Uma pessoa dentro de um tubo de ensaio. É esta a sensação que o filme O dilema das redes, de Jeff Orlowski, transmite. Não é só uma sensação, eles dizem. É real. E dizem mais. Já se tornou lugar comum a ideia de que, se não pagamos para usar, nós somos o produto. Mas, mesmo que possamos tentar não ser o produto, de nada adianta se a grande massa de usuários continua a ter seus dados vendidos e manipulados, contribuindo, desta forma, para a disseminação generalizada de discursos de ódio e de notícias falsas.
“As redes sociais são um cérebro e seus usuários, os neurônios”. Pode parecer uma analogia assustadora, mas é com ela que ex-funcionários do Facebook, Google, Twitter, Instagram definem, no filme, o modus operandi das redes sociais em escala global. É interessante, mas o que me vem à mente é uma metáfora mais vulgar onde os usuários são átomos de uma peça em um tabuleiro de War.
O impacto nocivo das redes sociais na política e nos rumos da sociedade já foi bem documentado no filme Privacidade Hackeada (Karim Amer, Jehane Noujaim, 2019), que releva o uso ilegal de dados do Facebook de pelo menos 87 milhões de pessoas em campanhas para o referendo do Brexit, no Reino Unido, na eleição do presidente Trump, nos Estados Unidos, e na eleição de Jair Bolsonaro, no Brasil.
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O tema também é abordado no livro A máquina do ódio (2020), no qual a autora, Patrícia Campos Mello, demonstra como, influenciados pelas redes sociais, eleitores tendem a valorizar políticos extremistas ao invés de moderados. Isso porque: “Só políticos com ideias polarizadoras têm usado as mídias sociais de forma eficiente para manipular eleições”.
O que O dilema das redes mostra, porém, não é um esquema ilegal, mas o funcionamento normal e legal das empresas. Um sistema que parecia se limitar a ficções como as de Aldous Huxley e de George Orwell, com suas obras visionárias, O Admirável Mundo Novo (de 1932) e 1984 (de 1949).
Mais de trinta anos depois do ano de 1984, quando se daria a distopia imaginada por Orwell, o admirável mundo das redes sociais permite acesso fácil e barato a informação, entretenimento, comunicação e até a criação de conteúdo, mas castiga o mesmo globo que conecta, abrindo caminho para políticos e movimentos histriônicos e irresponsáveis em um ambiente de polarização que faria a Guerra Fria corar.
O interessante do filme O dilema das redes está justamente nos relatos duros de pessoas que estavam dentro da engrenagem. Além disso, ele conta com o apelo de uma realidade trágica: Brexit, Trump, Bolsonaro e toda a ofensiva obscurantista desafiando a lógica em plena era da tecnologia da informação. Uma realidade que se ergueu justamente sobre as bases expostas no documentário.
Me pergunto como chegamos a este ponto se alarmes sobre os perigos do uso massivo e descontrolado da internet e das redes sociais soam há tanto tempo. Tecnologia que, apropriado ressaltar aqui, foi criada para uso militar e amplamente utilizada na reestruturação do setor financeiro.
Autores que buscaram compreender os fundamentos da sociedade moderna, como Theodor Adorno, Max Horkheimer e Michel Foucault, já problematizavam questões como a reprodução em série, a massificação cultural, a perda da identidade, a vigilância e o controle social. Eles trazem em suas teorias pistas de como o mundo poderia chegar à situação que o filme nos apresenta.
Mas não são apenas estas teorias abstratas as referências. Desde a segunda década deste século o jornalista e ativista Julian Assange tem demonstrado claramente o sistema de controle político e social perpetrado pelas empresas que dominam a internet. Ele disse, por exemplo, no prefácio à edição brasileira de seu livro “Quando o Google encontrou o Wikileaks”, de 2014, que “O Google exemplifica os terríveis perigos da internet corporativa. Desde muito cedo, seus fundadores perceberam que o processamento de informações em grande escala os colocaria no centro de tudo”; e que: “Os brasileiros devem se conscientizar de que, quando usam os ‘serviços’ do Google, estão sendo aliciados para entrar em um relacionamento com uma mega corporação estrangeira global muitos milhões de vezes mais poderosa do que eles e sujeita a poucos mecanismos de prestação de contas”.
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Assange conta no livro como as redes sociais manipularam as mega manifestações que varreram o Oriente Médio e o Norte da África, em uma série de eventos que se tornaram conhecidos como “Primavera Árabe”.
Trazendo para a realidade brasileira, constatamos que o mesmo fenômeno inflou o nosso Junho de 2013, roubando, naquele momento, o protagonismo de entidades organizadas (e com propósitos). Daquela catarse social, na qual a opinião pública se confundia com likes e retuítes, nasceram as condições para se viabilizar a Lava Jato, a derrubada de uma presidente eleita democraticamente, o governo Temer, a retirada de direitos sociais, a prisão injustificada do ex-presidente Lula e a eleição de um deputado federal caricato e do baixo clero como presidente da República.
Na esteira destas contradições e injustiças sociais, Julian Assange, que escancarou o verdadeiro dilema das redes sociais, é tratado pelo establishment como um marginal. Um dilema entre a democratização da informação e da comunicação, por um lado, e o controle político sobre os indivíduos através da apropriação de seus dados nas redes, por outro.
Não há resposta fácil. Estamos presos à conectividade, às redes sociais e aos efeitos que elas produzem, e esse é um caminho sem volta. A velocidade da informação e da comunicação já reorganizou o mundo e a tendência é ela se aprofundar. Renunciar também seria uma forma de alienação e de pouco adiantaria. A questão é: seremos um neurônio em um grande cérebro virtual, um átomo em uma peça de War? Nos deixaremos dominar ou dominaremos essas sedutoras ferramentas? Eis o dilema existencial que aflige a humanidade desde que o homem começou a transformar a natureza.