessa população", destaca Mariana Marques, diretora de Política e Justiça Internacional da Anistia Internacional da Argentina. A exigência de dois anos de residência também deixou a muitos migrantes fora do benefício de 10 mil pesos (cerca de R$ 700) lançado pelo governo nacional na pandemia.
A próxima mobilização pela regularização dos trabalhadores de aplicativos de entrega será no dia 31 de agosto, em Buenos Aires. A expectativa é que as problemáticas que atravessam e impactam o setor e as pessoas desempregadas entrem na pauta do atual governo, do presidente Alberto Fernández, peronista do Partido Justicialista, com políticas que garantam os direitos trabalhistas da categoria e outorgando os documentos e ajudas sociais correspondentes aos migrantes.
*O entrevistado optou por não expor seu sobrenome.
Edição: Vivian Fernandes