É tarde mas é madrugada se insistirmos um pouco
Queridos amigos e amigas,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Nada acontece em Beirute e no Líbano que seja transparente; tramas de todos os tipos se revelam contra as esperanças comuns da população. Depois da explosão mortal, era impossível imaginar que a explicação mais razoável seria aceita.
Rumores circulavam, mas não tiveram impacto. Ficou claro para o povo que dessa vez – ao contrário de tantas vezes anteriores – era seu próprio sistema político que deveria ser responsabilizado pela enorme explosão ocorrida em meio a uma pandemia, uma crise monetária e econômica, e um antigo atoleiro político não resolvido.
O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social faz o Alerta Vermelho n. 8: Explosão em Beirute. Este texto foi elaborado a por organizações e pessoas do Líbano, a quem agradecemos as contribuições.
Alerta Vermelho: Explosão em Beirute
No início da noite de 4 de agosto, um incêndio se iniciou no Armazém 12 do Porto de Beirute, capital do Líbano (população de 6,8 milhões, incluindo mais de um milhão de refugiados). Uma enorme nuvem de fumaça se produziu com o fogo, que foi então ofuscada por uma explosão cuja poderosa força arrastou e estilhaçou partes de Beirute.
O porto foi imediatamente demolido; a onda de pressão teve um raio de alcance de 15 quilômetros aproximadamente. Pelo menos 70 mil casas foram danificadas, algumas não mais habitáveis; pelo menos 160 pessoas morreram e 5 mil se feriram.
Os números ainda não são completamente conhecidos; dois hospitais também foram destruídos. Foi a maior explosão já vivida no Líbano, apesar de sua história de colonização francesa, intervenções estadunidenses, ataques e ocupações israelenses, e sua guerra civil de 15 anos.
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O que aconteceu?
Não demorou muito para aparecer a evidência de que o que havia explodido não era um navio com armas ou fogos de artifício ou um míssil, mas um prédio que abrigava 2.750 toneladas de nitrato de amônio, que estava armazenado negligentemente em um armazém portuário desde novembro de 2013.
O nitrato de amônio é um produto químico inflamável usado em fertilizantes, explosivos e combustível para foguetes. Em 2013, o MV Rhosus, um navio de carga com bandeira da Moldávia, chegou a Beirute com essa carga; o navio tinha como destino Beira (Moçambique).
Os funcionários do porto apreenderam o navio, que não estava em condições de navegar, e também o que chamaram de “carga perigosa”. Seis vezes, entre 2014 e 2017, os funcionários da alfândega pediram ao juiz de causas urgentes, em Beirute, orientação sobre como vender ou descartar a carga.
É provável que o nitrato de amônio tenha chegado na forma de Nitroprill, que é um agente explosivo usado em minas de carvão. Mesmo um pequeno incêndio pode fazer com que o nitrato de amônio exploda catastroficamente. Fogos de artifício também foram armazenados no mesmo depósito. Mais de 19 funcionários foram presos, incluindo o diretor do Porto de Beirute e o diretor da alfândega. Uma investigação está em andamento.
Um acidente é algo que não pode ser previsto, onde não há nenhuma ação humana que possa ser responsável pelo o que aconteceu. A explosão em Beirute, em 4 de agosto, não foi um acidente. A carga altamente inflamável foi mantida em um depósito por mais de seis anos; esse armazém, no porto da capital libanesa, é próxima aos bairros residenciais de Gemmayze e Karantina.
Nos últimos seis anos, funcionários da alfândega – com claras afiliações políticas – vazaram relatórios sobre o perigo. As autoridades estavam cientes da possibilidade de uma explosão. E não fizeram nada.
A explosão é a cereja do bolo dos horrores de uma estrutura política de trinta anos pós-guerra civil que viu os líderes da milícia da guerra civil trocarem seus uniformes por ternos executivos. A reunião dos Acordos de Taif em 1990 para encerrar a guerra não responsabilizou ninguém. Fez exatamente o oposto e legitimou a liderança sectária no governo do país; senhores da guerra civil se tornaram guardiões do Estado que destruíram.
