As condições de alimentação dos povos está diretamente relacionada com a disponibilidade de terra
A industrialização borrou o imaginário da alimentação tradicional indígena em algumas comunidades do país. A caça, pesca, plantio e extrativismo perderam espaço em algumas etnias por conta dos fluxos nos territórios e da destruição da biodiversidade nas últimas décadas. Além de mexer na cultura, os enlatados, gaseificados e processados em geral estão afetando a saúde de alguns povos. Esta é a primeira de uma série de três reportagens sobre os impactos da alimentação industrializada na saúde dos povos indígenas.
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Doenças como hipertensão, diabetes mellitus e obesidade fazem parte da realidade de algumas comunidades, como aponta o primeiro Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos indígenas. A pesquisa foi realizada nos anos de 2008 e 2009, com crianças menores de 5 anos e mulheres de 14 a 49 anos. Apesar dos limites quanto a representatividade étnica e nacional, o estudo revela uma amostra preocupante das perdas de segurança e soberania alimentar indígena.
O inquérito aponta ainda que as condições de alimentação dos povos está diretamente relacionada com a disponibilidade de terra. Os dados mostram que as populações da região Norte possuem mais estratégias de auto subsistência, por conta da questão territorial. Por outro lado, o consumo de alimentos industrializados ficou mais intenso nas demais regiões, com menor disposição territorial.
Vanessa Haquim é nutricionista e trabalha há 13 anos no Projeto Xingu, da Escola Paulista de Medicina /Universidade Federal de São Paulo. O programa atua com populações indígenas desde 1965, com foco do Território Indígena do Xingu.
“Além do Inquérito, nós, da equipe do Projeto Xingu, estamos com uma pesquisa em andamento, já em fase de análises, justamente sobre esse tema. O projeto chamado ‘Novos problemas de saúde: avaliação do perfil nutricional e metabólico dos indígenas do Parque Indígena do Xingu’ coordenado pelo Profº Dr. Douglas Rodrigues e pela Profª Sofia Mendonça (coordenadores do Projeto Xingu), avaliou adultos acima de 18 anos de grande parte das comunidades do Xingu, de ambos os sexos. No total foram mais de 1600 participantes”, explica.
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Segundo a pesquisadora, o estudo visou rastrear a presença de doenças crônicas não transmissíveis entre indígenas e seus possíveis determinantes, entre eles o consumo de alimentos industrializados. Todo o processo contou com a participação efetiva de indígenas. Haquim, inclusive, ressalta que o Projeto Xingu desenvolve pesquisas nesse campo de conhecimento há mais de 40 anos, mas o envolvimento neste caso foi o maior de todos os tempos.
“Há muito tempo, desde a colonização, há registros do contato com alimentos estrangeiros, no entanto, o contato mais intenso com os alimentos industrializados, processados e ultraprocessados é mais recente, talvez de uns 30 anos pra cá. Em algumas regiões do país esse contato pode ser mais antigo ou mais atual”, explica a pesquisadora.
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O rápido crescimento do número de municípios ao redor das terras indígenas, o aumento da construção de estradas até as cidades, a introdução das escolas e da merenda escolar, são fatores que facilitaram o acesso aos alimentos industrializados.
“Mas além do fato da disponibilidade estar presente, também há as motivações por trás dela. A curiosidade em provar nossos alimentos é real, assim como nós temos curiosidade de provar alimentos de outras regiões e mesmo de outros países. Mas não podemos deixar de falar que muitos enfrentam dificuldades para obter os alimentos tradicionais, seja por causa da sazonalidade ou pelas dificuldades relacionadas às mudanças climáticas dos territórios, dificultando e diminuindo o cultivo das roças, a obtenção de caça, pesca e coleta de alimentos. Muitos recorrem aos alimentos da cidade por não ter outra opção. Um pequeno filme que ilustra um pouco dessa realidade é o “Para onde foram as andorinhas” produzido pela parceria entre o Instituto Socioambiental (ISA) e o Instituto Catitu” continua Haquim.
Existem outros fatores que interferem direta e indiretamente na obtenção de alimentos tradicionais, como o desmatamento e a construção de grandes obras, a contaminação pelo uso de agrotóxicos e a mineração no entorno dos territórios, a monetarização da economia com o aumento dos assalariados, a distribuição de benefícios nas aldeias e a falta de acesso e opção de alimentos saudáveis.
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Os mercados que ficam próximos aos territórios indígenas, em geral, não têm boas opções de alimentos saudáveis como frutas, legumes, verduras e, quando tem, o valor é muito alto. Haquim explica, que “isso é o que chamamos de ‘desertos alimentares’, que são locais onde o acesso a alimentos naturais ou minimamente processados é escasso ou impossível, obrigando as pessoas a se deslocarem para outras regiões para obter esses itens ou a comprarem produtos industrializados mesmo”.
Jefferson Ferreira, presidente da Associação dos Povos Indígenas do Estado de Roraima (APIRR), explica que os alimentos da cidade podem mudar o modo de viver das comunidades.
“Já tá com mais de décadas que se chegou na comunidade. Hoje tá mais fácil, hoje praticamente dobrou o comércio da comunidade indígena de alimentação, gêneros que vão da cidade para comunidade, virou comércio, mercado. Nas grandes comunidades hoje têm comida industrializada, enlatada, essas coisas todas as comunidades", relata.
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Ferreira é indígena da etnia Macuxi e atualmente mora na terra indígena São Marcos, comunidade indígena Maruwai, no município de Pacaraima (RR).
“Isso se deu com falta de produção nas comunidades. Antes as comunidades produziam farinha, produziam beiju, produziam melancia, mamão, tudo. O que se comprava antes na cidade era o sal, o açúcar. A banha do porco servia como o óleo”, explicou.
Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), há hoje 305 povos indígenas espalhados por todo o país. A grande maioria das comunidades já tiveram acesso às pessoas e costumes das cidades.
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Segundo um levantamento da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) existem hoje 28 referências confirmadas de povos indígenas isolados, que já foram identificados e registrados, em território brasileiro. Desses, 27 estão em áreas protegidas e 1 em área não definida legalmente. Outras 26 referências, sendo 17 em áreas protegidas e 9 em áreas não definidas legalmente, estão em estudo no momento. Uma terceira situação do estudo é o registro de informações que precisam ser averiguadas e que, possivelmente, podem ser povos isolados, contabilizando 60 casos - desse total, 37 estão em áreas protegidas.
Edição: Daniel Lamir