"Não se trata de um caso comum, mas repleto de motivações políticas"
Editor-chefe da Shadowproof, portal dos Estados Unidos, dedicado à cobertura de abusos de poder nos negócios e no governo, Kevin Gosztola é um dos jornalistas que cobrem o processo sobre a extradição de Julian Assange, em Londres.
O jornalista, que também é documentarista, fez a cobertura do julgamento militar de Chelsea Manning, ex-militar e fonte dos documentos vazados pelo Wikileaks.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Kevin Gosztola afirma que o caso de Julian Assange é um alerta para jornalistas de todo o mundo, porque representa um ataque à liberdade de imprensa e ao trabalho de denúncia dos crimes de guerra por parte dos EUA e outros governos colaboradores.
“Julian Assange nunca assinou nada declarando que não compartilharia segredos norte-americanos, e isso abre a porta para um futuro em que o governo dos EUA pode decidir, caso tenha sucesso no julgamento de Assange, que pode ir atrás de um jornalista no Brasil, por exemplo, ou de um jornalista no Oriente Médio que obtenha documentos sobre as atividades de guerra estadunidenses, ou talvez iriam atrás de um jornalista na África do Sul, quem saberia dizer? Não haveria nada que os impeça”.
Durante a conversa, ele retoma o histórico de violações dos direitos de Assange, incluindo espionagem durante os anos que passou na embaixada do Equador no Reino Unido, e os riscos da extradição do jornalista australiano para o país norte-americano.
“Isso também pode levar outras potências no mundo a seguirem os mesmos passos, e haveria um declínio na liberdade de imprensa no mundo todo. Qualquer país com poder, que vê o que os EUA estão fazendo, pode decidir fazer o mesmo, e querer proteger seus segredos de jornalistas também. Eu creio que isso seria terrível para o mundo”, afirma.
Além disso, Gosztola considera que só a pressão internacional poderá impedir a extradição de Assange.
"Se Julian Assange ganhar esse caso de extradição, vai ser porque as pessoas de todo o mundo se opõem ao que o governo norte-americano está fazendo. Vai ser porque jornalistas e diversas organizações de direitos humanos reconhecem a ameaça do governo estadunidense. Vai ser porque todos reconhecem que isso será um problema no futuro".
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: O que está em jogo no caso de Julian Assange?
Kevin Gosztola: Julian Assange é o cofundador do WikiLeaks, onde foi chefe de edição por diversos anos. Ele criou o WikiLeaks, que foi construído para forçar a transparência de governos em todo o mundo, já que muitos governos esconder informações que deveriam estar disponibilizadas publicamente, para saber o que os líderes mundiais estão fazendo.
::Novo velho continente e suas contradições: Assange e a história universal da infâmia::
Em 2010, o WikiLeaks recebeu mais de meio milhão de documentos de uma soldada norte-americana que atuou em Bagdá, na Guerra do Iraque. O nome dela é Chelsea Manning. E ela providenciou informações que revelaram como o Exército estadunidense estava administrando as guerras no Iraque e no Afeganistão. Mais de 250 mil mensagens diplomáticas foram reveladas, e dados sobre todos os indivíduos que foram levados à prisão militar de Guantánamo, em Cuba. Um dos destaques era também o vídeo do “Assassinato Colateral”, que mostrou um ataque de um helicóptero Apache no Iraque, onde dois jornalistas da Reuters foram abatidos, e um cidadão que passou por ali e tentou ajudar, também foi baleado por soldados estadunidenses. A Reuters tentou adquirir uma cópia desse vídeo, mas o pedido foi recusado e ninguém foi punido pelo caso.
Isso é algo que o WikiLeaks e a Chelsea Manning chamam de crime de guerra. Todas essas revelações deram notoriedade ao WikiLeaks, que já estava ativo desde 2007, mas isso o levou a outro patamar, passaram a estar na mira dos EUA, que ficaram envergonhados com as revelações.
Quais são as acusações contra Assange?
