Goma fala de armaduras e desconstruções de amarras colocadas sobretudo sobre jovens negros e LGBT's
O curta-metragem Goma utiliza vinte minutos para explorar a relação entre uma sociedade contraditória e os dilemas intimistas de um jovem poeta que enfrenta batalhas de rap.
O enredo adentra pelos desafios uma interseccionalidade complexa em que a homofobia muitas vezes pode ser alimentada mesmo por quem levanta bandeiras de luta política como afirmação preta e contra a opressão da luta de classes.
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Goma venceu o Festival Nacional de Cinema Universitário Tainha Dourada na categoria de ficção. A história é protagonizada por Kid, um jovem negro, morador de periferia, que enfrenta o racismo e a homofobia diariamente. Kid vê nas rimas um território de encontros e desencontros, ao mesmo tempo.
Para o ator, músico e poeta Daniel Silva, que interpreta Kid, o dilema do personagem está no fato dele não conseguir estar nas batalhas de rimas, local que gosta, mas não permite manter seu próprio jeito de ser.
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“Kid teve de abrir mão, se aventurar em outras coisas que vão dar prazer, que vão abrir e expandir os horizontes dele. Mas alí, na batalha de rima, uma coisa que ele curte fazer, infelizmente, ele se vê numa necessidade de sair daquele local”, apresenta.
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Na opinião de Daniel, apesar das opressões cotidianas, Kid encontra um pilar afetivo e artístico no personagem Preto, que na trama se apresenta como companheiro e confidente das contradições do protagonista.
“Além de todas as coisas, do preconceito, ainda há um respiro para o Kid, que é essa outra persona. E que é uma persona igual a ele. A diferença é que a outra persona é bem resolvida, é um pilar gigante que o Kid vê e fala ‘pô, eu tenho aquele cara alí’. Para além da relação afetiva, o Preto tá ali”, analisa.
Vitor Romenior é estudante de Educomunicação na Universidade de São Paulo (USP). Ele participou do processo de direção e roteirização do curta.
“Nós tínhamos muitos caminhos a seguir quando abraçamos a trama de um personagem que é gay, preto e periférico, e que está em um processo de amadurecimento e que tem muito o que provar e entender também. Essa individualidade é o regresso para si mesmo, é voltar para sua 'goma'. É o momento em que ele começa a entender quais são seus limites e onde ele quer estar de fato. E é entender que nem sempre você precisa ser um produto que a sociedade impõe a você”, explica.
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O estudante e diretor também aponta que a produção se preocupou em não criar uma visão maniqueísta, evitando rotular determinados espaços.
“A ideia de abordar o slam e a batalha tem mais a ver com ambientar o curta em lugares com presença na 'perifa', que conversem com a gente e com essa massa [popular]. Conseguimos, nessa ocasião, destacar alguns conflitos que a dinâmica da batalha impõe e que deveriam sim ser reavaliados. Mas é importante que a gente se conscientize do quanto esse tipo de opressão é comum e pode acontecer dentro de um slam, dentro de uma partida de futebol, de um espaço religioso ou até mesmo na produção de um curta. Eu acho que esses lugares são nossos patrimônios e somos responsáveis por uma construção constante e consciente deles”, analisa.
Tanto o ator Daniel quanto o diretor Vitor são jovens negros que vivem em periferias na cidade de São Paulo. Daniel, por exemplo, afirma que há uma sensação de normalização da violência nos últimos anos.
“Parece que a cada minuto tem um vídeo no Instagram, no Youtube, de uma nova violência gerada, muito provavelmente por pessoas que apoiam esse governo. Um governo que naturaliza preconceito, machismo, racismo, homofobia. Isso me dói, revolta. E isso gera um monte de coisas aqui dentro. Toda vez que isso acontece é como se uma parte de mim caísse. Ainda mais quando se junta tudo, quando é o preto gay, quando é a preta lésbica, mãe solo”, enfatiza.
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Vitor fala também sobre o momento complexo e de crises estruturais em que vivemos.
“Acho que a gente vive um momento em que há um discurso fascista e um ode à cultura da morte respaldado pelas autoridades. Acho que essa resistência deve vir acompanhada de conscientização. Quando estoura uma pandemia, por exemplo, essas divisões sociais ficam bem mais claras e a gente, da periferia, acaba pagando a maior parte da conta. Aí a gente percebe que é 'nós por nós' e que não vale a pena 'surfar' nessa onda da elite que quer nos colocar um contra o outro. Essa conscientização, para mim, é o motor para construir um lugar mais saudável e seguro para nós mesmos", pontua.
Goma fala de empoderamento, identificação, respeito, confiança e história. Mas também sobre reprodução de contradições, valores e moldes socialmente impostos pelo racismo e pelo patriarcado. Fala de armaduras e de desconstrução de amarras colocadas, sobretudo, diante de jovens pretos e pretas e LGBTs.
Melhor ficção
Goma venceu a categoria de ficção do 9º Festival Nacional de Cinema Universitário Tainha Dourada. A premiação aconteceu em agosto e destacou outras obras nas condições de documentário, animação, áudio, edição, roteiro, fotografia, direção e direção de arte, além duas votações de júri popular.
A edição deste ano contou também com a novidade da “categoria regional aberta”, que recebeu vídeos realizados por pessoas da região do Vale do Itajaí, que não estavam matriculadas ou formadas em cursos acadêmicos.
A celebração do Festival foi online por conta da pandemia do novo coronavírus e contemplou filmes produzidos a partir de 2018. Os filmes do Tainha Dourada compuseram também a Mostra Universitária Nacional, Mostra Univali, Mostra Acessível e Mostra Aberta Regional.
Edição: Daniel Lamir