De acordo com dados do Fórum de Segurança Pública, o Brasil teve ao menos 5.804 pessoas mortas por policiais em 2019 – 1,5% a mais em relação ao ano anterior, quando foram registradas 5.716 vítimas (sem contar os números de Goiás em ambos os anos). No mesmo período, 159 policiais foram assassinados – número 51% menor em relação a 2018.
O Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência do Fórum, aponta que a partir dos 15 anos, um jovem preto no Brasil tem quase três vezes mais chance de ser assassinado do que um jovem branco. A taxa de mortalidade entre a juventude preta chega a 86,34 para cada 100 mil pessoas. Relação que entre os brancos cai para 31,89.
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Dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram, que em 2018, policiais civis e militares cometeram mais suicídios do que morreram em serviço. Foram 104 suicídios no país, o equivalente a dois policiais tirando a própria vida a cada semana.
Para além dos números a sensação de insegurança é latente em toda a sociedade brasileira. Mas, para o cientista político, antropólogo e pesquisador em segurança pública, Luiz Eduardo Soares, o caminho as decisões do governo Bolsonaro de liberação de armas e excludente de licitude são meios de “colher tempestade, insegurança e o fim das polícias”.
“Se permitimos que a polícia haja com ilegalidade na ponta, a desmontamos e acabamos investindo na insegurança pública, essa é a história do Rio de Janeiro, por exemplo”, aponta.
Ex-secretário nacional de Segurança Pública durante o início do governo Lula da Silva (PT) e autor de dezenas de livros, entre eles Elite da Tropa, que deu origem ao filme Tropa de Elite, e Desmilitarizar - Direitos Humanos e Segurança Pública, lançado em 2019, ele foi um dos alvos do dossiê produzido pelo Ministério da Justiça contra os policiais antifascistas e foi citado como um “formador de opinião do grupo”.
Para Soares, o “procedimento ilegal e inconstitucional” se trata de mais um passo de Bolsonaro para acuar militantes os que defendem a democracia, além de ser uma auto declaração do fascismo do governo.
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“Na medida que esses engenheiros do caos, arautos do autoritarismo definem movimentos, militantes e intelectuais antifascistas como um problema, isso parece sugerir que eles próprios se põe no alvo das críticas e da repulsa do antifascismo. Portanto se identificam eles mesmos com o fascismo, o que é uma espécie de declaração enviesada e paradoxal de culpa. Como é possível tornar o antifascismo como uma ameaça? Nossa Constituição é antifascista, a população brasileira, os segmentos majoritários que se afirmam pela democracia são evidentemente antifascismo”, pontua o especialista.
Luiz Eduardo Soares conversou com o Brasil de Fato sobre o significado desse dossiê e sobre os caminhos para a segurança pública no país. Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato - Qual o significado desse dossiê?
Luiz Eduardo Soares - Eu acho que é uma triplice mensagem. Em primeiro lugar, uma mensagem de núcleos do governo aos seus apoiadores, ativistas, aqueles que têm saído às ruas defendendo bandeiras antidemocráticas. Muitas vezes assumidamente fascistas, o recado que se passa tacitamente é de que "estamos aqui no front interno e vocês sigam a luta nas ruas e redes'. Aqueles que estão no front interno de instituições a nossa bandeira está erguida, vocês têm nossa autorização e nosso apoio para seguir adiante nesse mesmo caminho.
Segundo é uma mensagem para as instituições - as instituições para aqueles que são alvo desse tipo de investigação sigilosa. Significa uma autorização tácita para que sejam perseguidos. Quase que uma convocação para que estas instituições excluam, persigam e atentem, vigiem estas pessoas que são marcadas.
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A terceira mensagem é dirigida à sociedade no sentido mais amplo, a opinião pública. Vejam o que acontece com quem ousa criticar ou se opõe ao fascismo e ousa dize-lo, afirma-lo e levanta bandeiras de Direitos Humanos, etc. Isso é o que acontece, nós vamos proceder investigações clandestinas à margem das leis, da Constituição, do ministério Público, da Justiça com consequências que se pode imaginar. Então é uma tentativa de acoamento, é uma ameaça à democracia, à livre troca de ideias e opiniões. Há uma triplice função para ruas e redes, para as instituições e opinião pública e todas elas muito negativas.
