É a política que decide a tática, a estratégia e a logística da ação policial
O afastamento de Wilson Witzel (PSC) do governo do Rio de Janeiro está relacionado a seu discurso publicitário de guerra ao crime, que o tornou ‘’garoto propaganda" de operações policiais. É o que aponta a pesquisadora Jacqueline Muniz, uma das principais vozes no debate sobre segurança pública no Brasil.
"Eu alertei o governador de que ele seria algemado em seu próprio gabinete, de que ele estava sendo iludido, de que ele entregou a segurança pública de porteira fechada. Quando ele é o comandante chefe das polícias e ele diz que não tem controle sobre sua polícia, então ele não governa. Quem não governa a segurança pública não governa estado nenhum", afirma Muniz, que em 2003 foi diretora do Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública no Ministério da Justiça.
Integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e uma das fundadoras da Rede de Policiais e Sociedade Civil da América Latina, Muniz considera que a atuação midiática de Witzel revela falta de comando e despreparo ao exercer sua função. Ela define o governador como "amedrontado e inseguro no seu processo decisório".
"Você fazer publicidade, virar garoto propaganda de operação policial, sair correndo na frente de helicóptero, mostra que você não tem comando. Não tem decisão política. A política decide a tática, a estratégia e a logística da ação policial", afirma.
No Rio de Janeiro, desde a intervenção militar, em 2018, o aumento do número de operações especiais e da concepção de uma repressão generalizada é tida pela pesquisadora como um afastamento das corporações ao que ela chama de “estado da arte da ação da polícia”, que configura o o agir e uso concreto da força policial com base em políticas públicas.
“Cada operação mobiliza um recurso vultoso de polícia, gerando escassez de policiamento nas ruas e, mais que isso, incapacidade de pronta resposta da polícia para as demandas cotidianas da população”, define a professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Em entrevista ao Brasil de Fato, Muniz se refere à restrição das operações policiais durante a pandemia como uma decisão "exótica", mas que não deveria ser tratada dessa forma. Para ela, o STF só seguiu a doutrina internacional de polícia do uso da força, que define que os protocolos de atuação policial devem ser desenhados com amparo constitucional.
No início de junho, o alto índice de letalidade policial em plena pandemia foi o que motivou o Supremo Tribunal Federal (STF) a impor limites às operações das polícias Militar e Civil no Rio de Janeiro, como parte da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que ficou conhecida como “ADPF das Favelas”.
Após a determinação do ministro Edson Fachin, ampliada pela corte no último 18 de agosto, o número de pessoas mortas pela polícia reduziu 76% no estado em relação a junho e julho do ano passado. Os dados são do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro.
Ele está reproduzindo um discurso marqueteiro, de um marketing de terror, está blefando
O pedido que embasou o fim da operações foi enviado ao STF no fim de maio por uma Coalizão de Entidades da sociedade civil, movimentos sociais e movimentos de mães em resposta a uma série de ações policiais violentas ocorridas - como a morte de João Pedro.
Dados da Rede de Observatórios da Segurança indicaram que nos meses de abril e maio, as polícias do Rio de Janeiro superaram o recorde de 1.810 mortes provocadas em 2019. Só em abril, o aumento de óbitos por intervenção policial foi de 57,9%.
"Ninguém está proibindo polícia de entrar e sair de favela. Está se demandando expertise. Você faz uma operação de larga escala, em um território que é irregular, onde você não tem nível de controle de 360°, onde você tem pelo menos seis níveis de desvantagens táticas", explica a professora, com mais de 25 anos de pesquisa na criação de políticas públicas para a atuação das polícias.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Na última semana, o governador Wilson Witzel (PSC), afastado do cargo pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), culpou a decisão do Supremo pelo aumento nos conflitos envolvendo facções criminosas, afirmando que a atuação da polícia está "limitada por decisão judicial". Como você interpreta o discurso de Witzel e seu afastamento do governo?
Jaqueline Muniz: Eu alertei o governador de que ele seria algemado em seu próprio gabinete, de que ele estava sendo iludido, que ele entregou a segurança pública de porteira fechada, quando ele é o comandante chefe das polícias e ele diz que não tem controle sobre sua polícia, então ele não governa. Quem não governa a segurança pública, não se governa estado nenhum. Nada no estado, nem saúde, nem educação.
