Há cem anos, o movimento comunista chegava à Índia. No dia 17 de outubro de 1920, um conjunto de revolucionários indianos, que tinham como objetivo derrubar o domínio colonial britânico, formou o Partido Comunista da Índia (PCI). Cem anos depois, aproximadamente 55 milhões de indianos ainda fazem parte de partidos comunistas e outras organizações ligadas à esquerda, segundo Subin Dennis, economista baseado em Nova Deli e pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Pode-se dizer que os partidos comunistas lideraram os governos de três estados indianos: Bengala Ocidental, Tripura e Kerala. Segundo o dossiê “Cem anos do movimento comunista na Índia” do Instituto Tricontinental -- lançado no dia 1º de setembro justamente para relembrar a data -- somente Bengala Ocidental foi responsável por 50% do número total de beneficiários de programas de distribuição de terras na Índia, graças ao programa de reforma agrária da Frente de Esquerda.
Apenas em 2008, cerca de 3 milhões de indianos de Bengala Ocidental receberam terras agrícolas, 1,5 milhões de meeiros tiveram suas terras registradas e 550 mil pessoas receberam terras de fazendas. Nesses lugares, “as lutas de sindicatos comunistas, sindicatos de camponeses, organizações de jovens, organizações estudantis, organizações de mulheres e plataformas contrárias ao sistema de castas (...) trouxeram mudanças positivas de longo alcance na vida das pessoas”, afirma Dennis.
Outro exemplo significativo das mudanças ocorridas a partir de um governo comunista é o estado de Kerala. A forma como o governo tem enfrentado a pandemia de covid-19 tem sido “amplamente elogiada”, ao manter o número de mortes relativamente pequeno, garantir a todos o acesso ao sistema de saúde público e assegurar uma assistência aos mais prejudicados financeiramente pela crise econômica. Com a pandemia, o governo comunista nomeou mais profissionais de saúde para os cargos públicos, criou mais centros de atendimento e realizou testagem em massa, situação que contrasta com o resto do país.
Segundo Dennis, Kerala começou a ser governado por comunistas muito cedo, que construíram um sistema de saúde “robusto”. Segundo Dennis, “sempre que os comunistas governaram o estado, eles pressionaram a expansão das instalações públicas de saúde. O atual governo comunista, que chegou ao poder em 2016, melhorou o sistema público de saúde de forma significativa e resistiu às tentativas do governo central de privatizar os hospitais distritais no estado”. Hoje, os 12 melhores centros de saúde pública da Índia estão em Kerala.
As conquistas de Bengala Ocidental e o enfrentamento robusto da pandemia de covid-19 pelo estado de Kerala estão ligados aos governos comunistas e às disputas políticas e sociais que estes encamparam na sociedade indiana. Hoje, mesmo com a extrema-direita no poder, por meio do nome de Narendra Modi (BJP) como primeiro-ministro desde 2014, os avanços descritos por Subin Dennis se fazem sentir.
Para o pesquisador, o movimento comunista indiano dá lições de como enfrentar o avanço do neofascismo ao redor do mundo, inclusive na Índia. Modi é ligado ao Bharatiya Janata Party (Partido do Povo Indiano, ou BJP) que, por sua vez, é a ala política de outra organização, a Rashtriya Swayamsevak Sangh (Organização Nacional de Voluntários, ou RSS): “a maior organização fascista do mundo, com oito milhões de membros, e pretende transformar a Índia em um Estado Hindu”, afirma Dennis.
Com a necessidade de enfrentar essas forças, “a classe trabalhadora e o campesinato devem ser mobilizados em questões relativas às suas vidas materiais, e como eles se unem como parte de lutas comuns. A unidade que cruza as fronteiras religiosas torna-se possível no nível das massas”, defende o pesquisador. Para ele, em termos práticos, “as pessoas devem ser reunidas em diferentes frentes de luta, mobilizadas em organizações e politicamente educadas. É assim que a extrema direita pode ser combatida”.
Leia a entrevista com o pesquisador indiano Subin Dennis na íntegra:
Brasil de Fato: Por que é importante lembrar dos 100 anos do movimento comunista na Índia?
Subin Dennis: O movimento comunista na Índia completa cem anos em 17 de outubro de 2020. Esta é uma ocasião em que aqueles que fazem parte do movimento renovam seu compromisso com o objetivo de construir uma sociedade livre de toda exploração e opressão. Eles estão cientes de que esse objetivo só pode ser alcançado com a derrubada do capitalismo e a construção do socialismo, e que o caminho a seguir é extremamente desafiador.
