Política

Fim de clima de diálogo entre governo e oposição na Argentina estabelece novo cenário

Chefe de governo do PRO se opõe à resolução do presidente para conter protestos policiais e impulsiona candidatura

Brasil de Fato | Buenos Aires (Argentina) |

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Anúncio do presidente Alberto Fernández para resolver conflito policial: transferir 1% de coparticipação da capital federal à província de Buenos Aires. Decisão irritou chefe de governo da capital. - Agência Télam

Desde o início da pandemia, o governo nacional da Argentina e as forças de oposição que governam a capital federal, em geral, dialogaram muito bem quanto às medidas políticas contra o coronavírus.

No entanto, com a resposta às críticas manifestações policiais da semana passada, o presidente Alberto Fernández (Frente de Todos) decidiu pôr em prática um plano que vinha sendo discutido como possibilidade, e que resultou no corte de relações pacíficas com a oposição: retomar o ponto extra de fundos de coparticipação da capital federal.

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Outorgado, em seu momento, pelo ex-presidente Mauricio Macri (PRO), o ponto equivale a cerca de $30 bilhões de pesos, que seriam transferidos à província de Buenos Aires. Dessa forma, o governo da província poderia arcar com o ambicioso projeto de ampliação e reajuste salarial da polícia bonaerense.

Ao quitar um ponto de fundos de coparticipação da cidade de Buenos Aires, onde está situada a capital federal, o presidente Fernández comprou uma briga direta com o chefe de governo da cidade de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta (PRO). A reação não tardou com projeção nacional, Larreta anunciou que levará o caso à Corte Suprema, e se posicionou como uma figura de diálogo. "Não serei eu quem aprofundará a polarização, jamais", enfatizou, logo no início de seu discurso, onde também apontava a medida do governo nacional como "inconstitucional".

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Internas e desacordos no macrismo

Se a projeção trouxe os holofotes a Larreta, por outro lado, amplia as disputas dentro do próprio partido fundado por Macri, que ainda se equilibra na liderança após perder a reeleição. "Sem dúvidas, esse anúncio foi o lançamento da campanha de Horacio Larreta", avalia a politóloga María Esperanza Casullo. "O problema que ele tem, agora, é a sua relação com Macri."

No dia seguinte ao anúncio de Larreta, Macri lançou uma carta no jornal La Nación, repudiando a medida de Fernández. Além do apelo ao duelo de "bons" e "ruins", ao utilizar adjetivos como "luz" e "escuridão" ao referir-se às diferentes posturas políticas, a carta foi uma aposta por reafirmação de espaço, diante da grande projeção que teve Larreta na noite anterior. 

O novo cenário firma a Larreta definitivamente como figura central na oposição ao peronismo do governo atual, representada, hoje, pelo macrismo e pela coalizão de direita Juntos por el Cambio. Por um lado, poderia ser uma medida inevitável por parte do presidente, diante de uma crise com repercussão internacional com o protesto de policiais armados – e que alarmou a sociedade por referências similares que culminaram em golpes na América Latina –, por outro, seria uma decisão consciente, que, como aponta Casullo, seria o primeiro conflito determinado pelo governo Fernández.

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"Na América Latina, é muito difícil governar sem conflito. Quase impossível. A questão é se você escolhe que conflito, e com relação a quem, vai enfrentar, ou se recebe passivamente os que jogam sobre você", afirma. Nesse sentido, a primeira postura não apenas reativa à oposição, o governo atual também estabeleceu a agenda. Imediatamente após o anúncio do presidente, o que parecia ser uma grande crise política protagonizada pelos policiais saiu completamente de foco e as manifestações logo se dispersaram.

Entendendo a coparticipação

Para o advogado e secretário da Comissão Provincial pela Memória, judicializar a decisão de corte na coparticipação da capital federal era a única saída de Larreta. "É algo comum na Argentina: recorrer à justiça cada vez que alguma província se vê afetada na coparticipação. Era o que ele devia fazer, inclusive politicamente", aponta. "Mas a transferência de fundos para a província é um pedido justo, por ser a maior e acumular grande parte da população que se erradica nela."

A base percentual da coparticipação foi estabelecida em 1988 por uma lei praticamente intocável, por requerer o acordo entre todas as províncias com as novas distribuições. O Estado Nacional recebe as arrecadações de impostos federais de cada província e as distribui através da porcentagem firmada pela coparticipação, de acordo com a população e a contribuição de cada província.

"Pela impossibilidade de modificar essa distribuição, os governos vigentes adotam diferentes estratégias para redistribuir os fundos de acordo às necessidades e a interesses políticos também", conclui Cipiriano. Por isso, é reajustada por meio de decretos desde sua criação, mas essencialmente não corresponde às grandes mudanças que sofreram muitas províncias, como a própria Buenos Aires que, segundo Casullo, é a mais castigada na distribuição nacional de fundos. "40% dos habitantes da Argentina estão concentrados em Buenos Aires. Ao mesmo tempo, as províncias que recebem mais não têm interesse na reformulação da lei, ninguém quer sair perdendo."

Perspectivas

Estabelecido um novo cenário político, cabe acompanhar como se desenvolverá um contexto de ruptura entre a capital federal e o governo. Talvez seja cedo demais para pensar nas eleições de 2023, porém, movimentos importantes foram feitos no tabuleiro político nos últimos dias.

De fato, a ex-ministra da Segurança do macrismo e presidente do PRO, Patricia Bullrich, em entrevista há poucos dias, afirmou: "Somos vistos pela sociedade como uma possível substituição deste governo para as eleições de 2021." Considerando que ano que vem dá lugar a eleições legislativas, e não presidenciais, uma interpretação que surgiu de sua fala a classifica como "golpista".

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Essa leitura faz eco com o alarme com que foram recebidos os protestos policiais na última semana. A partir de brechas como a fala de Bullrich, Casullo avalia uma possível turbulência social e política prolongada. "Soa preocupante, pondo em contexto com outros países latinoamericos, a exemplo do que aconteceu na Bolívia, no Equador e no Brasil. É um momento em temos que redobrar o compromisso com as regras do jogo da democracia."

Edição: Marina Duarte de Souza