A gente perdeu a conexão com os alimentos produzidos nas nossas regiões
No país que tem a maior diversidade genética de plantas do planeta e habita o imaginário de muita gente como a terra em que se plantando tudo dá, não é difícil imaginar porque foi naturalizada a percepção de que frutas, verduras e legumes de qualquer espécie estão disponíveis o ano todo. No entanto, a perda de noção sobre a sazonalidade dos alimentos que vêm da terra está muito mais relacionada a hábitos cada vez mais homogeneizados do que ao potencial do solo brasileiro.
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Para garantir tomate, alface, laranja, banana, cenoura e mais uma infinidade de espécies no supermercado em qualquer mês, é preciso mudar o tempo dos processos naturais das plantas, fazer uso de técnicas que evitem pragas, mudar a composição da terra e usar estufas e outras tecnologias. Tudo isso causa impactos diretos no preço e no valor nutricional dos alimentos.
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"Nós vivemos uma vida agitada e alimentação se tornou ir ao supermercado e comprar o que está disponível sem pensar em quem produziu, como foi produzido e onde foi produzido." afirma a professora Suellen Secchi Martinelli, do curso de nutrição da Universidade Federal de Santa Catarina. "A gente perdeu a conexão com os alimentos produzidos nas nossas regiões", completa.
Do ponto de vista da produção, oferecer alimentos fora de estação significa acelerar o ciclo natural das plantas. Para isso, são utilizados processos que modificam os nutrientes da terra, estufas que controlam a iluminação e a temperatura do ambiente onde estão as culturas e até defensivos químicos para combate a pragas.
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É certo que algumas dessas tecnologias muitas vezes são usadas para garantir segurança alimentar. No entanto, as chances de um alimento fora de estação ser orgânico, portanto mais saudável, são mínimas. É comum, inclusive, o uso do termo "estressar a planta" quando se fala sobre as mudanças no processo natural de desenvolvimento das espécies.
Para Altamir Passos, agricultor assentado da reforma agrária e que trabalha com a implementação de agroflorestas, comer uma fruta, verdura ou hortaliça de uma planta "estressada" pode trazer consequências ao equilíbrio do próprio corpo. "Você estará remando contra a maré", afirma. Ele explica que para desenvolver uma planta fora de época, certamente o produtor precisará fazer modificações no solo, com uma carga maior de nitrogenados e potássio, por exemplo.
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Na agroecologia, segundo Altamir, há uma tentativa de não utilizar essas práticas. "É muito mais fácil, muito mais tranquilo para nós. Nós nos desafiamos a ter uma diversidade maior de alimentos. Vamos plantar inhame, taioba, batata doce. No canteiro que tem o inhame hoje tem cenoura, beterraba, alface, berinjela. E tudo vai dar no seu tempo", ressalta.
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A professora Suellen atua no Observatório de Estudos em Alimentação Saudável e Sustentável da UFSC. Ela explica que o consumo de alimentos da estação também tem um componente de sustentabilidade poderoso e que pode mudar as relações entre quem produz, quem consome e a própria natureza.
"É uma preocupação da área da nutrição que haja um retorno a esse hábito alimentar cultural e a essa aproximação com o produtor, para que isso melhore todos os sentidos. A sustentabilidade ambiental, com a redução das distâncias dos transportes, a nossa própria qualidade nutricional da alimentação. Ingerindo esses alimentos orgânicos, que sejam transportados por pequenas distâncias, que não precisem de nenhum produto para aumentar a vida de prateleira. Esse retorno, essa conexão é essencial para pensar numa alimentação mais saudável e mais sustentável", defende.
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Altamir ressalta a importância de resgate desses vínculos. "A atual sociedade está fazendo isso de as pessoas perderem o vínculo com o campo, a natureza, o meio ambiente. Nós precisaríamos ter, desde pequeninho, aula na escola para ter uma educação alimentar. A cultura alimentar que nós temos hoje é reducionista. 90% da nossa alimentação são vinte alimentos diferentes. Nós temos muito o que aprender e o que por no prato", explica.
Edição: Daniel Lamir