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Artigo | Bolívia: impera o silêncio sobre o golpe apoiado pelos EUA

Organização dos Estados Americanos teve um papel fundamental na destruição da democracia do país em novembro passado

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Morales foi o primeiro presidente indígena da Bolívia, país que tem a maior porcentagem de população indígena do que qualquer país das Américas - Andres Larrovere / AFP

A Bolívia desabou em um pesadelo de repressão política e violência estatal racista desde que o governo democraticamente eleito de Evo Morales foi derrubado pelos militares em 10 de novembro do ano passado. Aquele mês foi o segundo mais letal, em termos de mortes de civis causadas pelas forças do Estado, desde que a Bolívia se tornou uma democracia há quase 40 anos, de acordo com um estudo da Clínica Internacional de Direitos Humanos da Harvard Law School (HLS) e da University Network for Human Rights (UNHR) ) lançado há um mês.

Morales foi o primeiro presidente indígena da Bolívia, país que tem a maior porcentagem de população indígena do que qualquer país das Américas. Seu governo conseguiu reduzir a pobreza em 42% e a pobreza extrema em 60%, resultados que beneficiaram desproporcionalmente os indígenas bolivianos. O golpe de novembro foi liderado por uma elite branca e mestiça com histórico de racismo, que buscava reverter o poder do Estado para aqueles o monopolizavam antes da eleição de Morales em 2005. A natureza racista da violência estatal é enfatizada no relatório da HLS / UNHR, incluindo relatos de testemunhas oculares de forças de segurança que usavam “linguagem racista e anti-indígena” enquanto atacavam os manifestantes; também fica claro pelo fato de que todas as vítimas dos dois maiores massacres cometidos pelas forças do Estado após o golpe eram indígenas.

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O que tem recebido ainda menos atenção é o papel da Organização dos Estados Americanos (OEA) na destruição da democracia na Bolívia em novembro passado.

Como noticiou o New York Times em 7 de junho, a análise “errada” da organização imediatamente após as eleições de 20 de outubro alimentou “uma cadeia de eventos que mudou a história da nação sul-americana”.

As alegações da OEA foram, de fato, o principal fundamento político para o golpe e continuaram por meses. Na Bolívia, as autoridades eleitorais relatam uma contagem preliminar de votos, que não é oficial e não determina o resultado, durante a apuração dos votos. Quando 84% dos votos tinham sido apurados, nesta contagem preliminar, Morales tinha 45,7% dos votos e estava à frente do segundo colocado por 7,9 pontos percentuais. A publicação dessa contagem não oficial e não vinculante foi interrompida por 23 horas e, quando voltou a veiculada, a vantagem de Morales havia aumentado para 10,2 pontos. No final da contagem oficial, era diferença para o segundo colocado era de 10,5 pontos perncentuais. De acordo com as regras eleitorais da Bolívia, um candidato com mais de 40% dos votos e pelo menos 10 pontos de vantagem vence no primeiro turno, sem a necessidade de segundo turno.

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A oposição alegou que houve fraude e foi às ruas. A Missão de Observação Eleitoral (MOE) da OEA emitiu nota à imprensa, no dia seguinte às eleições, expressando “profunda preocupação e surpresa com a mudança drástica e de difícil de explicação na tendência dos resultados preliminares após o fechamento das urnas”. Mas não forneceu evidências para apoiar essas alegações de fraude - porque não havia nenhuma.

Isso já foi repetidamente demonstrado por uma série de estudos estatísticos especializados. Mas a verdade era bastante clara e fácil de ver pelos dados disponíveis imediatamente após a eleição. E, de fato, o Center for Economic and Policy Research, onde sou codiretor, usou esses dados para refutar as alegações iniciais da OEA no dia seguinte; e acompanhou-se com uma série de análises estatísticas e trabalhos nos meses seguintes, incluindo a refutação do seu relatório final de auditoria.