Você entende que esse dossiê sigiloso de opositores retoma práticas ligadas ao período da ditadura militar?
E isso não só lembra a ditadura, mas restaura elementos da ditadura que lembram um casamento perverso. De um lado nós temos o SNI [Serviço Nacional de Inteligência] e de outro lado, práticas de tortura e de intimidação. Os porões não são filhos bastardos do SNI, são irmãos siameses. Não há um sem o outro. Se não estamos agora diante de uma ameaça de recriação do SNI, temos um grau de ameaças muito mais graves que se pode transformar numa realidade prática.
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Sempre houve tortura no Brasil contra negros e pobres. Durante a ditadura houve a extensão e ampliação do foco de atuação das forças repressivas e foram incluídas no alvo os opositores do regime quaisquer que fossem suas classes sociais. Depois da redemocratização, nós voltamos à velha e histórica perseguição brasileira de jovens e pobres nas práticas policiais conhecidas. Agora nós temos a renovação com a restauração do aspecto mais abrangente que era típico da ditadura.
Junto com SNI vem sempre a prática da intimidação física, vem os porões. E para concluir devo lembrar, à despeito da reversão nesse momento do quadro original, porque o governo agora está na defensiva, nós temos a notícia de que Bolsonaro acaba de criar um Centro Nacional de Inteligência despindo de qualificações muito objetivas e de controles internos claros. Com funções nebulosas. Esse é o terreno propício que acaba fecundando os ovos das serpentes doentes.
Atualmente há também uma ameaça desta ação prática, que resgata atuações da ditadura militar?
Sem dúvida, nós temos já um processo em curso que tem sido contínuo, lamentavelmente, mesmo durante o período democrático que é o genocídio de jovens negros, pobre e de periferia. Isso está em curso ininterruptamente, mas na medida em que o autoritarismo fascista chega ao governo, esse processo se intensifica, qualquer limite tende a ser superado e transgredido, porque há um autorização tácita, uma sinalização positiva para que a brutalidade policial letal prospere e siga sua marcha.
Isso está bastante evidenciado, por exemplo, na proposta do excludente de licitude, que o ex-ministro Sérgio Moro, apresentou ao Congresso Nacional endossado pelo presidente, que incluía em seu programa de governo a proposta do excludente de licitude. Essa proposta em si mesma é uma sinalização para que as execuções extrajudiciais se realizem ainda com mais intensidade.
Por outro lado essa disposição do governo de flexibilizar o acesso às armas também sinaliza uma convocação para que a sua militância se arme.
Nós temos as milícias, que são como aliadas do bolsonarismo, mas há também as milícias ideológicas que tendem a se formar no vaco da regulação legal e da ação de defesa democrática por partes das instituições.
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Então é uma situação muito perigosa: de um lado o excludente de licitude dando as policias um passaporte para matar e de outro lado um convite ao armamentismo. Isso é extremamente grave e configura um quadro ameaçador para a democracia.
Essa segurança pública que o governo Bolsonaro coloca tem uma efetividade prática para a população, para os policiais e para a sociedade brasileira como um todo?
Seria interessante que nós recuássemos um pouco para compreender a conformação da arquitetura institucional da segurança pública, do modelo policial para que seja possível o entendimento mais amplo, inclusive, das suas práticas.
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O que acontece em 1988? Nós celebramos o pacto democrático expresso em uma Constituição, foi a nossa primeira constituição democrática. É de fato um momento histórico pra nós, precioso.
Ocorre que essa transição foi uma transição negociada, nós não ajustamos as contas pelos crimes perpetuados pela ditadura. Nós varremos as cinzas para baixo do tapete e saltamos direito da barbárie para a reconciliação, sem um momento de verdade para usar a expressão de Mandela. Ele sempre pensava que, antes da reconciliação, era indispensável um momento de verdade mesmo que não houvesse punições a torturadores e assassinos da ditadura, mas era necessário esse momento para que uma ruptura fosse simbolicamente fixada, politicamente instaurada para que o negaciosismo se tornasse impraticável do ponto de vista da História. Fosse absolutamente necessário para todos reconhecer o que ocorreu no Brasil, o banho de sangue que foi a ditadura.
