Quando começamos a pensar em pautas públicas exigindo justiça para Marielle Franco e Anderson Gomes após 30 meses sem respostas, recuperei um vídeo guardado e nunca utilizado da campanha municipal de 2016. À época o candidato a Prefeitura do Rio de Janeiro pelo Psol era Marcelo Freixo. Por uma estranha decisão judicial, sua fala na escola de samba Unidos do Jacarezinho, na zona Norte da cidade, foi proibida o que obrigou o público a deslocar-se para um viaduto em Manguinhos, também na zona Norte.
Marielle Franco, recém-eleita era a mestre de cerimônia daquela manhã quente de outubro. As imagens que registrei naquele dia demonstravam sua energia vital na condução do diálogo com as lideranças de favela. Chamava uma por uma, brincava com a ansiedade daqueles que gritavam o nome da comunidade de origem, lembrava que estranhamente a Maré não estava na lista.
Era absolutamente inquestionável não só o carisma de Marielle mas sua capacidade de fazer da política uma arte de comunicação e afeto como contraponto ao cotidiano.
A sensação que tínhamos na cidade do Rio de Janeiro era que de uma forma ou de outra, conhecíamos e éramos próximos da vereadora Marielle Franco. Sensação rara em um universo de carros blindados, óculos e ternos escuros.
Aquele março de 2018 já apresentava um clima extremamente pesado. A intervenção no Rio de Janeiro era mais um capítulo das recentes violações dos Direitos Humanos. Feita por um presidente cujo cargo fora alcançado com um golpe. Um golpe iniciado na Câmara de Deputados e que tinha como principais bordões a defesa da família e da moral.
O apoio ao fascismo já estava ali, sorrateiro mas em escalada crescente.
Não é banal que no Dia Internacional da Mulher, uma vereadora seja interrompida em sua fala para entrega de flores. Fato que motiva o título deste texto pois foi a resposta dada pela vereadora ao colega em seu gesto de interrupção. Foi aplaudida.
Como cientista, ela apresentava os dados sobre violência contra mulher no Brasil. Um país com altos índices de feminicídio, violência doméstica e com baixíssima representação de mulheres nas esferas de decisão. Na Câmara, no Senado, nos ministérios, nas prefeituras.
Um dos momentos mais emblemáticos deste dia deve ser aqui apresentado: no momento em que Marielle chama atenção para o fato de que são 12 mulheres assassinadas por dia no Brasil e 13 estupros no Rio de Janeiro, um homem grita e interrompe sua fala. Ele grita “viva a Ustra”.
O desdobramento é bastante conhecido. Marielle franze a testa, “a gente tem um senhor que tá defendendo a ditadura e falando alguma coisa contrária a isto?” Solicita então que a presidência da casa, no caso de maiores manifestações que venham atrapalhar a sua fala, “assim proceda como a gente faz quando a tribuna interrompe qualquer vereador” . “Não serei interrompida, não aturo interrompimento dos vereadores desta casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita”.
Além disso, questiona o acesso das mulheres à cidade, lembrando aos vereadores que (queiram eles ou não) diversos relatórios apresentam a força e a centralidade destas mulheres mas também os números sobre mortes por lesbocídio. Enfrenta novamente os vereadores ao relembrar como o corpo negro das mulheres é tratado em situações públicas com piadas e afirma o valor da democracia em oposição ao escravismo. Sua posição contrária ao armamento da população também estava na contramão do clima que vigorava no país naquele março de 2018.
Em 2019, pesquisando sua biografia para um artigo sobre resistência, conheci algo ainda mais interessante: seu domínio sobre o mundo legislativo e a composição da Câmara, sua capacidade de pautar a creche, a saúde, seus projetos sobre habitação, sua crítica fundamentada em pesquisa sobre as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Sua trajetória como ativista, socióloga, mãe, moradora de favela e uma mulher fora do casamento heterossexual, confrontava naquele momento, o corpo do Estado.
E era março de 2018, quando os discursos de ódio endereçado às mulheres e o impeachment da presidente Dilma Rousseff já eram fatos consumados no cenário político nacional. Quando desfere a pergunta sobre “como ficam as mães e familiares das crianças revistadas” a vereadora vocaliza uma coletividade anônima representada por mães a familiares de mortos e desaparecidos no Rio de Janeiro. Entre 51 vereadores na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, apenas 6 são mulheres.
Marielle Franco foi assassinada no dia 14 de março de 2018. Naquele ano, uma escalada de ódio e violência ainda faria muitas vítimas fatais antes e depois da eleição de Jair Bolsonaro.
Quando recuperei a história de Marielle, recuperei também as falas de Deley de Acari nos anos de minha pesquisa de campo na favela. Estávamos a caminho de uma casa para entregar a carta de um preso à sua esposa. No caminho ele me contava que os homens iam presos, morriam, mas as mulheres adquiram problemas de pressão, diabete, assumiam toda carga familiar, inclusive a defesa de filhos mortos sob a mira do Estado e acusados de traficantes. Meninos de 10 anos cujo celular, fez com que a polícia atirasse julgando ser uma arma. Essas mulheres empreenderam ao longo dos anos um tipo de luta pouco comum. A luta que se trava contra o Estado com pouco ou nenhum apoio além de seus próprios braços e sua própria fé em uma justiça que nunca chega nesta e em outras cidades.
E depois da morte, a morte.
Foram cinco jovens mortos em 80 horas sob o comando do governador Wilson Witzel (PSC) em agosto de 2019. Nenhum tinha ligação com o crime e esta nunca deveria ser uma alegação aceitável para execuções sumárias por policiais militares.
Aqueles que não entenderam o que se passava na tristeza que tomou conta da cidade no dia 15 de março de 2018, posso afirmar que sabíamos exatamente o que estávamos perdendo. Sabíamos exatamente o que acontecia em cada favela nas últimas décadas. E por um breve espaço de tempo, parecia ser possível exigir algo menos sórdido. Exigir que ninguém mais tivesse sua vinda interrompida.
Como lutadora pelos direitos humanos, Marielle não aceitaria que sua fala fosse interrompida por apoiadores de governos anti-democráticos. Como mulher negra, Marielle estava engajada nas lutas de mães nas favelas. Como vereadora, explicitou a urgência de que as violências contra as populações das periferias tivessem fim. Marielle vive porque seu legado não se encerra com seu assassinato. Está nas ruas, nos debates, na defesa de uma democracia sempre necessária. Marielle presente, hoje e sempre.
*Luciane Soares da Silva é professora do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e vice-presidente da Associação dos Docentes da Universidade Estadual do Norte Fluminense (
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Mariana Pitasse