Não houve mudança inexplicável na tendência. Tudo o que aconteceu foi que as regiões que estavam sendo apuradas mais tardiamente eram mais pró-Morales do que as que, até aquele momento, haviam reportado seus resultados, por várias razões geográficas e demográficas. É por isso que a vantagem de Morales aumentou quando chegaram os últimos 16% dos votos, da mesma forma que vinha aumentando ao longo da contagem preliminar. Esta é uma dinâmica bastante comum que pode ser encontrada em eleições por todo o mundo.

Mas depois de seu comunicado inicial à imprensa, a OEA produziu mais três relatórios, incluindo sua auditoria preliminar dos resultados eleitorais, sem nunca considerar a possibilidade óbvia de que as regiões, de onde provinham as apurações posteriores, fossem politicamente diferentes daquelas cujos votos ocorreram antes. Esta é uma prova contundente de que os funcionários da OEA não cometeram simplesmente um erro em suas repetidas alegações de fraude, mas parece que tinham conhecimento de que suas alegações eram falsas. Desafia a imaginação conceber como esta explicação simples - que é a primeira coisa que ocorreria à maioria das pessoas, e acabou por ser verdadeira - não tenha ocorrido nem mesmo aos peritos eleitorais, no processo de meses de investigação. Enviei um e-mail à OEA para saber se ela levava em consideração as diferenças entre os eleitores bolivianos, mas não recebi resposta.

Em 2 de dezembro, 133 economistas e estatísticos publicaram uma carta à OEA, observando que “o resultado final era bastante previsível com base nos primeiros 84% dos votos relatados” e conclamando a OEA “a se retratar de suas declarações enganosas sobre a eleição”. Quatro membros do Congresso dos Estados Unidos, liderados por Jan Schakowsky, também opinaram com uma carta à OEA fazendo 11 perguntas básicas sobre sua análise. Mais de nove meses depois, a OEA ainda não respondeu.

Em julho, o Congresso dos Estados Unidos realizou briefings com altos funcionários da OEA e os confrontou com algumas das mesmas questões; eles não deram respostas substantivas.

Com as denúncias de fraude originais e politicamente decisivas cada vez mais desacreditadas, a OEA recorreu a “irregularidades” nas eleições para manter o ataque à sua legitimidade. Mas descobriu-se que essas alegações, como as baseadas em afirmações estatísticas, não resistiam a um escrutínio.

Enquanto isso, a Bolívia tem uma presidente de fato, Jeanine Áñez, que chamou as práticas religiosas indígenas de “satânicas”. Em janeiro, ela advertiu os eleitores contra “permitir o retorno de 'selvagens' ao poder, uma aparente referência à herança indígena de Morales e de muitos de seus apoiadores”, segundo o Washington Post. O seu governo deveria ser um governo “provisório”, mas as novas eleições - agora marcadas para 18 de outubro - já foram adiadas três vezes por causa da pandemia, segundo as autoridades.

As engrenagens da justiça movem-se muito lentamente após os golpes apoiados pelos Estados Unidos. E o apoio do governo Trump foi explícito: a Casa Branca promoveu a narrativa da "fraude" e sua declaração orwelliana após o golpe a elogiou: “A saída de Morales preserva a democracia e abre caminho para que o povo boliviano tenha sua voz ouvida.” De acordo com o Los Angeles Times, “Carlos Trujillo, o embaixador dos Estados Unidos na OEA, dirigiu a equipe de monitoramento eleitoral do grupo para relatar fraudes generalizadas e pressionou o governo Trump a apoiar a derrubada de Morales”, uma alegação que Trujillo nega.

Jan Schakowsky e Jesús “Chuy” García, do Congresso dos Estados Unidos, pediram recentemente que esse órgão “investigue o papel da OEA na Bolívia no ano passado e assegure que os dólares dos contribuintes não sejam utilizados para a derrubada de governos democraticamente eleitos, conflitos civis ou violações de direitos humanos”.

Isso seria um bom começo.

*Mark Weisbrot é codiretor do Centro de Pesquisa Econômica e Política em Washington. Ele é o autor de Failed: What the ‘Experts’ Got Wrong About the Global Economy

**Publicado originalmente em The Guardian | Tradução de César Locatelli