Após o presidente Jair Bolsonaro desistir de lançar um novo programa social para substituir o Bolsa Família, o Congresso Nacional deve avançar na discussão do tema. Nos últimos dias, o senador Marcio Bittar (MDB-AC), que é relator do Orçamento da União para 2021, se reuniu com o próprio Bolsonaro, que deu o sinal verde para o parlamentar trabalhar na inclusão de uma proposta de renda mínima que possa vigorar a partir do ano que vem, quando já não haverá mais o auxílio emergencial.
Mas o próprio Legislativo já vem debatendo o assunto e até sugerido iniciativas para lidar com a ampliação da pobreza e o aumento da fome no país. Em julho, foi criada a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Renda Básica, composta por deputados e senadores de 23 partidos. Uma das propostas apresentadas é a regulamentação da Lei de Renda Básica de Cidadania, aprovada em 2004, e que prevê o pagamento de um benefício mensal para todos os cidadãos brasileiros e estrangeiros que residam no país há pelo menos cinco anos. A lei foi de autoria do ex-senador Eduardo Suplicy (PT-SP), defensor histórico da pauta.
"Todos os indicadores apontam que a pandemia e o resultado dela vão além do fim do ano. Temos brasileiros passando fome, dados do IBGE mostram isso, e a tendência é aumentar. Precisamos de uma renda básica definitiva", aponta o senador Paulo Paim (PT-RS), autor de um projeto de lei, o PL 4.194/2020, que regulamenta a Lei de 2004, instituindo uma renda de R$ 600 por unidade familiar.
Outra iniciativa nessa direção foi proposta pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA). Um projeto de lei (PLP 213/2020) de sua autoria estabelece o valor R$ 800 pago a famílias vulneráveis com crianças até 6 anos de idade. Até os 3 primeiros anos de vida, o pagamento seria o valor integral, com reduções progressivas de R$ 100 nos anos seguintes, até a criança completar os 7 anos.
"As discussões no Congresso estão amadurecendo. Quero aprofundar esse debate e apresentar o nosso projeto de criação de uma renda básica da primeira infância. O grande diferencial é apontar a origem dos recursos para bancar o programa. Veja que na nossa proposta, os recursos virão da taxação de grandes fortunas e de dividendos. O que não podemos concordar é com programas sociais que sejam financiados por mais arrocho em cima de pobres, assalariados e classe média", afirma.
Tributar os mais ricos
O grande desafio - e o principal motivo de divergências - para a criação de um programa de renda mínima é exatamente de onde virá o recurso público para bancá-lo. Emparedado pela emenda do teto dos gastos, que impede o Estado brasileiro de aumentar os gastos sociais, o governo vai precisar cortar gastos de outros setores fundamentais, como saúde, educação e aposentadorias, ou terá que criar impostos, para poder criar um programa de renda básica.
"A implementação do Renda Brasil iria tensionar um outro conflito para dentro do governo, que é colocar à prova os interesses de outras camadas, que são da base aliada do governo. Colocaria em xeque a manutenção do teto dos gastos. Dentro do orçamento possível não há condições de se implementar um programa como o Renda Brasil. Das duas uma, ou revoga o teto de gastos ou remaneja o orçamento de modo que cause um dano político para o Bolsonaro, como desvincular repasse para áreas de educação e saúde. Ele realmente ficou num beco sem saída", afirma a economista Iriana Cadó, especialista em Economia Social e do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A irritação do presidente Jair Bolsonaro com a sua equipe econômica, que o levou a dizer que o assunto estava encerrado no governo, foi causada justamente porque a imprensa revelou os planos do governo para criar o Renda Brasil, que incluía medidas como o congelamento das aposentadorias, o fim do abono salarial, do seguro-defeso (pago a pescadores artesanais) e do Farmácia Popular (que assegura remédios gratuitos para famílias pobres).
"A equipe econômica de Bolsonaro sugeriu hipóteses absurdas de financiamento para o Renda Brasil. Apareceram propostas de redução do BPC [Benefício de Prestação Continuada, pago a pessoas pobres com deficiência], congelamento de benefícios da Previdência (aposentadorias, pensões, auxílios doença e salários-família) por dois anos. Tudo isso é algo absurdo, impopular e que sepultaria o governo", afirma Eliziane Gama.
Para a economista Iriana Cadó, não há caminho possível para criar um programa de renda básica que não seja revogando a emenda do teto de gastos e realizando uma reforma tributária que taxe os mais ricos e alivie os mais pobres.
"Em primeiro lugar, é preciso revogar imediatamente a emenda do teto de gastos, porque isso congela qualquer possibilidade de valorização de orçamento das despesas primárias, na qual está inserida a política de distribuição de renda. A segunda medida seria fazer uma reforma tributária mais progressiva. Isso daria um certo colchão de liquidez orçamentária, que seria poderia ser revertido imediatamente para políticas de distribuição de renda.
Ela também rebate o argumento de aumento de gastos do governo, já que uma melhor distribuição de renda seria benéfico como forma de girar a economia.
"Em médio e longo prazo, medidas de distribuição de renda acabam se financiando pelo impacto que têm na dinâmica de consumo dessas famílias que recebem o benefício", diz.
Na mesma linha, senador Paulo Paim avalia que o Brasil não pode mais ignorar a necessidade de enfrentar a extrema desigualdade que assola o país. "qual é nação do mundo que não tributou grandes fortunas ainda? Dá para contar nos dedos. Por que não enfrentar esse debate, de forma equilibrada, mas firme? Mais de 10,5 milhões de brasileiros foram jogados de volta na miséria, e isso vai piorar", afirma.
Edição: Rodrigo Durão Coelho