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Uma classe política corrupta se enriqueceu ao mesmo tempo que esvaziou o financiamento de escolas, hospitais e todos os serviços públicos, os quais transformaram em veículos clientelistas. Além disso, a ordem neoliberal e a reconstrução que foram postas em marcha pelo ex-primeiro-ministro bilionário Rafik Hariri cristalizaram um resiliente sistema capitalista de compadrio que já tinha suas raízes no Líbano antes da guerra civil.
A reconstrução de Hariri se concentrou estritamente em atrair e se beneficiar de investimentos estrangeiros dos países do Golfo para reabastecer o lucrativo setor bancário (no qual a maioria dos políticos tem participações diretas), reconstruir um centro exclusivo de propriedade de sua corporação, Solidere, e outros setores repletos de corrupção e não produtivos .
A natureza clientelista profundamente enraizada do sistema sectário libanês e suas ligações orgânicas com os interesses estrangeiros permitiram que os líderes de grupos sectários mantivessem o poder. Sua capacidade de fornecer serviços básicos a seus apoiadores usando aparatos e recursos do Estado diminuiu à medida que sua ganância crescia e suas práticas não eram controladas.
Mais importante ainda, sua capacidade de proteger a população de desastres diminuiu, assim como seu interesse em fazê-lo. Os detalhes de como esse nitrato de amônio permaneceu no porto por seis anos não são tão importantes quanto o sistema sectário libanês arcaico, disfuncional e insensível, que nunca foi capaz de responsabilizar ninguém no poder.
Quais serão as consequências econômicas?
Embora considerado um país de renda média alta, a desigualdade e a pobreza já existentes no Líbano foram exacerbadas pela crise síria; pelas consequências de trinta anos de lutas políticas internas e políticas econômicas insustentáveis; por um levante contra a classe política em outubro de 2019; múltiplas invasões israelenses; e agora pela pandemia.
A moeda libanesa perdeu 80% de seu valor desde setembro de 2019, com pouca esperança de qualquer solução para a crise de liquidez e crédito, bem como o colapso da demanda de consumo e o aumento da hiperinflação. Ironicamente, o dinheiro que deverá ser destinado ao país como ajuda em resposta ao desastre pode estender a vida da classe dominante e adiar seu colapso inevitável.
Globalmente, o Líbano acolhe o maior número de refugiados em relação à sua população, com cerca de 1,5 milhão de refugiados da vizinha Síria juntando-se aos 200 mil palestinos aos quais é negado o direito de retornar à sua terra natal por gerações. Mesmo antes da desintegração financeira – atualmente acelerada – do Líbano, em 2019 o desemprego entre os jovens foi estimado em quase 40%; enquanto 73% dos refugiados sírios, 65% dos palestinos e 27% da população libanesa vivem na pobreza.
Em junho de 2020, estimou-se que quase metade da população do país foi empurrada para a pobreza. Os trabalhadores domésticos migrantes – dos quais existem centenas de milhares no país vivendo sob um sistema legal de kafala que foi equiparado à escravidão dos dias modernos – estão sofrendo ainda mais porque seus empregadores se recusam a pagá-los; eles não têm como voltar para seus países de origem.
Os danos colossais causados pela explosão em residências, hospitais, organizações e empresas – especialmente o porto por onde entram 80% das mercadorias importadas necessárias para o Líbano – levou o país ao limite.
O Líbano costumava ter um dos sistemas de saúde mais avançados do mundo árabe. No entanto, as políticas neoliberais da classe dominante libanesa destruíram o sistema de saúde, que entrou em colapso diante da pandemia de covid-19.
O país tem 26 hospitais públicos e 138 hospitais privados; 90% de seus medicamentos básicos e 100% de seus equipamentos médicos são importados. Os trabalhadores protestaram contra a falta de pagamento; já os pacientes não podem ser acomodados em hospitais.
A destruição desse importante porto deixa o país virtualmente incapaz de se abastecer com alimentos e medicamentos (o porto de Trípoli pode, na melhor das hipóteses, acomoda apenas 40% da capacidade que costumava passar por Beirute); silos próximos à explosão, que abrigavam meses de suprimentos de grãos, foram destruídos; os subsídios do governo para remédios, pão e gás devem ser revogados.
