Silenciar diante de mais esse episódio seria admitir a fraqueza social no repúdio à “treva” política
Por Marilia Lomanto Veloso*
Somos vítimas desde 1850, quando foi criada a primeira Lei de Terra no país. Quando nós viemos para o Brasil no regime de escravidão, nós éramos vítimas. Nós continuamos vítimas até hoje. (Valmir Assunção, liderança do MST e Deputado Federal PT-BA)
O Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública, sob o argumento de apoio ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, através da Portaria 493 de 1º/09/2020, autorizou o emprego da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), nos assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) nos municípios de Prado e de Mucuri, no extremo sul do estado da Bahia.
A medida repercutiu e provocou manifestações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de coletivos organizados, do governador, do Ministério Público Federal, não só pelo grave momento da Pandemia que já enlutou milhares de famílias no país, como também pela afronta à autonomia do estado, portanto, ao Pacto Federativo.
Silenciar diante de mais esse episódio que reafirma a truculência e a ameaça do governo federal à saúde, à vida, à segurança de milhões de brasileiros e brasileiras, seria admitir a fraqueza social no repúdio à “treva” política, ética, cultural de quem preside o país.
Seria tensionar ainda mais o ambiente caótico, de recuos de conquistas civilizatórias, destituído de postura de bom senso e de capacidade de governar, organizado em torno de personagens de um governo federal tão inepto e desalumiado na condução do país quanto chulo, rude e subserviente na sua composição.
E consistiria ainda em ignorar a política genocida (e a “picuinha” política) protagonizada pela ausência do poder central e sua equipe na construção coletiva de um protocolo de enfrentamento da covid-19, que harmonize entes federativos (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) com as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Reflexões de ordem jurídica, política, ainda que em micronarrativas, se fazem forçosas, na perspectiva de incitar a compreensão sobre a postura invasiva, drástica e imprópria do ministro. Desse modo, importante, em princípio, reconhecer o espaço/território onde os objetivos da portaria se disfarçam de reforço para a segurança dos assentamentos, identificar o histórico de criação da Força Nacional e de sua utilização e indagar sobre o atuar solitário de ministros, sem conhecimento do governador do estado, no contexto do Pacto Federativo.
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Por fim, cogitar a respeito da real motivação do deslocamento de um efetivo de 100 agentes, com elevado custo para o erário e riscos para a vida das famílias assentadas.
Seria de fato a expectativa de “reforçar a segurança nos assentamentos da reforma agrária”, a razão essencial do envio de 100 agentes para os Municípios do Prado e Mucuri? Qual a dimensão das “conflituosidades” que exigiram resposta de tal magnitude?
Em nota sobre o episódio, o MST traça a posição geográfica da região, “localizada em um território com ricas e férteis” terras que seduzem a 'especulação financeira, o capital internacional e as oligarquias locais'”.
De modo igual enxerga o Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes) referindo-se ao espaço, para dizer que “o extremo sul da Bahia não é uma região qualquer". "Nela situa-se o Sítio do Descobrimento, berço da nacionalidade; seu litoral transformou-se num dos principais polos turísticos do País, com imenso potencial de crescimento; seus recursos naturais, os remanescentes da Mata Atlântica, o Parque de Monte Pascoal, o Parque Marinho dos Abrolhos, são ecossistemas para o país e o mundo”, explica o Centro.
Quem sabe ai habitam os motivos da avidez do poder, para além do discurso de segurança!
Na disputa pela cidadania no campo, destaca-se o MST, deslocando o espaço de luta para o “território do outro”, através de ações políticas de mobilização, marchas, ocupações, acampamentos e assentamentos em latifúndios improdutivos e terras devolutas.
Essa trilha metodológica para “transformar a realidade” é interpretada pelo sistema de justiça, amplificada pela mídia e validada como uma ameaça ao poder, pela opinião pública. De pronto, arma-se a orquestração ideológica de construir socialmente a criminalização do MST e do território onde se travam suas lutas como um espaço de sujeitos denominados pela ciência social de “excluídos”, “sem lugar no mundo”, etiquetados de “desviantes” para o sistema de justiça criminal.
Com isso, categoriza o povo sem-terra como perigoso, culpável, de conduta violenta, ou seja, um problema de segurança pública a exigir a repressão penal para a “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.
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O contexto revela que as tensões no campo expressam o resultado da exclusão social provocada pelas desigualdades, historicamente registrada no processo de colonização e acumulação da terra.
Nesse sentido é pertinente a indagação sobre a natureza da FNSP, que, a propósito, se inspira no programa de cooperação entre países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU), com intencionalidade interventiva nas missões de paz. Não se trata de um órgão federal, mas de “um instrumento de atuação da União na cooperação federativa em segurança pública”, como quer a legislação, segundo alerta a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF).
