No último domingo, (16), a agitadora bolsonarista conhecida como Sara Winter expôs uma criança de 10 anos, que engravidou após um estupro e foi autorizada a realizar um aborto no Recife (PE). O caso reacendeu o discurso da extrema direita acerca do assunto.
Contudo, lideranças e especialistas cristãs e ouvidas pelo Brasil de Fato defendem que, "a Igreja não deve interferir nas questões de política e saúde pública e da vida de milhares de mulheres, que sendo ou não cristãs têm o direito da livre consciência".
Na postagem, que foi apagada a pedido da justiça, a agitadora de extrema direita escreveu em caixa alta o endereço da unidade de saúde e revelou ainda o primeiro nome da criança usando o termo "aborteiro" para se referir ao suposto médico que realizaria o procedimento. Em seguida, pediu que seus seguidores rezassem e "colocassem os joelhos no chão".
:: Aborto legal de criança de 10 anos ocorre em segurança após a expulsão de extremistas ::
Uma integrante do coletivo "Frente Evangélica Pela Legalização do Aborto" afirma que "não é aceitável que essa religiosidade conservadora continue cegando os fiéis para a realidade que os cerca. Compreendemos que não é possível viver o evangelho em que cremos ignorando as questões sociais que assolam a vida das mulheres e de outras minorias".
"Por isso, lutamos por uma política pública de redução de danos, que repense nosso modelo punitivo de sociedade, garantindo às mulheres direitos, e não encarceramento. Nós reivindicamos educação sexual pra decidir, contraceptivos para prevenir e aborto legal e seguro pra não morrer. É assim que defendemos a vida", diz o coletivo.
O movimento analisa que o que ocorreu com a menina de 10 anos foi o resultado de uma sociedade estruturada pelo patriarcado e alicerçada na cultura do estupro. Ao defender a vida, eles afirmam repudiar "todos os ataques fundamentalistas a ela, sua família e ao médico que realizou o procedimento".
"Enquanto mulheres evangélicas, queremos que nossa voz também seja ouvida e estamos dizendo em alto e bom som que estes evangélicos fundamentalistas não nos representam. Nós existimos, e resistimos dentro das igrejas", resumem.
Movidos pela culpa
Simony dos Anjos, doutoranda em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG) afirma que a bíblia é direta: "Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus", diz ela citando Mateus 22, 15-21.
"Existe um poder eclesiástico, que é o poder de direcionar, como dizem na religião evangélica de 'direcionar o rebanho', que é o pastor ou a pastora."
"Essas pessoas muitas vezes se valem desse poder de direcionamento para fazer valores de juízos morais, porque a religiosidade cristã, a tecnologia que mantém as pessoas dentro da igreja, é a culpa. Quanto mais esse dirigente faz as pessoas sentirem culpa, mais elas estão submetidas ao poder dele", classifica.
As atribuições entre Igreja e Estado são históricas, mas para os dias atuais, o que rege a sociedade no Brasil é a Constituição Brasileira de 1988. Simony dos Anjos afirma que apesar de ser evangélica defende a separação entre as atribuições de ambos.
"A questão do aborto tem duas dimensões, uma pessoal e uma pública. A pessoal é difícil a gente emitir opiniões, porque as pessoas pensam de maneira diversa, inclusive, as mulheres que por algum momento passam por uma interrupção voluntária da gravidez têm n motivações pessoais para passar por isso e as que não concordam também."
"Mas quando a gente trata de políticas públicas de saúde para as mulheres, a gente tem que ver que o aborto é questão de saúde pública", pontua.
O aborto das mulheres ricas
Simony dos Anjos destaca ainda que os números são esclarecedores. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto de 2016, mais de 50% das mulheres que realizaram a interrupção voluntária da gravidez têm um, dois ou três filhos. "Isso significa que a grande motivação para parte das mulheres que realizam aborto é não ter condições de ter mais um filho ou são mulheres que sofrem abusos constantes no casamento e são proibidas de utilizar anticoncepcional", diz ela.
No Brasil, segundo o artigo 128 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940, o aborto é permitido quando a gravidez é resultado de abuso sexual ou põe em risco a saúde da mãe. A partir de 2012, um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que é permitido interromper ainda a gestação quando se nota que o feto é anencéfalo, ou seja, não possuir cérebro.
"O aborto já é legalizado no Brasil, porque quem tem dinheiro vai em uma clínica ginecológica 'chique', dessas que também fazem abortos, custa R$ 6 mil e tudo bem. Quem mais morre com essa questão são as mulheres pobres, a maioria negras, que não têm dinheiro e acabam atentando contra as suas próprias vidas: enfiando agulha de tricô na vagina, se jogando de escadas ou pedindo que chutem a barriga delas."
"A gente tem que pensar que a mulher que é capaz de passar por esse grau de sofrimento está em desespero e o que Estado tem que fazer? Oferecer ajuda psicologia, assistência social e encaminhar para um serviço seguro e gratuito e interrupção da gestação", diz.
Para ela, a criminalização do aborto só atenta contra a vida da mulher. Há riscos de infecção generalizada, infertilidade e morte. Ela diz ainda que o custo/benefício para o governo – olhando para a rede de saúde em oferecer esse direito de forma segura e gratuita – é muito maior do que as mulheres que acabam tendo hemorragias ou complicações nesse processo.
"Quando a gente fala em legalizar o aborto, ele é mesmo só a ponta do iceberg. Tem toda uma estrutura de violência de gênero contra as mulheres e, principalmente, a violência sexual contra a mulher."
"A gente não pode deixar de olhar para os números. A grande questão é: não permitir que o aborto seja legalizado, seguro e gratuito está protegendo a quem? As mulheres? As próprias crianças que eles falam defender? Veja o caso dessa menina. Ou está protegendo o sistema que privilegia o patriarcado e os homens?", questiona Simony dos Anjos.
O movimento Católicas pelo Direito de Decidir também manifestou uma nota repudiando a atitude do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), por se recusar a realizar um procedimento autorizado por lei. Segundo o grupo, o pretexto de que não haveria protocolo de atendimento para interromper uma gravidez acima de 22 semanas é falso e não tem amparo nos Protocolos de Saúde do Ministério da Saúde e do Código de Ética Médica. Afinal, quando a gravidez coloca em risco a vida da mulher, com base em critérios sanitários, a interrupção pode ser feita a qualquer momento.
"O desrespeito ao direitos garantidos por lei nesse episódio foi mais uma violência que o Estado impôs a essa criança", diz a nota do movimento, endossada pela Central Única dos Trabalhadores do Espírito Santo (CUT/ES), pelo Coletivo Andes em Luta (CAEL), pelo Fórum de Mulheres do ES, pelo Fórum Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA/ES), pelo Núcleo Interinstitucional de Pesquisa em Gênero e Sexualidade (Nupeges), pelo PSTU em Vitória, pelo Sindicato dos Servidores da Saúde no Estado do Espírito Santo e por dezenas de militantes capixabas.
Edição: Rodrigo Durão Coelho