O centenário será uma ocasião em que membros e apoiadores do movimento comunista estudarão e refletirão sobre a história do movimento, buscarão inspiração nas lutas e vitórias e extrairão lições apropriadas dos reveses do passado. Esta poderia ser a base de esforços mais vigorosos para chegar às massas e organizá-las a fim de transformar fundamentalmente a sociedade.
Falar sobre o movimento comunista na Índia é importante para o mundo, em parte porque a Índia abriga quase um quinto de toda a população mundial. A população da Índia é maior do que a de todos os continentes, exceto a da Ásia. Os desenvolvimentos ocorridos aqui têm necessariamente um grande impacto no resto do mundo. Mas o caráter continental da Índia também fez com que grandes eventos, processos e movimentos dentro da Índia não recebessem a atenção que mereciam do resto do mundo. O movimento comunista na Índia é um desses elementos.
Mais de 55 milhões de pessoas fazem parte dos partidos comunistas e outras organizações políticas de esquerda na Índia. Os partidos comunistas lideraram os governos em três estados indianos – Kerala, Bengala Ocidental e Tripura –, que juntos têm uma população de 129 milhões de pessoas. As lutas de sindicatos comunistas, sindicatos de camponeses, organizações de jovens, organizações estudantis, organizações de mulheres e plataformas contrárias ao sistema de castas, e o trabalho de governos estaduais liderados por comunistas trouxeram mudanças positivas de longo alcance na vida das pessoas.
Essas mudanças incluem melhorias significativas nos salários e condições de trabalho, renda e propriedade dos camponeses e trabalhadores agrícolas, educação e saúde pública, enfim, uma vida mais digna para as camadas mais oprimidas e marginalizadas da população. Esses são aspectos que muitas pessoas no resto do mundo também considerariam relevantes para suas próprias experiências e para o futuro de suas próprias sociedades. Tentamos fornecer uma breve visão geral da rica história do movimento comunista indiano no último dossiê do Tricontinental.
A extrema direita está no poder na Índia desde 2014, quando Narendra Modi (BJP) tornou-se primeiro-ministro. É possível encontrar, na luta do movimento comunista, ferramentas para frear ou resistir à ascensão do fascismo no país?
Ao falar sobre a extrema direita na Índia, é importante entender o termo “comunalismo”, que é amplamente usado no Sul da Ásia. O comunalismo refere-se à ideia de que comunidades religiosas são comunidades políticas com interesses próprios e conflitantes. Nesta concepção, hindus, cristãos e muçulmanos não são apenas comunidades religiosas, mas também comunidades políticas que se opõem umas às outras.
Os colonizadores britânicos costumavam encorajar o comunalismo para manter os indianos divididos durante a luta pela liberdade e pela independência da Índia. Alguns setores na Índia formaram organizações políticas baseadas na visão de mundo do comunalismo. Essas organizações e partidos políticos são chamados de comunais. As mais mordazes costumam incitar a violência entre pessoas de diferentes comunidades religiosas, e termos como "violência comunal" e "motins comunais" são usados para se referir a tais confrontos.
O Bharatiya Janata Party (Partido do Povo Indiano, ou BJP), que é o partido que governa a Índia hoje, é um partido comunal. O BJP é a ala política de outra organização, a Rashtriya Swayamsevak Sangh (Organização Nacional de Voluntários, ou RSS). O RSS é a maior organização fascista do mundo, com oito milhões de membros, e pretende transformar a Índia em um Estado Hindu. O comunalismo é um princípio central do RSS e do BJP, que representam a seção mais poderosa da extrema direita na Índia.
A ideologia do RSS é chamada de Hindutva, que é ala da extrema-direita, a marca supremacista hindu do hinduísmo político.
Uma importante posição teórica que o movimento comunista na Índia manteve consistentemente desde o seu início na década de 1920 é que o comunalismo só pode ser combatido de forma eficaz por meio da unidade do povo trabalhador. A classe trabalhadora e o campesinato devem ser mobilizados em questões relativas às suas vidas materiais, e como eles – pertencentes a todas as comunidades religiosas – se unem como parte de lutas comuns. A unidade que cruza as fronteiras religiosas torna-se possível no nível das massas. A luta ideológica contra o comunalismo que deve ser combinada com lutas por demandas materiais.
Em termos práticos, as pessoas devem ser reunidas em diferentes frentes de luta, mobilizadas em organizações e politicamente educadas. É assim que a extrema direita pode ser combatida. Isso não pode ser feito apelando-se apenas para o bom senso do povo – que é a forma “liberal” de enfrentar a extrema direita. Certamente, devemos apelar para que as pessoas sejam boas umas com as outras, mas isso não faria muita diferença se suas condições materiais de vida continuassem miseráveis.