Desnaturada, portanto, a Portaria 493/2020, postura solitária do Ministro da Justiça e Segurança Pública, enviando a FNSP para o extremo sul da Bahia, sem expressa solicitação do governador. Alega o governo federal que tem respaldo na disposição do art. 4º do decreto 7.957/2013 que inclui ministro de estado na condição de solicitante do uso da tropa. Não obstante o registro legal referenciado, hipóteses de “intromissão” da Força estimularam a manifestação expressa dos procuradores do MPF em sentido contrário.
No caso da Esplanada dos Ministérios, em abril de 2019, o órgão do MPF expediu Nota Pública, afirmando que o Ministro Sergio Moro “extrapolou sua competência ao editar a Portaria MJSP 441/2019, que autorizou o emprego da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, por um período de 33 dias”.
No caso da Bahia, os procuradores federais condenaram o envio da tropa, afirmando a necessidade de solicitação do governo do Estado e do Distrito Federal “para determinar o emprego da Força Nacional de Segurança Pública em ações de preservação da ordem pública e da incolumidade da população”. (Igor Carvalho Brasil de Fato,03/09/2010). Pediram esclarecimentos ao Ministro da Justiça quanto à “ausência de expressa solicitação do governador do estado da Bahia para o uso da Força Nacional” (http://www.mpf.mp.br/pfdc/noticias).
O Governador da Bahia, Rui Costa (PT), irresignado, questionou a autorização e decidiu acionar a PGE para entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), no Supremo Tribunal Federal (STF), questionando a portaria. Prevista no art. 102 da Constituição Federal, a ADI se constitui um dos instrumentos legais identificados como “controle concentrado de constitucionalidade das leis””, significando a “contestação direta da própria norma em tese”.
Na entrevista concedida ao Metrópoles, Rui Costa informa ter enviado carta ao ministro da Justiça, “questionando a legalidade de enviar a Força Nacional para a Bahia sem a solicitação do estado”, sem comunicação formal ou informal. E completa: “Além de eu não ter solicitado, nem mesmo me informaram”.
Em nota, o MST expressa que “é ultrajante que o governo faça uso da força para invadir nossos espaços produtivos” e deveria se preocupar com a saúde do povo. Para o MST, a política do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) se revela em ações “para desagregar a luta pela reforma agraria”.
Nesse sentido, denuncia que a força será usada contra as famílias assentadas ou acampadas na região. "A expectativa do Movimento é de que “a Justiça faça valer o Pacto Federativo” como inscrito na Constituição Federal, “já que a GLO (ação de garantia da Lei e da Ordem) autorizada pelo ministro não foi pedida pelo governador, e sim, pela ministra da Agricultura, Teresa Cristina”.
Fato a considerar é que a portaria que autoriza a FNSP para além dos debates em torno da inconstitucionalidade, revela, de modo irretorquível, a perversidade e a morbidez do governo no trato com sujeitos que integram a população vulnerável.
Denuncia, de modo inconteste, que o Estado foi criado como rede protetora dos interesses da classe que domina, mas seu discurso se mostra como instrumento que representa o interesse comum, de todos. O Direito, nesse texto, além de compor a estrutura ideológica da dominação, também se curva a infraestrutura econômica. O Direito penal nada mais é que um instrumento de manutenção da ordem social. A mesma que serve para “criar as condições legais para a repressão física aos movimentos sociais”. (Via Campesina Brasil, 2010)
Despolitizando os conflitos agrários, o sistema de justiça criminal elege as pautas penais como sede da luta dos trabalhadores do campo, e cria, na sociedade silenciada, o mito da “segurança jurídica”, como quer fazer o Ministro com a sua FNSP.
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Marx ensina que “não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida". (Ideologia Alemã).
O lugar de fala nos assentamentos do Prado e de Mucuri pertence às famílias assentadas, aos lutadores e lutadores do MST, “realmente ativos”, vivendo o “processo de vida”! que é a luta pela cidadania e pela inclusão.
“Eles nos acusam de crime porque nós ameaçamos o poder deles. [...] Então, a terra para eles não é necessidade. É diferente. A terra para nós é necessidade de vida. Para a gente sustentar a família, comer, viver dignamente. Para os grandes não é isso. O grande latifundiário, o grande empresário, é poder. É o poder econômico. (Dejacira Araújo, MST Bahia) (Grifo nosso)
*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito Penal, Professora aposentada da UEFS. Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, membro do CDH da OAB/BA, da AATR, da RENAP e da ABJD.
Edição: Rodrigo Chagas