O dano econômico geral ao país é significativo – mais de 5 bilhões de dólares para um país com um PIB otimista de 56 bilhões de dólares.
Qual será o resultado político?
Desde 17 de outubro de 2019, o Líbano testemunhou protestos contínuos devido à corrupção e à deterioração da situação social, bem como crises econômicas, ambientais e políticas. Protestos ocorreram nos últimos nove meses com diversas reivindicações: por suprimento regular de eletricidade e água, por instituições responsáveis livres de corrupção e um judiciário confiável, por uma moeda segura, bem como um sistema político e econômico não sectário.
Emanuel Macron, o presidente da França, foi a Beirute, convocou e repreendeu os líderes políticos, deu-lhes sermões sobre a arte de ser estadista e fez promessas de recursos e reformas. Enquanto isso, não muito longe, jovens exigiam a liberdade do prisioneiro político George Ibrahim Abdallah, mantido em uma prisão francesa; questões políticas levaram as autoridades francesas a anular uma decisão judicial para sua libertação.
A conferência de doadores liderada pela França arrecadou 250 milhões de euros em ajuda emergencial para o Líbano, mas esta vem com restrições que aprofundam a dependência ao Fundo Monetário Internacional e de suas condições socioeconômicas.
Desde o bombardeio, são grupos de jovens, em sua maioria, e não funcionários do governo ou trabalhadores, que têm limpado as ruas e ajudado as pessoas afetadas pelo bombardeio, dos bairros da classe trabalhadora em Karantina até o bairro de Gemmayze. A classe política não perdeu tempo em tentar capitalizar as “oportunidades” decorrentes da explosão, mesmo com corpos e até mesmo sobreviventes sendo retirados dos escombros.
Em 8 de agosto, protestos de rua massivos exigiram responsabilização imediata, incluindo uma investigação urgente com resultados rápidos e a prisão de altos funcionários do governo responsáveis por esta catástrofe. Os manifestantes invadiram ministérios e outras instituições em um ato simbólico de recuperação do país. A repressão estatal foi severa, mas não arrefeceu o ânimo da população.
No dia 8 de agosto de 2020, o Bispo Dom Pedro Casaldáliga Plá faleceu no Hospital Santa Casa de Batatais, no estado de São Paulo. Um padre católico nascido na Espanha, Casaldáliga foi uma grande força na teologia da libertação e um aliado crucial das comunidades indígenas do Brasil.
Em 1971, ele escreveu uma carta pastoral, “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e marginalização social”, que atacava o sistema desumano que se expressava como genocídio contra as comunidades indígenas na Amazônia. Seu grande sentimento pela humanidade foi expresso em sua poesia. Em sua memória, compartilhamos seu poema Nossa hora.
“É tarde
mas é nossa hora.
É tarde
mas é todo o tempo
que temos à mão
para fazer futuro.
É tarde
mas somos nós
esta hora tardia.
É tarde
mas é madrugada
se insistirmos um pouco.”
O Brasil de Casaldáliga vive atualmente em profunda angústia, com mais de 100 mil pessoas mortas pela covid-19 e mais de três milhões de pessoas infectadas. Sindicatos que representam trabalhadores de saúde brasileiros, bem como organizações de do movimento negro e comunidades indígenas, entregaram uma ação ao Tribunal Penal Internacional; eles acusam o presidente Jair Bolsonaro de crimes contra a humanidade. Leia mais em meu artigo sobre este processo judicial.
Para escrever esse artigo, perguntei a Jhuliana Rodrigues, técnica de enfermagem do Hospital São Vicente, em Jundiaí, sobre sua coragem de ir trabalhar em condições tão negligentes. “Se eu não continuar trabalhando agora”, disse Jhuliana, “iria fazer o quê? Os profissionais de saúde são escolhidos e fazem seu trabalho com amor, dedicação e cuidado ao ser humano. Assim como já convivemos com bactérias multirresistentes, a covid-19 estará conosco por muito tempo”. Jhuliana e trabalhadores essenciais em todo o mundo carregam a coragem de Dom Pedro Casaldáliga.
Cordialmente, Vijay.
Edição: Leandro Melito