O caso contra Julian Assange envolve 18 acusações, 17 delas sendo violações de uma única lei norte-americana chamada Ato Contra Espionagem e a forma como o Departamento de Estado vem usando essa lei foge um pouco de sua intenção original. Julian Assange não está sendo acusado de distribuir documentos secretos a algum inimigo dos Estados Unidos. Os documentos foram enviados a ele, e ele publicou como qualquer meio de comunicação no mundo faria. Mesmo assim, os Estados Unidos estão aplicando essa lei de um jeito como nunca tinham feito antes, indiciando quem publicou. Geralmente, ao longo dos últimos 20 anos, essa lei foi usada contra servidores federais ou do governo que atuaram como delatores, que revelaram informações [secretas], eles nunca indiciaram alguém como Julian Assange.
É por isso que entidades relacionadas à liberdade de imprensa no mundo todo estão preocupadas com o que o governo norte-americano está fazendo, por isso os alarmes por todo o mundo.
Quais são os argumentos da defesa?
O argumento principal da defesa de Julian Assange é que ele está sendo perseguido politicamente por Donald Trump. O presidente estadunidense e seu governo veem o WikiLeaks e Julian Assange como uma ameaça ao país.
Outro ponto que a defesa quer demonstrar é que Assange expôs crimes cometidos pelos EUA durante guerras e prisões de indivíduos. Os documentos expuseram tortura, sequestros pela CIA, crimes de guerra pelo Exército norte-americano, expuseram as mentiras que estavam sendo contadas sobre as pessoas detidas em Guantánamo, para justificar suas detenções por tempo indefinido.
Logo, a defesa quer mostrar que Julian Assange não deve ser extraditado, porque existe algo conhecido como dupla criminalidade. Em resumo, isso aconteceria quando a pessoa indiciada é quem expôs criminalidade, em primeiro lugar, e como retaliação, é tratada como criminosa.
Existe uma razão política por trás da extradição de Assange para os EUA, pois não se trata de um caso comum, mas repleto de motivações políticas.
O que pode acontecer com Assange se ele for extraditado para os EUA?
Ele pode esperar por meses em alguma prisão, em condições extremamente restritivas, beirando o confinamento solitário. A maneira que ele será tratado pode violar leis de direitos humanos, no sentido de que ele pode ser submetido a tratamentos cruéis e desumanos, porque seria impedido de se comunicar, ou por não poder ver a luz do sol todo dia, e seria impossível formular sua estratégia de defesa [nessas condições]. Ele também pode acabar esperando um ou dois anos antes de finalmente ser julgado e tentar provar que é inocente dos crimes pelos quais é acusado.
Se for julgado nos EUA, isso acontecerá em um distrito em que parte dos habitantes trabalham nas agências de inteligência norte-americanas, no Exército e outras entidades do governo, e eles formariam o júri que analisará o caso e decidirá se Julian Assange cometeu um crime ou não. E é por isso que muitas das pessoas que acompanham o caso sentem que, se for julgado ali, será muito difícil para a defesa provar que ele não fez nada de errado, porque muitos do júri já terão preconceitos sobre o caso, e muito provavelmente já são contra tudo que Julian Assange fez.
Duvido que haveria justiça imparcial se Julian Assange for julgado lá.
Se ele for considerado culpado dessas acusações, seria preso e, muito provavelmente, em condições restritivas, com uma longa sentença, e, de novo, poderia ser submetido a tratamentos desumanos em uma prisão norte-americana. Isso afetaria sua saúde. Já vimos diversos relatos sobre a saúde física e mental de Julian Assange, que vem se deteriorando.
Cabe recordar que ele entrou na Embaixada do Equador em 2012 e saiu em 2019. Ele mal via a luz do sol, não podia ir a lugar nenhum. Ele temia que seria perseguido pelo governo dos EUA, então ficou nessa embaixada, e isso contribuiu pra essa tortura psicológica, é assim que seus defensores descrevem o que aconteceu, especialmente ao longo dos últimos anos em que ele estava na embaixada, quando ele sofreu diversos assédios.
:: Qual o impacto da possível extradição de Assange para a democracia e a justiça? ::
Como a imprensa está cobrindo o julgamento?
A imprensa dos EUA acredita, em grande parte, que esse caso não é justo, que o Departamento de Estado não deveria estar indo atrás de Julian Assange. Editores de vários meios já escreveram diversos artigos mostrando que esse caso é um perigoso para jornalistas no país e do mundo todo que querem fazer seu trabalho.
