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Suspeitos, até provar o contrário

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O poder estatal punitivo rompe o Pacto Federativo e promove a inversão do garantismo cravado na Constituição para dar lugar a um sistema de violação, ao invés de proteção de direitos. - Christiano Antonucci / Fotos Públicas
Mas afinal, de que “suspeito” e de qual “suspeição” estamos falando? 

Por Marília Lomanto Veloso*

"Tiraram minha roupa a bofetão, rasgaram tudo e me deram porrada no estômago até eu cair no chão. Amarraram minhas mãos, minhas pernas e me penduraram no cavalete. Prenderam uns fios nos dedos do meu pé, na mão, no bico do meu seio e começaram a rodar a manivela do choque."
Fragmentos do depoimento de uma prisioneira.
(Vidas Presas, Luiz Carlos da Rocha)

Essas reflexões falam de um lugar de conflitos e de complexidades. O lugar do campo jurídico, onde, na percepção do materialismo histórico, se localiza a estrutura ideológica (da qual o Direito faz parte), subordinada a uma infraestrutura econômica. E é nesse território que o poder estatal punitivo rompe o Pacto Federativo e promove a inversão do garantismo cravado na Constituição Federal para dar lugar a um sistema de violação, em vez de proteção de direitos. E nesse espaço, constrói seletivamente a criminalidade, reproduz material e ideologicamente as desigualdades, consolida e perpetua a “Ilusão de Segurança”, arquiteta a noção do “desviante”, etiquetagem dos excluídos, sempre “sob suspeita”, concebidos como sujeitos perigosos, culpáveis, um risco para a sociedade. Enfim, aqui, como no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, todo suspeito é culpado.

A narrativa da mulher aprisionada, pendurada no cavalete, torturada pela manivela do choque, espancada em sua essência humana, ferida em sua dignidade, pulsando o suplício que atravessou o mundo medievo e foi recepcionado pelo poder legal, extralegal, institucionalizando a violência é o resultado  do olhar do psicólogo Luis Carlos da Rocha, na década de 80, na pesquisa que nominou Vidas presas: uma tentativa de compreensão da tragédia da criminalidade junto às suas personagens prisioneiras. A vítima dessa história, pelas características do lugar de onde fala, a prisão, teve seguramente um rito de passagem pela categoria “suspeita”.

“Sim, o juiz foi suspeito. O Ministério Público não foi isento. Por isso, o presente Livro das suspeições!”. Lenio Luiz Streck e Marco Aurélio de Carvalho tomaram uma sábia decisão, ou seja, resolveram conclamar uma diversidade de homens e mulheres afinados com o zelo pelo devido processo legal e com a defesa da ordem democrática para (re)contarem o que todo mundo sabe a respeito da história dos julgamentos da Lava Jato: a prática das ilegalidades e inconstitucionalidades protagonizadas pelo Juiz Sergio Moro e por Procuradores da República,  instrumentalizando o direito “em nome de um projeto político. Em nome do direito, contra o direito”, violando o “elemento mais ‘sagrado’ de qualquer sistema jurídico e de uma democracia: o princípio da imparcialidade”.

Mas afinal, de que “suspeito” e de qual “suspeição” estamos falando? 
Dos “suspeitos” nas abordagens policiais com base em “fundada suspeita” onde a suspeição é seletiva, enxerga melhor os corpos jovens, negros, periféricos, de baixa renda? Dos pertencentes a grupos de resistência, movimentos populares, coletivos de luta?

Ou do “suspeito” togado que nega de modo reiterado pedidos da defesa para a produção de provas, de testemunhas para serem arroladas, que indefere injustificadamente perguntas formuladas pela defesa a testemunhas ou a réus colaboradores, que trata desigualmente as partes, tudo permitindo a procuradores da República,  que na condição de magistrado faz reperguntas à testemunha “de forma parcial, enviesada”, que “espremia, encurralava, constrangia as testemunhas”? Augusto de Arruda Botelho relata essa “insuspeita” conduta parcial, porque advogado atuante na Operação Lava Jato, desde os seus primórdios. E para o criminalista “o Juiz Sérgio Fernando Moro passava ao largo da necessária imparcialidade de um julgador e, portanto, sempre foi suspeito. A suspeição [...] e a parcialidade de Moro gritavam mais alto nas audiências”. (Sempre Suspeito, O Livro das Suspeições, p. 91/98).