Essas miseráveis condições materiais de vida fornecem um terreno fértil para o crescimento da extrema direita. Tais condições precisam mudar para conter o crescimento da extrema direita. Para mudar essas condições, temos que acabar com o próprio capitalismo, que as cria. Em outras palavras, a luta contra a extrema direita não pode se limitar à luta contra a extrema direita.
A ideia de que construir a unidade dos trabalhadores é a forma de lutar contra o comunalismo (que constitui o maior obstáculo aos movimentos progressistas na Índia) é algo que o movimento comunista na Índia entendeu desde o início, e está provado na prática. Onde quer que os comunistas unam as pessoas na luta, as divisões comunais ficam em segundo plano.
Durante os períodos em que os comunistas lideraram os governos em Kerala, Bengala Ocidental e Tripura, a violência comunal foi mantida sob controle nesses estados. Organizações comunistas da classe trabalhadora, campesinato e juventude têm desempenhado um papel crucial nessas regiões na defesa do povo de ataques violentos da extrema direita. Tudo isso mostra o acerto da posição comunista em relação à luta contra a extrema direita. Traduzir isso para a prática em escala nacional, é claro, continua sendo o desafio crucial.
A presença do Primeiro Ministro Narendra Modi faz com que seja necessário atualizar a visão do movimento comunista? Que tipo de atualização seria essa? O que o movimento comunista deixou de fazer que permitiu a ascensão de Modi?
A Índia tem um sistema parlamentar, onde o partido ou a coalizão de partidos que ganha a maioria das cadeiras no Parlamento pode escolher o Primeiro Ministro, que lidera o Conselho de Ministros da União. Isto é diferente do sistema presidencial seguido pelos EUA ou pelo Brasil, onde um presidente executivo é eleito diretamente. Mas nos últimos anos, as eleições na Índia estão sendo cada vez mais projetadas como disputas entre personalidades, ao invés de disputas entre políticas ou programas. Isso faz parte do contexto no qual Modi está sendo projetado como um "homem forte".
Modi é um homem RSS. Como mencionei anteriormente, o BJP é a ala política do RSS, e Modi foi designado pelo RSS para trabalhar no BJP como parte de seu trabalho político. Ele se tornou Ministro Chefe do Estado de Gujarat em 2001, e foi amplamente visto como tendo desempenhado um papel importante ao possibilitar o massacre de cerca de 2000 muçulmanos em Gujarat no ano de 2002.
Enquanto o massacre foi condenado mundialmente, a violência comunitária e as campanhas cheias de ódio contra minorias religiosas permitiram ao BJP polarizar a sociedade. Isto resultou na criação de um "banco de voto hindu" que votaria a favor da BJP, beneficiando o eleitorado da BJP. As políticas econômicas de Modi beneficiaram as grandes corporações e prejudicaram a classe trabalhadora, tornando-se um querido das corporações. As corporações apoiaram ele e contribuíram com os fundos que sustentaram a propaganda da BJP e do próprio Modi, o que o ajudou a se tornar o primeiro-ministro em 2014.
As questões fundamentais não são tanto sobre a personalidade de Modi, mas sobre o mecanismo organizacional do RSS e o financiamento corporativo.
RSS tem numerosas organizações afiliadas que trabalham entre várias seções de pessoas, como estudantes, jovens, mulheres, trabalhadores e agricultores, mesmo que as políticas e políticas do RSS-BJP sejam claramente contra os interesses de todas estas seções. O RSS administra uma rede de escolas, onde são ensinadas aos estudantes falsidades sobre a história indiana e as minorias religiosas. Tem uma ala religiosa, e esta ala religiosa tem uma ala paramilitar, composta principalmente por jovens desempregados que são usados como tropeiros para perpetrar a violência comunal. As políticas do governo do BJP criam desemprego e miséria, e o RSS diz aos jovens desempregados, aos trabalhadores e agricultores descontentes que muçulmanos, cristãos e comunistas são responsáveis pelas dificuldades que enfrentam na vida. É assim que eles trabalham.
O trabalho organizacional da RSS e suas organizações afiliadas, incluindo a BJP, recebem um enorme apoio dos ricos, das corporações em particular. O governo da BJP criou um novo sistema de "laços eleitorais" para permitir que as corporações façam doações aos partidos políticos. Neste sistema, os partidos não têm que revelar quem doou a eles por esta via, e as corporações não têm de revelar a quem doaram. Desta forma, o suborno de partidos políticos pelas corporações tem sido legitimado. A maior parte do financiamento corporativo na Índia vai para o BJP. E em troca, a BJP dá enormes concessões fiscais às corporações, enfraquece as leis trabalhistas e reprime violentamente aqueles que se opõem às políticas da BJP. Vários críticos proeminentes da extrema-direita liderada por RSS na Índia foram assassinados e muitos foram presos nos últimos anos.