Porque segurança é a infraestrutura que permite que aos outros serviços poder entrar e sair de qualquer lugar do estado, de qualquer lugar da cidade. Na verdade ele está reproduzindo um discurso marqueteiro, de um marketing de terror, está blefando, um discurso corporativista, um discurso falso. Porque quando a polícia cruza os braços ela está sendo inconsequente e irresponsável. Guerra de facções, você vai deixar as pessoas se matarem e a população ficar exposta? É uma lição moral que você está dando? Que tipo de lógica autoritária é essa?
Esse tipo de situação é irresponsável, chantagista, que busca aparelhar o medo. Na verdade, quem se torna o primeiro refém do medo e da insegurança é o governante. Porque ele não mais governa, ele é governado. Então, ele é um governador temerário, temeroso, amedrontado e inseguro no seu processo decisório, e se tornou assim não foi por falta de aviso.
Você fazer publicidade, virar garoto propaganda de operação policial, sair correndo na frente de helicóptero, isso mostra que você não tem comando. Você não tem decisão política. A política decide a tática, a estratégia e a logística da ação policial. Quando você abrir mão disso, alguém pôs uma coleira em você. O seu vigia ficou mais forte do que você, agora ele vai te chantagear.
Melhor lugar para lavar dinheiro do crime é você ter um deputado, senador, vereador, um governante de estimação
Aqui no Rio de Janeiro eles fabricam susto porque a guerra contra o crime é uma guerra comercial, pela extorsão de uma economia política do crime. A guerra é publicitária. A polícia ostentação, a polícia tiroteio, o crime ostentação. Isso multiplica o medo. Nada melhor para multiplicar o medo do que tiro, porrada e bomba. E diante do medo você quer que o primeiro fortão de ocasião vá lá resolver. Só que o musculoso de hoje será o tirano de amanhã.
É gargalhante achar que produzindo violência, você contém a violência. Essa á dinâmica. Como isso se explica? Se explica para valorizar a economia do crime. Esse discurso serve para você tirar traficante de estimação e pôr outro, pôr o seu. Serve para você arrendar territórios.
É como se o estado funcionasse como uma grande imobiliária arrendando territórios para o crime. Tanto é que as milícias cresceram nesse período não é mesmo. Que é o principal domínio armado, e o mais perigoso, porquê vem de dentro do estado. Foi assim em outros lugares. Então será que são discursos publicitários a favor do crime ou contra ele? Do jeito que está sendo dito, é a favor do crime.
Qual a dinâmica de atuação da economia política do crime durante a pandemia e qual sua relação com as operações policiais?
Muitas das vezes essas operações são usadas. Você limpa o terreno para entrar um outro grupo criminoso, para subir o preço do alvará, das empresas, das firmas criminosas, que operam em consórcio com estruturas estatais. Então, prestam um desserviço à própria polícia.
Quer dizer, a "polícia do bem" está indo lá numa boa, vamos dizer assim, na boa intenção de combater o crime, mas a "polícia dos bens", aquela que lucra com a economia política criminosa e que organiza a política criminosa de dentro do estado, é quem se dá bem. Por isso que a vida do policial sai barata e a vida da comunidade, dos moradores dos espaços populares e periféricos, mais barata ainda.
Uma coisa que os jornais aqui noticiaram muito e que tem uma certa consequência grave é que, durante a pandemia, enquanto o tráfico dava toque de recolher, com kombis avisando que era para a população sair dos bares e ir para casa, a milícia mandava abrir o comércio.
A milícia feita de agentes da lei e de servidores público. Por que? Porque milícia que tem na favela cobra tudo, tudo você paga duas vezes. Ela precisa de dinheiro, tem o caixa 2 de campanha. Qual a principal lavanderia do dinheiro do crime? As carreiras eleitorais, as trajetórias.
Melhor lugar para lavar dinheiro do crime é você ter um deputado, senador, vereador, um governante de estimação. Isso não é novidade. Então, as milícias buscaram manter o seu faturamento. O sujeito que mora em área de milícia teve que escolher: ou morre de covid, pega a "gripezinha", ou leva um tiro.
A impressão é que os policiamentos no Rio foram sendo leiloados e privatizados de forma clandestina e ilegal, de tal maneira que o controle territorial tem sido mais realizado por bandos armados e milícias
Já o tráfico, ou segmentos do tráfico, viram no isolamento uma vantagem tática no território, porque eles tem uma vantagem da defesa, eles estão lá. Se eu esvazio, reduzo o número de pessoas no território, minha capacidade de pronta resposta diante de um ataque é maior.