Bom, nós não passamos por momento de verdade, por justiça de transição nós transitamos diretamente para o momento subsequente e o caráter negociado dessa transição, que, aliás, replica a história das transições por cima sempre do elitismo autoritário do capitalismo brasileiro, nessa negociação os militares atuante do regime ainda estavam fortes naquele momento. Eles impuseram algumas barreiras ao processo democrático de transição e reservaram uma área, a área da segurança pública.
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Essa área ninguém toca, essa área não vai ser tangida pela democratização, ela se torna uma espécie de reserva ecológico política, uma ecologia institucional muito peculiar. Nós herdamos a arquitetura institucional e o modelo policial da ditadura. Quando nós herdamos estruturas organizacionais com elas vêm a agarrados naturalmente valores, visões de mundo, processo de formação de identidade, que são dissociáveis de práticas, emoções, circuitos afetivos, símbolos.
Um parenteses: a ditadura não inventou a violência policial a violência policial caminha ao lado da História brasileira, que é a do racismo estrutural e das desigualdades de classe profundas. A ditadura reorientou, redefiniu e instrumentalizou a violência policial que é parte da nossa História.
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Nós então recebemos, no nosso período democrático, a presença de um outro tempo, que passa a ser contemporâneo do nosso tempo democrático. Há uma contemporaneidade de tempos distintos por assim dizer, há uma falta de sincronia: o tempo da ditadura se estende, avança se infiltra no momento democrático, no nosso tempo de democracia, que é um tempo de conquistas de direitos, avanços significativos, de afirmação de movimentos sociais de novas demandas e expectativas, governos populares, inclusive.
Mas isso tudo convivendo com esse passado que continua contemporâneo, portanto não é passado propriamente.
Isso significa que nós convivemos não só com o genocídio de jovens negros e pobres, que é fruto, e só pode ter ocorrido com a conivência do Ministério Público, da Justiça, de governos e de segmentos da sociedade, porque nós estamos todos no mesmo conjunto.
Esse núcleo de reserva estratégica do nosso passado ditatorial era bolsonarista antes de Bolsonaro.
Bolsonaro encarna essa cultura corporativa e dá corpo e coloca a instituição no campo político. Assim nós podemos entender, não estou generalizando, a começar ai pelos Policiais Antifascismo, mas há uma pluralidade enorme. Os seus mecanismos de reprodução estão ativos e contingentes numerosos são educados, socializados e submetidos muitas vezes à lavagens cerebrais e disciplinas que os conduzem nesse processo.
Nesse sentido essa reserva ecológico institucional política é um Cavalo de Troia do passado que invade a democracia, cuja as portas do inferno estão abertas com a chegada de Seu Messias no poder.
No seu livro Desmilitarizar: Segurança Pública e Direitos Humanos e na sua trajetória como pesquisador, o senhor coloca algumas alternativas e caminhos para a segurança pública. Quais são eles?
Nós temos que desmilitarizar a polícia ostensiva que hoje é a Polícia Militar, não faz nenhum sentido que ela seja polícia militar, para que sirva a natureza militar da instituição policial ostensiva. Um fato vai ajudar compreender o que eu estou falando.
Uma promotora corajosa e importante do Rio de Janeiro resolveu apresentar um TAC (Termo de Ajuste de Conduta) ao governo do estado há alguns anos. Pra que ela apresentasse a proposta de mudanças, tinha que mostrar os problemas e ouvir as denúncias que provinham dos policiais, particularmente policiais militares contra a sua instituição.
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Ela começa o relatório dizendo o seguinte: “visitei os policias militares nas UPPs A, B, C e os encontrei trabalhando em situações análogas a escravidão”. Parece um exagero retórico, mas não é. Eles trabalhavam a 50ºC à sombra, o ar condicional estava quebrado, sem condições sanitárias faziam as suas necessidades no mato, comiam nas biroscas da comunidade, quase por favor, com coletes a prova de bala vencidos, amedrontados e acuados sem saber a que se destina o fato de estarem ali, sem orientação sem norte, sem orientação, sentindo isolados e abandonados e, mais que tudo, em jornadas que eram absolutamente desumanas. Isso conduz ao alcoolismo, drogas, angústias, sofrimento psíquico, utilização de remédios tarja preta.