O que seria necessário para derrotar a extrema-direita na Índia? Os comunistas na Índia estão muito conscientes do fato de que assumir a extrema-direita liderada por RSS na Índia exigirá um trabalho demorado e meticuloso. A rede de organizações do RSS tem penetrado em todas as instituições estatais e em todas as esferas da vida. Combater isso requer intervenções que sejam igualmente ou até mais abrangentes.
Os comunistas praticam a crítica e a autocrítica, e têm sido incisivos ao afirmar que seu trabalho neste sentido tem que ser muito mais vigoroso. Por exemplo, o Partido Comunista da Índia (Marxista) - o maior partido comunista do país - diz que esta é uma batalha que tem que ser travada nas esferas social, cultural, ideológica e educacional. Sua avaliação é que a ofensiva de direita do governo do BJP na esfera das políticas econômicas tem que ser travada organizando e mobilizando diferentes setores da população trabalhadora em torno de uma aliança de trabalhadores-populares, e prevendo um conjunto alternativo de políticas em oposição às políticas neoliberais. Além disso, a mais ampla mobilização das forças laicas e democráticas tem de ser construída para combater o comunalismo.
Kerala é um caso de sucesso contra o coronavírus. Este sucesso se deve ao fato de Kerala ter um governo comunista?
A forma como Kerala lida com a crise da covid-19 tem sido amplamente elogiada. De fato, Kerala conseguiu enfrentar a pandemia muito melhor do que outros estados da Índia, em termos de manter o número de mortes relativamente baixo, ao assegurar instalações de saúde para todos e garantir assistência para as pessoas afetadas pela desaceleração econômica.
O governo estadual em Kerala, liderado pelos comunistas, começou os preparativos para um possível surto epidêmico muito cedo - na terceira semana de janeiro de 2020, antes de Wuhan entrar em isolamento. Kerala tem um sistema público de saúde robusto, que se tornou crucial na batalha contra a pandemia. Os governos liderados pelos comunistas têm sido eleitos muitas vezes em Kerala desde 1957. Sempre que os comunistas governaram o estado, eles pressionaram a expansão das instalações públicas de saúde. Os centros de saúde primária de Kerala (PHCs, que são as unidades básicas dos serviços de saúde pública na Índia) são particularmente conhecidos.
O atual governo comunista, que chegou ao poder em 2016, melhorou o sistema público de saúde de forma significativa e resistiu às tentativas do governo central (federal) liderado pelo BJP de privatizar os hospitais distritais no estado. Com a melhoria nas instalações das PHC, de acordo com os rankings oficiais, os 12 melhores centro de saúde da Índia estão agora em Kerala. Quando a pandemia atingiu o estado, o governo de Kerala nomeou mais trabalhadores da saúde, criou centros de atendimento COVID-19 e tomou medidas para fabricar itens essenciais como máscara, higienizador de mãos e luvas no setor público. Os testes e tratamentos nos hospitais públicos são gratuitos e disponíveis para todos no estado. Uma campanha, denominada "Quebre a Corrente", foi lançada para incentivar as pessoas a adotar as práticas necessárias para evitar a propagação da doença. Sindicatos e organizações de massa de esquerda de jovens e estudantes aderiram entusiasticamente à campanha.
O governo comunista de Kerala também tomou medidas para aliviar as dificuldades que as pessoas tiveram de enfrentar devido às restrições à atividade econômica, como distribuição de alimentos gratuitamente a todas as famílias e administração de cozinhas comunitárias em todo o estado para fornecer alimentos cozidos às pessoas que necessitavam. A tarifa de serviços públicos e os prazos de pagamento de impostos foram prorrogados, e todos os trabalhadores receberam assistência financeira.
O trabalho voluntário em larga escala da população também foi crucial na batalha contra a COVID-19 em Kerala. As pessoas mobilizadas por organizações de jovens, organizações estudantis e sindicatos desempenharam um papel proeminente neste trabalho, fabricando máscaras e higienizador de mãos, ajudando instituições locais na administração de cozinhas comunitárias e prestando assistência aos necessitados em casas, hospitais, call centers e salas de controle. As cooperativas têm contribuído com fundos para os esforços de ajuda do governo, enquanto as coletividades de mulheres têm administrado Restaurantes Populares que fornecem alimentos a preços acessíveis.
Em resumo, o trabalho do público em geral mobilizado por organizações populares está sendo integrado com o trabalho do governo e do setor público. Falamos de tudo isso com mais detalhes no estudo do Instituto Tricontinental "CoronaShock e Socialismo".
Edição: Rodrigo Durão Coelho