A polícia não substituiu o policiamento por operação? Isso quer dizer que ela não controla território nenhum. Ela fez uma escolha. Não a polícia como um todo, segmentos da polícia. Aquele que vai invadir o seu território está em desvantagem tática. Então você consegue otimizar os seus "patrulheiros criminosos" para o controle territorial com a redução do fluxo de pessoas.
Você só tem o problema de controlar o território e não tem as escaramuças de grupos se disfarçando no meio da população. Percebam que ambos (milícias e tráfico) estavam usando táticas a serviços de seus negócios. O tráfico tem delivery. O delivery não começou com a pandemia. Você não precisa ir lá na boca pegar. Tem mototáxi para isso e um conjuntos de serviços, zaps que podem ser utilizados. Então obviamente, nós estamos falando de uma logística do crime, que cabe à polícia com informações de inteligencia, e trabalho de investigação, sobretudo a Polícia Civil, organizar suas formas de ação.
O que justifica as operações especiais e que papel elas exercem dentro das polícias no Rio de Janeiro?
Operação policial não é um remédio para qualquer doença. Ela é um evento de larga escala, mobiliza corpos táticos, e não é uma ação individualizada de polícia. A gente utiliza naquelas situações de elevado risco, incerteza e perigo, exatamente para "esfriar a chapa".
A "chapa está quente", tem uma conflagração, tem tiroteio, tem algo grave que está colocando risco, um crime em andamento, algo que o policial generalista não vai poder atuar ou resolver sozinho.
É preciso uma ação com grupos táticos, que uma polícia ingresse em uma determinada área com superioridade de meios e métodos para produzir baixa zero, ou seja, reverter a incerteza, o perigo, o risco, fazer o relógio andar para trás. Esse é o lugar das operações especiais no mundo inteiro.
É isso que deu origem à SWAT [ Special Weapons And Tactics, Armas e Táticas Especiais em português, é a unidade de polícia altamente especializada em grandes cidades dos EUA]o que deveria explicar a existência do BOPE [Batalhão de Operações Policiais Especiais] no Rio de Janeiro, e mesmo da CORE [Coordenadoria de Recursos Especiais], da Polícia Civil.
Você tem um recurso caro, nobre, para situações absolutamente especiais e excepcionais para usar no dia a dia. Aquele remédio amargo vai começar a não fazer efeito nenhum
No entanto, aqui as polícias foram abandonando o controle sobre território e população e fazendo o que eu tenho chamado de "síndrome do cabrito", que é o sobe e desce morro, ou seja, fazer operações.
A impressão que dá é que os policiamentos no Rio foram sendo leiloados e privatizados de forma clandestina e ilegal, de tal maneira, que o controle territorial tem sido mais realizado por bandos armados, milícias, Comando Vermelho, Terceiro Comando, e por firmas clandestinas de segurança, que mantém franjas assim como as milícias, como servidores públicos.
A polícia vai abandonando a sua razão de ser, que é produzir controle sobre território e população, e passa a ingressar nos territórios para ações pontuais, cujo efeito é limitado no tempo e no espaço. Por isso é que você não pode usar da operação policial como um recurso cotidiano. Ele é um recurso extraordinário, excepcional, repressivo, necessário, porém tem que usar dessa maneira limitada porque ele gera escassez de polícia.
Quanto mais eu emprego operação, menos fôlego a polícia tem de produzir controle sobre o território. Isto quer dizer que a ação dela, repressiva, acaba indo para a lata de lixo. Além de produzir danos, ao invés de conter os danos, porque você não tem como sustentar as operações de maneira indefinida.
A maioria dos policiais militares é não branca, mora nas periferias e vem de baixo. É como se fossem pretos, pardos e pobres vitimando pretos, pardos e pobres
Um exemplo. Se eu gastar 100 policiais em uma operação, é porque eu mobilizei 400, porque eu tenho que combinar escala de trabalho, turno, e tempo de duração. Então eu tirei 400 da rua para empregar 100, 400 policiais é o tamanho de um batalhão médio, que pode cobrir 300 mil pessoas.
Então primeiro tem uma dimensão técnica, tática, estratégica de polícia. Você não usa operação para tudo. Aí vai virar um band-aid. Você tem um recurso caro, nobre, para situações absolutamente especiais e excepcionais para usar no dia a dia. Aquele remédio amargo vai começar a não fazer efeito nenhum. Só vai produzir efeitos perversos, como a vitimização de cidadãos envolvidos com o crime e dos próprios policiais.
Esta é a rotina de operações especiais, que no Rio de Janeiro foi se vulgarizando, fazendo o policial de bobo, fazendo o policial de zumbi de patrulhamento, morto-vivo, que também está ali arriscando a vida dele. A serviço de que? Qual a meta? Qual a política? Que resultados tem produzido?