Porém, a mídia não vêm cobrindo a história com tanta frequência como em outros lugares, tipo a Inglaterra, ou partes da Europa. Creio que é justo dizer que houve mais interesse na América do Sul do que nos EUA. Parte disso tem a ver com o fato de que muitos na imprensa estadunidense não consideram Julian Assange um jornalista, pois acreditam que seja mais um ativista do que qualquer outra coisa.
Eu realmente acho que cometem um grande erro em não pautar mais esse caso nos EUA. Sinto que muitos cidadãos norte-americanos não sabem o que está acontecendo nesse caso.
O que o governo norte-americano está fazendo é dizer que tem a autoridade para indiciar qualquer jornalista, em qualquer país, se eles possuem documentos secretos estadunidenses.
Qual é a importância do caso de Julian Assange?
De certa maneira, acho o caso importante para o mundo todo, já que todo o mundo viu o conteúdo desses documentos que o WikiLeaks se arriscou em publicar. As comunicações reveladas abrangem todos os países com quais os EUA têm relações diplomáticas, e mostram o que os governos desses países estavam escondendo de seu povo. Na América Latina, no continente africano, na Ásia, na Europa, na Austrália, país de origem do Assange, todo mundo descobriu algo que seus governos estavam escondendo, especialmente no que se diz respeito a esforços clandestinos em conjunto com o governo estadunidense.
E acho que também deveríamos nos preocupar com o fato de que Julian Assange não é um cidadão norte-americano, logo, é ainda mais alarmante que o governo dos EUA diga que tem a autoridade de indicia-lo, que é um jornalista internacional.
::Denunciante da Guerra do Vietnã diz que EUA agem por vingança contra Assange::
Julian Assange nunca assinou nada declarando que não compartilharia segredos norte-americanos, e isso abre a porta para um futuro em que o governo dos EUA pode decidir, caso tenha sucesso no julgamento de Assange, que pode ir atrás de um jornalista no Brasil, por exemplo, ou de um jornalista no Oriente Médio que obtenha documentos sobre as atividades de guerra estadunidenses, ou talvez iriam atrás de um jornalista na África do Sul, quem saberia dizer? Não haveria nada que os impeça.
Isso também pode levar outras potências no mundo a seguirem os mesmos passos, e haveria um declínio na liberdade de imprensa no mundo todo. Talvez a China um dia decida ir atrás de alguém em algum país distante, ou o governo russo, ou talvez Israel decida fazer isso para se impor. Eu creio que isso seria terrível para o mundo, e que devemos nos opor ao que os EUA estão fazendo, para que, no futuro, outros países não façam o mesmo com jornalistas internacionais, pelo simples fato de esses países também possuírem segredos.
Existe alguma chance de Julian Assange vencer o processo?
Se Julian Assange ganhar esse caso de extradição, vai ser porque pessoas de todo o mundo se opõem ao que o governo norte-americano está fazendo. Vai ser porque jornalistas e diversas organizações de direitos humanos reconhecem a ameaça do governo estadunidense. Vai ser porque todos reconhecem que isso será um problema no futuro. Ele vai precisar de políticos e governos, eu entendo que existem políticos na Alemanha, na França, na Espanha e em outros países europeus que demonstraram interesse no caso.
Ele vai precisar de pessoas se opondo ao Reino Unido e contra o que esse governo está fazendo, com a decisão de permitir que os EUA fossem adiante com seu pedido de extradição. Vai ter que ter muita pressão, pois, francamente, a juíza que está presidindo o caso tem um péssimo histórico. Ela aprovou 96% de todos os pedidos de extradição que passaram por sua Corte.
Então, as coisas não parecem boas para a defesa, mas poderão apelar, e poderão argumentar que houve abusos no processo, e alegar que os direitos humanos de Assange foram violados durante o processo de extradição. Sua equipe jurídica pode tentar fazer isso para impedir a extradição. E acho que eles teriam sucesso em Cortes mais altas, depois que esse teatro termine.
Porém, isso vai precisar de uma campanha de pressão global para envergonhar o governo norte-americano.
:: Acompanhe a cobertura completa das Eleições Presidenciais dos EUA em 2020 ::
A próxima eleição dos EUA pode ter um impacto no caso de Assange?
Talvez ocorra uma mudança política, tem uma eleição nos EUA em 2020, o ex-vice-presidente Joe Biden está desafiando Trump pela presidência. Ele foi parte do governo Obama, foi o vice de Barack Obama, mas não sabemos se ele seria contra a extradição de Julian Assange. Ele não tem um histórico de ser contra o que Donald Trump está fazendo com Julian Assange.