A natureza militar desta instituição passou a servir como instrumento de super exploração da força de trabalho, eles não podem dizer um ai, não podem exitar no cumprimento da ordem, não podem se insubordinar como canais de organizações de expressão ou sindicais, não podem judicializar o problema. Qualquer hesitação, à critério do superior, pode se transformar numa punição, inclusive, com privação de liberdade.
A situação é de uma imensa gravidade e traz benefício para a instituição do Exército, das Forças Armadas, porque é essa verticalidade rígida e centralização decisória que permitem a adoção de um método próprio para estas instituições. É o pronto emprego, que é o deslocamento de contingentes humanos e imateriais de modo convergente a essa metodologia aplicada na guerra.
Essas são instituições criadas para a proteção da soberania e do território nacional por meio, inclusive, bélico, do limite. Portanto, se justifica e se compreende esse formato.
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Transferir esse formato para uma polícia é absolutamente injustificável, porque a forma de organização tem que se adequar à finalidade a qual se destina a instituição. Quando se trata de uma polícia, se tem como missão institucional a proteção da cidadania, as violações, a garantia de direitos.
Nada disso requer esse tipo de metodologia e estrutura organizacional. Ao contrário, nós precisamos de flexibilidade adaptativa, de responsabilização na ponta, de mais horizontalidade e isso é o avesso do que nós temos.
O segundo ponto é que nós precisamos que cada instituição policial cumpra o conjunto das funções policiais faça o trabalho ostensivo e o trabalho investigativo. Só no Brasil nos temos esta divisão, uma polícia escreve preposições, adjetivos, substantivos e a outra escreve advérbio e os verbos, etc.
Nunca vão ser capazes de produzir um paragrafo em comum. Há conflito e não há cooperação, essa divisão não existe e não funciona, segundo 70% dos próprios operadores da segurança pública.
O terceiro ponto que tem que ser enfrentado é a duplicidade das policias, nós precisamos de carreira única. Nós precisamos de uma porta única, que é a grande bandeira da massa policial, da Policia Civil e Militar para que as pessoas que entrem se submetam aos cursos internos, processos seletivos, e tenham oportunidade de crescer de forma irrestrita, dependendo da sua trajetória.
Então essas três bandeiras, a desmilitarização, carreira única em cada unidade policial, ciclo completo em todas as instituições. Elas estão presentes na PEC 51, que o Senador Lindberg Farias (PT/RJ) apresentou em 2013 ao Senado Federal além de tantas outras que também foram apresentadas, não só por mim pessoalmente, mas por tantos e tantas outras ao longo de muitos anos.
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Nós temos propostas concretas e objetivas, elas resolvem? Não. Mas elas são um anteparo e uma possibilidade de renovação, que tem que vir acompanhada de uma outra formação, uma orientação distinta visando superar e reduzir o papel que as policias tem tido, de racismo estrutural e desigualdade para que as policiais passem a não ser mais o mecanismo de reprodução desses males brasileiros.
E também tem a questão da legalização das drogas?
Isso é absolutamente indispensável, porque a guerra as drogas é um inferno, não é uma guerra as drogas mas aos pobres. Está implicando a criminalização da pobreza e quando isso se casa com o nosso modelo policial é um desastre completo. O que acontece é que a polícia que está na rua 24h, mas ela é constitucionalmente proibida de investigar. Ela está nas ruas, instigada a produzir, entende-se por produção prisão, tem que prender, mas não pode investigar. O que ela faz? Prende em flagrante. Quais são os crimes passíveis de prisão em flagrante? Alguns não são os mais importantes.
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Um instrumento fundamental para isso é a Lei de Drogas. A polícia então joga a rede, não então para capturar traficantes internacionais que mobilizam fortunas. Isso exige muita investigação que ela não pode fazer, mas captura os pequenos varejistas, que têm sido presos aos milhares, sem prática de violência, porte de armas, vínculo com organização criminosa e são lançados nos infernos dessas prisões. Já temos 800 mil presos, a terceira população carcerária do mundo e a que mais cresce mais velozmente. São lançados aí.