Porque não reduziu a dinâmica criminal. A criminalidade no Rio de Janeiro segue de vento em polpa, a economia política do crime segue maravilhosa lavando seu dinheiro em carreiras e trajetórias eleitorais. O que tivemos foi aumento do tiroteio, aumento das vítimas produzidas pela polícia e as vítimas que são policiais. Ttem gente que está morrendo? E quem está morrendo? Quem vem das periferias. Porque a polícia também vem de lá. A maioria dos policiais militares é não branca, mora nas periferias e vem de baixo. É como se fossem pretos, pardos e pobres vitimando pretos, pardos e pobres.
O que representa a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em restringir as operações policiais durante a pandemia?
O Supremo decidiu de maneira exótica, mas que não deveria. Porque uma política do uso da força, com as autorizações claras de onde começa e onde termina o exercício concreto do poder de polícia e seus protocolos de atuação têm que ser desenhados com amparo constitucional.
O que o STF faz? Ele reproduz a doutrina internacional de polícia do uso da força: operações só devem ser usadas em caráter excepcional durante a pandemia. Portanto, ele não impediu a polícia de agir, não algemou a polícia. Fazer pirraça, bico, bater pé, mimimi, coitadismo, porque ter que definir o que é excepcionalidade é no mínimo surpreendente.
Porque o que uma polícia tem que fazer é definir os modos de emprego de sua força em situações convencionais, ordinárias, cotidianas, e em situações de excepcionalidade, que como eu disse, justificam a necessidade de unidades operacionais, unidades táticas. Ninguém está proibindo polícia de entrar e sair de favela. Está se demandando expertise, você faz uma operação de larga escala, em um território que é irregular, onde você não tem nível de controle de 360°, onde você tem pelo menos seis níveis de desvantagens táticas.
Depois do caso que aconteceu em Minneapolis, a política do uso da força de Minneapolis está divulgada e sempre esteve no site da polícia. Os procedimentos de uso da força, os níveis de uso da força autorizados pela polícia, inclusive asfixiar pelo pescoço já era proibido desde 2000.
Polícia com a cabeça quente, o coração aflito e dedo nervoso, tem baixa capacidade de resposta operacional qualificada
Qualquer cidadão sabe o que esperar de sua polícia, qual o uso autorizado de força, quais são as modalidades de emprego de força, e isso não pode ser segredo, muito menos os protocolos. Eu tenho que saber o que esperar da minha polícia, porque assim ela será mais obedecida e vai reduzir as margens de incerteza e risco.
O que é uso letal da força, uso proporcional da força, excepcionalidade, esses requisitos são indispensáveis à ação de polícia. O STF não reinventou nada, ele foi até brando, porque ele falou em situações excepcionais. Ele está dizendo: faça uma operação com planejamento e gestão e defina o que é excepcionalidade.
É isso que define o agir e o não agir da polícia. Lembrando que o não agir é tão importante ou tão soberano como o agir. É diferente de cruzar os braços, deixar a desgraça acontecer porque você se recusa a ser controlado. Ao invés de ser o poder de polícia, vira o poder do policial. Não, o poder é da sociedade. É poder de polícia.
O poder de polícia no Brasil ele não está cerceado, aliás, ele tem baixa regulamentação. Que eu saiba não houve qualquer restrição do poder de polícia na sua execução.O que nós esperamos? Que a polícia explicite os seus critérios. Ela não pode agir sob forte emoção, porque quem age sobre forte emoção é o cidadão.
Polícia com a cabeça quente, o coração aflito e dedo nervoso, tem baixa capacidade de resposta operacional qualificada. Então, não adianta ela ir lá porque ela vai se dar mal. E ainda vai se desmoralizar, porque vai produzir matança, ou vai possibilitar uma matança, ou vai se expor à matança também.
É bom que sociedade saiba as limitações do poder de polícia são dados pela lei, o STF não limitou absolutamente nada, ele apenas lembrou a polícia que, em situação de pandemia não vai rolar. É bom que eles usem do critério de excepcionalidade, que já um critério que decide, delimita, qualifica, profissionaliza, e torna importante uma repressão qualificada feita pelas operações policiais.
Quem quer algemar e destruir a polícia não somos nós, que defendemos uma polícia profissional. Quem quer destruir a polícia são aqueles que estimulam a capangagem, a informalidade e a precarização policial.
Edição: Leandro Melito