A utilização de verbas da educação para um programa de transferência de renda gerou forte reação na sociedade civil e no parlamento. Com a proposta da Renda Cidadã anunciada nesta segunda-feira (28), o governo Bolsonaro acenou que pretende utilizar até 5% do dinheiro do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) para a criação do programa de renda mínima.
Aprovada no Congresso Nacional, a medida que transforma o Fundeb em política permanente deve beneficiar 17 milhões de estudantes nos próximos seis anos.
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação considera que a medida prejudicaria o setor da educação diante das necessidades que precisarão ser atendidas após a pandemia, com a reorganização do sistema de ensino para tentar reduzir os impactos causados pelo coronavírus, que paralisou aulas e gerou problemas no calendário das escolas.
“Nós vamos precisar de mais investimentos, e não de retirar investimentos da educação. As áreas sociais precisam de investimentos? Precisam, sim, mas não é da educação que eu posso tirar porque senão eu estou tirando comida de quem está com fome”, afirma a coordenadora do comitê da Campanha no Distrito Federal, Catarina de Almeida Santos, em referência aos seguidos arrochos orçamentários que o segmento sofre desde 2015 e que se aprofundaram nos últimos anos.
Também professora do curso de Pedagogia da Universidade de Brasília (UnB), ela acrescenta que a medida ventilada pela gestão Bolsonaro não seria tecnicamente viável por conta dos limites impostos pela Constituição Federal de 1988 e pela Emenda Constitucional 108, que oficializou a conversão do Fundeb em uma política permanente depois de intensos cinco anos de disputas no Congresso Nacional.
“Elas definem claramente que o dinheiro do fundo só pode ser utilizado pra manutenção e desenvolvimento do ensino, tanto que ele não pode ir pra aposentadoria, porque os aposentados não estão mais na [área de] manutenção e desenvolvimento do ensino”, ressalta a coordenadora, relembrando um dos aspectos que geraram antagonismo no Legislativo durante a tramitação da proposta que perenizava o Fundeb.
Na ocasião, deputados mais alinhados à agenda ultraliberal tentaram desidratar os investimentos do fundo na educação básica para inserir nos gastos do Fundeb as despesas com a folha dos inativos.
“A Lei de Diretrizes e Bases da Educação determina o que são a manutenção e o desenvolvimento do ensino, que não têm nada a ver com assistência social. Então, há uma salvaguarda legal de não utilização desse tipo de verba para isso”, frisa Catarina de Almeida Santos, acrescentando que o financiamento de um programa como o Renda Cidadã com verbas do Fundeb precisaria, em tese, de uma nova emenda constitucional para viabilizar esse fluxo de recursos.
Legislativo
A ideia do governo também recebeu críticas de diferentes parlamentares no Congresso Nacional. O líder da minoria na Câmara dos Deputados, José Guimarães (PT-CE), engrossou o coro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação lembrando que a mudança anunciada por Bolsonaro dependeria de autorização legislativa. Além de recursos do Fundeb, a criação do Renda Cidadã prevê a utilização de recursos de precatórios, a partir do adiamento de pagamentos.
“Recursos dos precatórios são dívidas que a União tem, são contratos com os seus credores. O governo vai fazer essa irresponsabilidade econômica e fiscal? Nós não podemos aceitar. Isso é uma gambiarra que vai comprometer o Brasil. O que o país precisa é de um programa permanente, é o Mais Bolsa Família”, acrescentou o deputado.
A menção diz respeito à proposta apresentada pela bancada petista para uma política de renda mínima com financiamento a partir de impostos cobrados por grandes fortunas e rentistas do país. A medida é uma das que foram defendidas por atores do campo progressista, que tem ainda proposta do Psol e diretrizes defendidas pela campanha “Renda Básica que Queremos”, da sociedade civil organizada.
Alguns senadores, como Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Flávio Arns (Podemos-PR), lembraram que a ideia de utilização de verbas do Fundeb para um programa social já foi afastada pelo Congresso.
Em julho, em meio às articulações políticas contrárias à aprovação da proposta de emenda constitucional do fundo, o governo tentou incluir essa medida no texto, mas foi vencido pela maioria. Vieira destacou que o Legislativo “fez isso praticamente por unanimidade”.
Outros parlamentares também reagiram. “Por que o governo não vai atrás de grandes devedores e sonegadores de impostos deste país? Também é possível rever algumas renúncias fiscais. O governo deixou de arrecadar, só em 2019, R$ 14,2 bilhões porque isenta importação de agrotóxicos. Por que não taxa lucros e dividendos, como ocorre no mundo todo, ou grandes fortunas?", questiona a senadora Zenaide Maia (Pros-RN).
A parlamentar defende que, além de lançar mão de outras opções de financiamento, o governo pode tentar renegociar a dívida pública.
"É melhor que tirar dinheiro da educação, porque mais de 50% dos impostos pagos pelo povo vão para os bancos, para pagar juros e serviços de uma dívida nunca auditada”, criticou, ao lembrar a demanda pela investigação detalhada do montante da dívida.
Teto dos Gastos
O debate que se acirrou na segunda (28) por conta do projeto inicial do governo para o Renda Cidadã também tocou, mais uma vez, a questão do ajuste fiscal, ponto mais rígido da agenda conduzida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
No mesmo dia do anúncio sobre a pretensão de financiamento do Renda Cidadã com dinheiro do Fundeb e de precatórios, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), voltou a fazer um apelo para que um eventual novo programa social não deixe de observar os limites do ajuste, que foi aprovado durante o governo Temer e congelou os gastos sociais durante vinte anos no país.
A defesa contrasta com o coro que vem sendo entoado por especialistas e atores sociais do campo progressista, que pedem o fim do arrocho para garantir os investimentos sociais, especialmente diante dos impactos da pandemia, que agravou a crise.
Para Livi Gerbase, do Instituto de Estudos Socioeconômicos, não é possível criar uma nova política sob as condições das regras do ajuste.
“Esse tipo de programa requer muitos recursos, e hoje a gente já tem uma disputa por recursos devido ao Teto dos Gastos, que reúne tanto despesas obrigatórias quanto as discricionárias”, argumenta a assessora política do Inesc.
O Inesc é uma das mais de 200 entidades da Coalizão Direitos Valem Mais que foram ao Supremo Tribunal Federal (STF) em março deste ano para ajuizar um pedido de suspensão temporária do Teto dos Gastos.
“Se a gente adicionar dentro desse teto um programa de renda mínima, que seria uma política mais cara, com certeza essa disputa por verbas iria se acirrar ainda mais e áreas que já estão com sérios problemas de financiamento iriam acabar agravando esse problema”, conclui Gerbase, reforçando a defesa por recursos que vão além do ajuste fiscal.
Edição: Leandro Melito