Como o Estado não observa legalidade nem o sistema prisional aplica a Lei de execuções penais, o que nós temos é a necessidade de que cada preso busque proteção onde encontra. Quem oferece proteção são as facções criminosas controlando unidades do sistema prisional, garantindo a proteção, que será cobrada subsequentemente à saída, sob a forma de lealdade.
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Então carreiras criminosas, que não havia, haverá. Nós estamos contratando violência futura ao preço da destruição de gerações de jovens negros, pobres. Isso resulta no casamento do modelo policial com a Lei de Drogas, é esse inferno que nós temos com tantos efeitos diretos.
Qual o impacto para o cidadão desse modelo de segurança pública?
As vezes as pessoas com a melhores intensões me dizem: tudo que você diz é bonito, eu também acho muito legal, ser a favor de Direitos Humanos. Mas eu quero chegar vivo em casa e que meus filhos cheguem vivos em casa e se para isso for necessário matar bandido, que se matem os bandidos.
A resposta é muito simples e muda a cabeça das pessoas se elas quiserem ouvir a resposta de verdade. Eu não vou tentar convencer ninguém sobre valores, vou dizer o que está acontecendo na prática. Porque essa orientação não é novidade, todo mundo sabe que essa é prática correndo. Nós fomos há décadas experimentando, o resultado está ai, já foi experimentado.
O Brasil é um laboratório de execuções extrajudiciais, violência policial. Vocês estão gostando do resultado? Alguém está satisfeito? Nem os policiais estão nem a sociedade está.
Bom, o que acontece quando a autoridade dá o policial na ponta o direito de matar, não em legitima defesa, porque isso todos nós temos não precisamos pedir licença a ninguém diante da eminencia do risco máximo de morte, nós podemos reagir e também para salvar. Nós estamos falando de licença para matar, em qualquer circunstância, sem que me cobrem nada.
Quando a autoridade dá a liberdade para matar, dá também ao policial liberdade para não fazê-lo e isso pode se converter numa moeda atraente, porque o policial mau orientado e mau intencionado chegam na ponta, diante dos suspeitos e dizem: “olha não me custa nada te matar, é possível até que eu ganhe um prêmio. Posso também não te matar e ai? Quanto vale a vida, quanto você me dá para sobreviver?”
Isso se dá no varejo aqui e ali. No processo histórico ao longo dos anos vai tomando forma, como toda maneira da corrupção, e aí surge, como no Rio de Janeiro, uma prática que vira um padrão que se chama "arrego". É um contrato entre policiais e traficantes originalmente em que há uma terceirização de risco, privatização de lucro. “Olha vocês fazem ai seu negócio, nós não atrapalhamos. Queremos x e um percentual sobre os ganhos ou uma quantia fixa para nós fazermos um acordo.”
O acordo decorre da licença para matar. É o primeiro passo, se existe execução extrajudicial , existe negociação de sobrevivência e articulação. Isso vai parar, ao longo de décadas acontece no Rio de Janeiro, no enfraquecimento das policias na sua degradação institucional, porque corrói como um câncer, e nas milícias, que são o formato metastático desses núcleos anárquicos que vão sendo criados e que vão prosperando e fazendo negócios depois, substituindo os traficantes.
Hoje no Rio o problema são as milícias, elas são as forças mais poderosas, que são grupos de policiais ou ex-policiais que aprenderam a negociar a sobrevivência e passaram a dominar territórios e comunidades extraindo ensinamentos da experiência limitada do tráfico, fazendo não só negócios com drogas, mas com toda a dinâmica da comunidade.
Independente dos valores serem bonitos ou não, a história é essa. Quando a gente autoriza a polícia na ponta a matar, permite que ela haja ilegalmente. O que nós colhemos é tempestade, insegurança e o fim das policias. É o fortalecimento de todas as formas de crime, que terão participação das policias, se não seu protagonismo. Isso é o começo do fim, portanto, no sentido mesmo prático, mesmo que não se goste de Direitos Humanos.
O fato é: se a gente permite que a polícia haja com ilegalidade na ponta, desmontamos ela e acabamos investindo na insegurança pública. Essa é a história do Rio de Janeiro, por exemplo.
Edição: Rodrigo Durão Coelho