"Vai faltar"

Revogação de normas de proteção ambiental pode gerar mais conflitos por terra e água

Alerta é feito por deputado da Frente Parlamentar pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e endossado pela CPT

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |

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Conflitos por água tiveram aumento de 77% no país entre 2018 e 2019, segundo o último levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), divulgado em abril - Marcello Casal Jr./Agência Brasil

As extinção de normas de proteção pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) nesta segunda-feira (28) pode intensificar a escalada de conflitos por terra e água no país. O alerta é do coordenador da Frente Parlamentar Mista pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, deputado Nilto Tatto (PT-SP).   

Ele chama atenção para o fato de que em diferentes pontos do país já há conflitos entre a necessidade de consumo humano de água e o consumo da agricultura, o que pode ser potencializado pela extinção da Resolução 284, derrubada nesta segunda-feira pelo conselho a pedido do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.  

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"Vai faltar pra abastecimento em comunidades."

A norma estava em vigor desde agosto de 2001 e estabelecia regras para licenciamento de empreendimentos de irrigação. Na ausência dela, diferentes iniciativas da agropecuária para utilizar água para esse fim podem ser autorizadas sem licenciamento, caso não haja diretrizes locais voltadas a isso.

"A agricultura já utiliza 70% da água potável utilizável no Brasil, muito mais do que é usado, por exemplo, pra consumo humano. Sem um processo de regulação, de análise de impacto, daqui a pouco vão aumentar, então, ainda mais os conflitos pela água que é utilizada pela agricultura e vai faltar pra abastecimento em comunidades, em cidades, e assim por diante”, projeta Tatto.

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Conflitos

O parlamentar lembra o caso do município de Correntina, no Oeste da Bahia, onde ribeirinhos da comunidade local enfrentaram uma grande disputa com o agronegócio por conta da exploração predatória de água na região para captação empresarial.  

O caso eclodiu em 2017 trazendo números alarmantes: enquanto a população da cidade consumia um total de 3 milhões de litros de água por dia, uma fazenda local retirava diariamente mais de 106 milhões de litros, o que seria suficiente para alimentar mais de 6,6 mil cisternas de 16 mil litros de água a cada 24 horas no Semiárido. O empreendimento retirava do rio local uma vazão de 182.203 m³/dia, durante 14 horas/dia, para a irrigação de 2.539,21 hectares de terra.

Conflitos dessa natureza são acompanhados com atenção pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que faz o acompanhamento desse tipo de ocorrência ano a ano por meio de um relatório institucional. No caso dos conflitos por água, por exemplo, foi registrado um aumento de 77% de casos entre 2018 e 2019, segundo o último levantamento, divulgado em abril deste ano. As disputas pelo recurso já haviam batido recorde no relatório anterior, divulgado em 2019, que documentou 276 casos pelo país.  

O Estado também se envolve nessa linha da violência contra as comunidades.

“As comunidades ribeirinhas dependem do peixe, do mangue pra tirar o caranguejo, pra tirar a sua subsistência. Certamente vai haver mais conflitos agora, dentro desse processo [do Conama]. E, como a questão tem se passado muito pela questão judicial,  tem o processo de judicialização dessas lutas”, afirma a coordenadora nacional da CPT, Isolete Wichinieski, acrescentando que tais processos costumam se estender no tempo e demarcam também “a atuação do Estado como polícia”.

“Não só as pessoas que estão lá nessas regiões de conflito, mas o Estado também se envolve nessa linha da violência contra as comunidades. Isso que aconteceu hoje [das revogações], por exemplo, é uma violência tremenda e foi feito sem nenhum estudo técnico, sem nenhuma comunicação com a sociedade. É um total desrespeito aos direitos humanos”, critica a dirigente.

Entenda

O Conama também extinguiu as Resoluções 302 e 303, que dispunham sobre padrões e limites para Áreas de Preservação Permanente (APPs) de reservatórios artificiais e o regime de uso do seu entorno. Nos bastidores do mundo político, a leitura é de que a novidade atende a demandas do setor imobiliário, interessado em ampliar seus empreendimentos. O segmento enfrenta disputas em diferentes pontos do território nacional por conta de construções que avançam sobre parques, florestas, dunas, entre outros recursos naturais.

“A expansão do mercado [imobiliário] tem atingido várias comunidades tradicionais, que às vezes ocupam essas áreas, que têm seus processos de utilização desses espaços e são atingidas por esses empreendimentos, que normalmente costumam ser menores, mas aí começam a se expandir nesse movimento [de flexibilização das normas ambientais] e causam maiores problemas a quem está do lado”, afirma Isolete Wichinieski, acrescentando que a iniciativa do Conama também pode impulsionar ainda mais a ascensão dos conflitos por terra.

Tais casos estão entre os mais destacados nas estatísticas a cada ano. Em 2019, por exemplo, essas ocorrências somaram 1.206 casos e envolveram 142.788 famílias pelo país, segundo o relatório de 2020. “É uma questão pra se ficar cada dia mais atento, inclusive lembrando também a atuação de mineradoras e usinas eólicas, que já geram muitos conflitos há bastante tempo”, finaliza a coordenadora da CPT.   

Edição: Rodrigo Chagas