Donald Trump é um republicano, Joe Biden é um democrata, e ambos aparentam ser contra o que Julian Assange fez, ambos veem o WikiLeaks como um oponente dos EUA. E existe um acordo mútuo de que algo deve ser feito para barrar o WikiLeaks. Não estou seguro que haverá a força de vontade política dentro do Departamento de Estado estadunidense de abandonar esse caso contra Julian Assange. Existem muitas pessoas comuns, como eu e você, que trabalham no Departamento de Estado que acreditam que esse caso tem mérito e deve ser mantido. Independente se Joe Biden ou Donald Trump for presidente, isso talvez não os impeça de seguir em frente com esse caso contra Julian Assange.
O caso contra Julian Assange tem a ver com a estratégia de Trump de guerra contra a imprensa?
O que está acontecendo com Julian Assange pode ser entendido dentro do contexto de uma guerra contra jornalistas nos Estados Unidos, e é esse contexto que a defesa quer pautar desde o começo dos procedimentos de extradição. Eles chamaram testemunhas que falaram sobre o cenário do jornalismo sob o governo de Donald Trump, que, como líder dos EUA, já utilizou sua conta pessoal no Twitter para atacar jornalistas.
Grupos que monitoram esse comportamento apontam para mais de 2 mil ocasiões em que Trump atacou jornalistas, às vezes até chamando alguns pelo nome de inimigos do Estado. Enquanto isso, sua administração está constantemente tentando desbancar a cobertura midiática do governo e o que estão fazendo em relação a coisas que são de grande importância no mundo todo, inclusive como estão lidando com a pandemia global de covid-19, com os incêndios florestais no país, com os protestos, e mentindo sobre como a polícia reage com abusos contra cidadãos, defendendo a violência contra cidadãos.
O governo realmente está se esforçando para convencer as pessoas que muitos jornalistas, como nós, estão espalhando mentiras para a população e tentando derrubar Donald Trump. Isso criou um clima no qual eles estão motivados para ir em frente com o caso de Julian Assange.
Eles não são defensores da liberdade de imprensa, eles são contra esse tipo de discussão aberta e a liberdade de expressão que muitos no mundo apoiam.
Donald Trump já chegou a declarar que amava o Wikileaks. Como você analisa isso?
O fato que Donald Trump apoiou Julian Assange e a WikiLeaks em 2016 é algo que é estranho, é um aspecto bizarro desse caso, porque não parece que Trump devia ter deixado esse caso continuar, já que ele acredita ter se beneficiado pela publicação de documentos do WikiLeaks contra sua oponente à presidência, Hillary Clinton.
Logo, eu acho que algumas pessoas de fato se surpreenderam quando o governo Trump buscou indiciar Julian Assange, já que em alguns momentos da campanha, ele celebrou o trabalho do WikiLeaks.
O governos dos EUA espionou Julian Assange?
Esse é um aspecto que deveria ser muito preocupante para as pessoas, porque a defesa não está apenas travada num caso sobre liberdade de imprensa, mas também numa batalha legal contra uma operação de espionagem, que foi feita contra Julian Assange enquanto ele estava na Embaixada equatoriana. Muitos casos como esse acabam sendo invalidados quando a própria procuradoria comete atos ilegais, onde a justiça imparcial fica literalmente impossibilitada de acontecer.
Enquanto Assange estava na embaixada, havia uma empresa de segurança privada, chamada Undercover Global, que estava espionando-o e as pessoas com quem se encontrava. Esse é um caso atualmente aberto na Espanha, onde Julian Assange abriu um processo alegando que essa operação de espionagem, sancionada pela inteligência norte-americana, ocorreu contra ele. Essas pessoas cometeram crimes que violam a privacidade, e as Cortes espanholas estão decidindo o que fazer, e isso vai se entrelaçar com o caso de extradição.
Então, é fundamental mostrar que, mesmo que seja um crime trazer esse caso contra Julian Assange, já deveriam ter perdido o direito de julgar o caso, pois a Procuradoria violou seus direitos quando o espionava, enquanto estava em um asilo dentro de uma embaixada, ele deveria ter sido protegido e seus direitos respeitados.
*Tradução: Ítalo Piva
Edição: Marina Duarte de Souza