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Sangue, canibais e Sara Winter

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O Brasil não é a primeira pista de provas desse desvario. Aqui, as coisas acontecem quase como um espelho dos processos de manipulação de corações e mentes desencadeados no Hemisfério Norte - Mario Tama/Getty Images/AFP
Quem ainda guarda um mínimo de compaixão pelo sofrimento humano, indaga: como nos convertemos nisso?

Algumas coisas são tão patéticas que, apesar do nosso cotidiano surreal, ainda nos espantam. Sara Winter, por exemplo.

Além de estapafúrdia, ela funciona como veículo de infecção social pelo grotesco. A última da Sara, como alguém escreveu, deveria paralisar o Brasil, não fosse o país tão complacente com a loucura que o infesta e envenena.

Por ser assim, o caso da criança estuprada durante quatro anos e engravidada aos 10 – e sua exposição feroz nas redes e na vida – vai nos comover durante alguns dias, antes de se dissolver lentamente na bruma da memória. Embora pareça, agora, a coisa mais horrível do mundo. Mas não é. Mais horrível é o fato de que 53% dos estupros no país vitimem meninas de até 14 anos.

Pergunta-se, em tais momentos, pela consciência de uma sociedade. Onde está a nossa? No empresariado? Certamente não. Na religião? Não dá para acreditar. Nos militares? Negativo. E são os três pilares desta violência em curso que alguns chamam governo.

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Quando acontecem episódios assim, quem ainda guarda um mínimo de compaixão pelo sofrimento humano, indaga: como nos convertemos nisso?

Sim, sempre fomos brutais como a nossa história lavada em sangue, escravidão, tortura e assassinato. Mas, de uns tempos para cá, passamos a ter orgulho disso. E a berrar, veicular, gravar, postar e tatuar em todo corpo esse orgulho da estupidez.

Parte do horror que nos tornamos veio das nossas vísceras. Mas outra parte foi construída de fora para dentro. Sara Winter, por exemplo. Ela é a consolidação de um projeto que casa o século 13 com o 21, o arcaico com o contemporâneo, a crendice com a alta tecnologia, o fanatismo com as redes sociais.

O Brasil não é a primeira pista de provas desse desvario. Aqui, as coisas acontecem quase como um espelho dos processos de manipulação de corações e mentes desencadeados no Hemisfério Norte. A saga de Sara não causaria perplexidade nos atuais EUA, paciente zero do assalto à razão.

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Se o Brasil foi alvo de kit gays e mamadeiras de piroca, no país de Trump o caso é ainda mais sério. Através do Facebook, Instagram, YouTube e outras plataformas, os adeptos de QAnon – uma teoria da conspiração segundo a qual Donald Trump trava uma batalha subterrânea contra "democratas canibais e celebridades pedófilas de Hollywood" – estão convencendo pais que perderam a custódia dos filhos a praticarem até assaltos armados contra creches que acolheram as crianças. Pais e mães se desesperam após serem induzidos a acreditar que nas escolinhas poderiam sugar o sangue de seus filhos.

Em pânico, um pai de família colocou suas cinco crianças numa van e fugiu atravessando dois estados a 180 km por hora perseguido por policiais. “QAnon, me ajude. QAnon, me ajude!” gritava, antes das balas da polícia furarem os pneus da van que acabou batendo numa árvore. Entendia que ele e os filhos seriam mortos. Declarou ter visto vídeos detalhando como a ex-candidata presidencial Hillary Clinton e sua secretária Huma Abedin comiam cérebros de crianças.

A casuística é vasta. Aquilo que poderia parecer roteiro de um filme dos irmãos Cohen envolve vidas de verdade. Para os teóricos da conspiração, os democratas e celebridades querem, através de tortura, sugar uma substância psicodélica segregada por crianças apavoradas, o adenocromo.

O fato de uma banda dark dos anos 1980 – Sisters of Mercy – mencionar o adenocromo numa de suas canções aguçou a paranóia. O filme infantil Monstros S.A., da produtora Pixar, cujo roteiro cita a prática de assustar crianças para obter energia, aumentou a doidice. Um dos seguidores da teoria descreveu Monstros S.A. como “Hollywood falando de si mesma”.

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Difícil acreditar que um grupo para o qual “os lagartos estão governando o mundo” possa chegar ao poder. Mas é o que se prevê para novembro.

Sob aplausos de Trump -- que tuíta citações do grupo -- uma militante do QAnon chamada Marjorie Greene obteve 57% nas primárias republicanas de um dos distritos da Georgia. Tornou-se franca favorita para a Câmara. Numa de suas falas, Marjorie declarou ser necessário “acabar com essa conspiração global de pedófilos adoradores de Satanás”.

Neste mês, o jornal inglês The Guardian estimou em quatro milhões os seguidores do QAnon. Que se espalhou além dos EUA, chegando ao Reino Unido, Canadá, Alemanha, Itália, Holanda, Hungria, Austrália e, claro, ao Brasil.

Edição: Rodrigo Chagas