A pandemia impulsionou uma ‘velha’ ideia: o ensino à distância. E tal situação acirrou desigualdades
Por Geraldo Miranda Pinto Neto
Uma professora, em um domingo, ao ser questionada sobre a ampliação de determinado prazo pelo grupo de Whatsapp, solicitou que a mensagem fosse enviada por e-mail, pois aquela forma precarizava o seu trabalho.
Uma outra professora foi questionada em decorrência de uma rápida participação da sua mãe e de seu cachorro durante a aula de apresentação da disciplina. Um professor ficou constrangido ao ter que cuidar de uma criança [seu filho] que chorava ao lado enquanto estava em uma reunião.
Outro professor, ao demorar pouco mais de meia hora para responder determinado questionamento no grupo de Whatsapp da turma, foi surpreendido com a seguinte mensagem feita por um estudante: "Ele nunca responde". Uma professora, com experiência em sala de aula, desabafou: "estou angustiada com o retorno das aulas e com a forma que elas serão ministradas".
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Em uma reunião, determinada professora afirmou que precisou comprar um ar condicionado e uma cadeira porque passava o dia todo sentada, derramando suor. Os demais professores presentes afirmaram que precisaram fazer adaptações em casa.
Determinado estudante solicita: "Professor, tem como disponibilizar a gravação da aula? Lembre de lançar a atividade nas tarefas da plataforma!". Durante as aulas e reuniões sempre se escuta a frase: "Está travando!". A frase dita: "Estou com covid!", ou o relato de que familiares contraíram a doença, tornaram-se comuns.
Determinado professor, recebeu a seguinte mensagem: "Professor, não posso abrir a câmera porque estudo na sala, ao lado da minha família, não tenho um quarto". Inúmeras frases de reclamações sobre o ensino remoto são ditas aos professores, transferindo uma responsabilidade que não é deles.
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Tais frases e situações aconteceram comigo ou foram por mim presenciadas ou compartilhadas a partir de março de 2020 no âmbito da docência do ensino superior. Sei, que para os demais docentes espalhados no país, também se tornaram comuns.
Isso é reflexo de uma mudança abrupta na forma de ensinar. Em decorrência do isolamento social imposto para conter uma pandemia mundial, as instituições de ensino passaram a adotar o ensino remoto, um ensino à distância que se alterna entre aulas síncronas (‘ao vivo’) e aulas assíncronas (que o estudante poderia estudar em qualquer momento).
E o que as frases narradas acima e a adoção do ensino remoto nos apresenta para a qualidade de trabalho docente?
Tal situação narra uma ampla precarização do ensino dos profissionais da área da educação. E traz alguns levantamentos e questões. A primeira delas é o uso massivo das redes sociais para o trabalho, ou seja, o que antes era visto como forma de aproximar o convívio familiar e social, tornou-se de forma imediata e autoritária num instrumento de trabalho.
Não importa o horário ou o dia: os docentes receberão mensagens em aplicativos de respostas simultâneas relacionados ao trabalho.
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Um outro aspecto envolve a invasão do espaço da casa (local de descanso, lazer, relaxamento, cuidado com outros membros familiares etc.) pelas atividades de trabalho. A casa dos(as) docentes foi e é amplamente divulgada ao restante da comunidade acadêmica, os espaços e objetos individuais e personalíssimos tornaram-se públicos.
As situações rotineiras de uma casa quando se tornam públicas, como o cuidado de crianças ou a circulação de demais membros familiares, gera uma situação de constrangimento. Para além disso, o ensino remoto envolveu adaptações em espaços e mobílias, sem contar, que o gasto necessário para o trabalho recai nas costas dos trabalhadores, como a energia, internet, cadeira etc.
A situação de angústia permanente também acirra a precarização do trabalho. Há uma grande preocupação sobre a lida com as ferramentas tecnológicas, que, convenhamos, apesar de inúmeros treinamentos fornecidos pelas instituições, não se aprende do dia para a noite.
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Há uma preocupação se os discentes estão aprendendo, afinal, salas de aulas com câmeras desligadas e sem o contato do olho no olho, geram incertezas e desconfortos, afinal, qual professor(a) nunca passou pela situação de perguntar se os estudantes estavam compreendendo e, apesar do silêncio, reconhecer a dificuldade no processo de aprendizado?
Há uma preocupação sobre as condições de ensino desse estudante (local, convívio familiar etc.) e uma angústia natural em tempos de pandemia: verificar pessoas adoecendo e morrendo.
Os(as) docentes tiveram o seu direito de imagem surrupiados pela pandemia. Num mundo globalizado, altamente informatizado e com uma evidente insegurança nos dados obtidos pelas redes, fica a impressão de que os grupos que fornecem os encontros em tempos reais já se apropriaram dos rostos, dos sons e dos pensamentos de grande parte dos professores e professoras.
Sem contar, no reforço e na ampliação de uma sociedade do controle na sala de aula: na possível vigilância permanente sobre o que é ensinado, ou seja, é um trabalho que tende a ferir a liberdade de cátedra e pressiona o trabalho de quem deseja ensinar.
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Percebemos, portanto, que a pandemia impulsionou uma "velha" ideia: o ensino a distância. E tal situação acirrou desigualdades (de classe, raça, gênero e regional) e a exploração do trabalho, afinal, houve o aniquilamento da divisão entre espaço de lazer e de espaço de trabalho, seja do ponto de vista psicológico do(a) docente, seja do pressuposto existente de que os(as) docentes estão com disponibilidade para o trabalho a todo o momento.
Há, ainda, o sentimento de angústia: em torno da possibilidade de não receber salário, de "ameaças" ao retorno ao trabalho presencial, do imaginário social, que, inclusive, é impulsionado pelo presidente, de que não estão trabalhando.
Há, ainda, a desesperança ao verificar que a educação se tornou um espaço de aulas exclusivamente expositivas, de raríssimas sociabilidades, o reforço de uma educação vista enquanto uma mera transmissão do conhecimento.
Nestes tempos futuros, em que as disputas serão acirradas, existirá um projeto bem marcado, com forte influência no âmbito do mercado educacional, de potenciar a educação à distância.
O nosso dever do tempo presente é acumular sobre as dificuldades vivenciadas em torno do ensino remoto (a distância): identificar para evidenciar as suas limitações. Tais limitações devem ser reconhecidas pelos docentes, discentes e pela proposta educacional em jogo, com o objetivo de contra-atacar para garantir uma educação pública, gratuita, laica, de qualidade e presencial.
Edição: Leandro Melito