Tudo parece conduzir à compreensão de que duas categorias reconfiguram o “território do suspeito”, percebido no viés maniqueísta do mundo dividido no “bem” e no “mal”.  

Uma delas, o “suspeito por estigma”. Com Eduardo Viana recuamos à fase pré-científica das ciências ocultas, à Fisionomia que elege a aparência do indivíduo para “análise de suas virtudes e defeitos”, inspirando o Marquês de Moscardi, em Nápoles, no século XVIII, a tornar regra na prolação da  sentença expressar que “ouvidas testemunhas de acusação e defesa, observada a face e cabeça, te condeno a...”.  Aqui estariam os “desviantes” do sistema punitivo, os excluídos, sem lugar no mundo. 

A outra, o “suspeito institucional”. Clame-se aqui pelo art. 254 do Código de Processo Penal, que textualmente expõe um veto legal ao desequilíbrio entre as partes, ao descumprimento à paridade de armas, ao aconselhamento a qualquer das partes. E ainda aos Códigos de Conduta da Magistratura, do Ministério Público, estabelecendo os limites da atuação de seus/suas integrantes.  No mesmo rumo de conter a intervenção “apaixonada” de quem julga, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que o Brasil é signatário desde 1992, traz em seu texto a expectativa processual penal de garantir a qualquer pessoa ser julgada com imparcialidade, isonomia e condições iguais para as partes.

Na interpretação de Mauro de Azevedo Menezes, “As garantias constitucionais do devido processo legal, da presunção de inocência, da ampla defesa e do contraditório sofreram uma grave erosão, num clima de estímulo ao caráter Moro versus Lula: um caso clássico de suspeição inquisitivo não apenas do aparato repressor do Estado, mas também das instâncias judiciárias”. (Moro versus Lula: um caso clássico de suspeição judicial. O Livro das Suspeições). 

A indagação é sobre o que esperar dos que praticam e “operam” o Direito, dentro de um cenário de desigualdade perversa, mutilador das conquistas civilizatórias. 

A reação do sistema punitivo ao “suspeito por estigma” será sempre a brutalidade institucional.  Com Aury Lopes Jr, a “nova pena processual” onde o tempo exerce uma função punitiva no processo, “essa cerimônia degradante, e, como tal, estigmatizante [...] diretamente relacionado com a duração desse ritual punitivo”. (Fundamentos do Processo Penal: Introdução crítica, p. 29. (Grifos do autor)

Nesse sentido, unam-se vozes ao Livro das Suspeições para a pergunta: 
“Se todos já sabem o que o juiz e os Procuradores fizeram e se já é de conhecimento público que não houve imparcialidade na Lava Jato – especialmente nos processos envolvendo o ex-Presidente Lula – torna-se inevitável, desse modo, a pergunta: o que fazer quando se sabe que se sabe? O que a comunidade jurídica e o STF farão, agora que sabem que sabem tudo sobre Moro?”

Aury Lopes Jr, em leitura crítica sobre os fundamentos do Processo Penal, dispara a questão central que entende deva ser o desafio para a pretensão de “pensar” o processo penal contemporâneo, (re) discutindo, com isso, “o fundamento de sua existência, por que existe e porque precisamos dele”. Em síntese, questiona: “um Processo penal, para quê (quem)?

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho brinda o leitor da obra com um Prefácio onde faz um diálogo com Mario Quintana, “para entender os pernósticos” (que inundam o país). E em metáfora brilhante,  cria uma relação tragicômica entre o  “Anjo travesso” Malaquias em suas construções “ousadas, marotas”, para não isentar “a canalhada que se entrega a Tânatos, pensando que pode encontrar Eros” e o Direito, que abre um fosso “entre o discurso e a realidade”. 

E prenuncia: “Nunca se esteve tão perto, pelas características, do medievo: pensamento único [...] generalização da ignorância; [...] um mundo povoado por imagens midiáticas, não raro sobrenaturais, para manter as pessoas em crença”.  

*Marília Lomanto Veloso é é advogada da Bahia, doutora em Direito, membro da ABJD e Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos.

Edição: Rodrigo Durão Coelho