Às vésperas da virada para o século XXI, a dívida externa brasileira encontrava-se em patamares alarmantes. Desde os anos 80, setores da sociedade civil já se mobilizavam frente ao elevado endividamento público. Mas durante a Era FHC os ajustes fiscais se aprofundaram e os impactos dessas políticas sobre a vida da população foram tremendos.
No último ano do século XX, a dívida externa do Brasil ultrapassava U$ 236 bilhões e a dívida interna era de cerca de R$ 516 bilhões, considerando que o PIB era de R$ 1 trilhão, o que equivaleria hoje a aproximadamente R$3,4 bilhões.
O endividamento público brasileiro é também uma herança maldita deixada pela ditadura militar, que agravou ainda mais a desigualdade social e favoreceu a concentração de renda e da terra, além de beneficiar os mais ricos gerando sempre mais lucro. E, na mesma direção, impõe uma sobrecarga à classe trabalhadora, aos mais pobres, aprofundando a exploração.
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A década de 90 foi o período das privatizações, da abertura comercial e a implementação do Plano Real, que foi avolumando as perdas para a classe trabalhadora.
Muitos setores que se mantinham calados em relação à temática da dívida voltaram a debater o assunto a partir da realização da 3ª Semana Social Brasileira – realizada entre os anos de 1997 e 1999 - que trazia à tona o resgate das dívidas sociais.
Em 1998 aconteceu ainda o Simpósio sobre a Dívida Externa, no ano seguinte (1999) é foi realizado o Tribunal da Dívida Externa. Já no ano 2000 ocorreu o Plebiscito Popular da Dívida Externa, que aprofundou os três anos de debate sobre o tema.
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De lá para cá se agravou e muito a situação do endividamento. A dívida externa cresceu 35 vezes nestes últimos 20 anos. Mas não encontramos na sociedade brasileira a mesma disposição para continuarmos o debate e o chamado pelo cancelamento da dívida com o mesmo vigor daqueles anos.
O povo brasileiro não pode continuar pagando, sendo responsabilizado e penalizado com esses pagamentos onerosos aos cofres públicos e com a precarização e retirada dos direitos sociais.
O mais interessante de todo esse processo é compreender como foi sendo construído o plebiscito popular sobre a dívida externa. Os cursos de formação, as oficinas que se espalharam Brasil afora, os seminários, os materiais, cartilhas que se desdobravam em muita criatividade e luta popular.
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Começamos, assim, o século XXI com muita força popular acumulada das resistências ativas frente ao neoliberalismo. Os 500 anos de colonização foram marcados no ano 2000 com denúncias e resistência que deram impulso ao debate das dívidas históricas deixadas nesses cinco séculos. A luta indígena e negra nos apontava o caminho já naquele momento.
O plebiscito popular sobre a dívida alcançou mais de 6 milhões de pessoas que votaram nas urnas por todo o Brasil e foi, sem dúvida, um grande processo de formação e organização popular que impulsionou outros processos futuros.
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Esse processo, por sua metodologia de escuta, de acolhida, de afeto, de abertura para o outro/outra, de construção coletiva, foi acumulando para que, dois anos mais tarde, fizéssemos aquela que foi a maior experiência de organização popular nacional, que foi o plebiscito popular sobre a ALCA – Área de Livre Comércio das Américas – e sobre a Base de Alcântara, com mais de 10 milhões de votos. Mas disso falaremos em outro momento.
Os plebiscitos populares representaram um grande mutirão para debater e propor soluções, alternativas para os problemas estruturantes do Brasil. Também fortaleceram a organização popular.
Neste marco de 20 anos do Plebiscito Popular da dívida, num contexto de pandemia mundial de covid-19, onde a devastação da mãe natureza se apresenta como resultado do extrativismo colonialista e do imperialismo, que também são responsáveis pela crise socioeconômica tragicamente agravada pela atual crise sanitária, se faz eminentemente necessário reforçarmos o clamor – que há 20 anos seguimos a bradar: "A Vida acima da dívida".
Esse lema, de que a vida deve estar à frente de qualquer dívida, nos mais diferentes idiomas, vem ganhando ressonância em toda América Latina e Caribe pela campanha articulada pelo Jubileo Sur/Americas, em que se pronuncia que essas dívidas, sejam elas financeiras, históricas, ecológicas ou sociais, não devem ser pagas pelos povos que, na realidade, já são eles os verdadeiros credores.
Assim como há duas décadas, este processo atual se pretende amplo, aberto e popular. Para aglutinarmos ainda mais resistências e assim conseguirmos atravessar os tempos sombrios em que nos encontramos. Para esperançar precisamos rememorar nossas lutas, trajetórias e construções. Saber de onde viemos nos ajudar a entender para onde podemos ir.
*Sandra Quintela é articuladora Nacional da Rede Jubileu Sul Brasil e Rosilene Wansetto é membro da secretaria executiva da Rede Jubileu Sul Brasil.
Edição: Leandro Melito