A 20 dias das eleições na Bolívia, dirigentes do Movimento ao Socialismo (MAS) afirmam que estão enfrentando uma campanha de fake news – em português, notícias falsas – tão massiva quanto a que resultou na eleição de Jair Bolsonaro (sem partido) no Brasil em 2018. Em conversas em off com a reportagem do Brasil de Fato, eles avaliam que o ex-presidente Evo Morales (MAS), exilado na Argentina desde o golpe de 2019, é o principal alvo das mentiras, que “se estendem a todos os militantes de esquerda” sob “silêncio do governo interino”.
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A percepção dos apoiadores de Morales tem respaldo no noticiário das últimas semanas. No início de setembro, a autoproclamada presidenta da Bolívia, Jeanine Áñez, admitiu que contratou no final de 2019 a CLS Strategies, empresa de lobby estadunidense acusada pelo Facebook de promover campanhas de notícias falsas para desvirtuar o debate democrático.
O Facebook removeu dezenas contas falsas de redes sociais ligadas à CLS, com sede em Washington, que haviam postado conteúdo em apoio a Añez – o que “ainda não parece ter sido suficiente para reduzir” a circulação de mentiras, segundo o MAS.
Em nota, a presidenta interina disse que a atribuição da CLS era "apoiar a democracia boliviana após eleições fraudulentas e a favor da realização de novas eleições presidenciais". A suposta fraude eleitoral já foi desmentida por institutos independentes, e o contrato com CLS Strategies continua sendo visto por integrantes do MAS como prova da “má intenção” do governo interino na área comunicacional – uma vez que não há ações oficiais para frear a onda de notícias falsas.
O próprio Morales se pronunciou acusando o "governo de facto" de pagar "milhões de dólares em dinheiro público" à CLS. Os valores finais do contrato não foram informados.
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Imersa na polêmica das fake news e com menos de 10% das intenções de voto, Áñez renunciou há 10 dias de se candidatar à presidência. O campo da direita tradicional é representado pelo ex-presidente Carlos Mesa, enquanto a extrema direita aposta suas fichas em Luis Fernando Camacho, um dos operadores do golpe – em grande medida, articulado nas redes sociais – na região de Santa Cruz de La Sierra, que faz fronteira com o Brasil. O ex-ministro Luis Arce (MAS) aparece em primeiro lugar nas pesquisas, com possibilidade de vitória em primeiro turno.
Acesso à internet
A redução da desigualdade e as políticas de inclusão da população mais pobre e isolada da Bolívia foram emblemas do governo Morales. Hoje, a Bolívia tem cerca de 11 milhões de habitantes e mais de 10 milhões de pontos de conexão fixa e móvel à internet. A maior parte dos internautas são jovens de 18 a 25 anos, que representam cerca de 40% do eleitorado.
Organizações especializadas em comunicação e política, como a Fundação Internet Bolívia, têm alertado que o problema não é a proeminência das redes sociais nas campanhas, mas o uso de robôs e a disseminação ilegal de notícias falsas que tomou conta do país.
Diagnóstico
Sobre as eleições de 2019, que seriam anuladas semanas depois, o Brasil de Fato conversou sobre internet e política com o militante Raul García Linera, irmão do então vice-presidente Álvaro García Linera. Ele admitiu a dificuldade de cativar a juventude para o projeto do MAS e se referiu às redes sociais como um desafio a ser superado.
“Aqui o tecido social se constrói nas comunidades, nos locais de moradia, e não de trabalho. Então, não temos uma estrutura de partido, em termos leninistas, com quadros, hierarquias… não. E, por não haver isso, a internet, as redes sociais e os meios de comunicação se convertem em meios muito potentes e perversos para pintar uma realidade alheia e espalhar mentiras”, resumiu.
Linera citou as notícias falsas mais difundidas contra Morales: contas bilionárias no Vaticano, relações sexuais forçadas com adolescentes, filhos jamais assumidos. Nenhuma delas jamais foi comprovada.
Além do ex-presidente, dirigentes regionais do MAS sentem na pele o assédio, as ameaças e o constrangimento gerado pelas fake news. Rafael Gamez, integrante do movimento em Santa Cruz, relata que as notícias falsas vêm contaminando o debate público desde 2016. Ele próprio, logo após o golpe, se deparou com uma imagem de seu rosto e seu nome circulando nas redes sociais, como se fosse um fugitivo ou procurado pela Justiça. Imediatamente, passou a tomar cuidados redobrados com sua segurança e reduziu as visitas aos familiares, para protegê-los.
A necessidade de responder às notícias falsas na internet desde 2016 fez com que integrantes do MAS criassem o Grupo de Apoio Estratégico (GAE), a qual pertence Gamez. Hoje, a equipe também tem a tarefa de divulgar as propostas de Arce.
Edição: Rodrigo Chagas