"Não é natural esse número de mortes. Essas mortes são um genocídio. Genocídio! Elas poderiam ter sido impedidas. A saúde pública ficou manietada. Impediram que a saúde pública atuasse para controlar a pandemia. A gente podia ter controlado essa pandemia. Essas mortes precisam ser cobradas, indenizadas coletivamente. Uma cobrança não só pecuniária, mas moral. É preciso que a gente tenha um ajuste de contas nesses dois sentidos. É imoral que as pessoas tenham sido deixadas à morte, uma morte que poderia não ter ocorrido. É preciso que a sociedade se mobilize e faça uma comissão da verdade da covid”.
A declaração é da médica e pesquisadora Ligia Bahia ao Tutaméia. Doutora em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz e professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ela analisa a evolução da pandemia no Brasil, desmonta o discurso criminoso de Bolsonaro sobre a doença, condena a atuação do setor privado na crise sanitária –“um fiasco, fechou as portas na cara dos doentes”–, argumenta contra a volta das aulas presenciais e comenta a atitude das elites nesse momento no Brasil.
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Para ela, a sociedade brasileira naturaliza a morte. “A posse de Fux é exemplar. Como é que Fux, presidente do STF faz uma posse presencial em plena pandemia?! Tem acesso à informação, é uma autoridade pública, em um cargo importantíssimo. A posse presencial era totalmente desnecessária. Não fez a menor diferença [em termos de divulgação], a não ser pelo adoecimento [de, ao menos, nove pessoas]. Virou um covidário”.
Na análise da médica, esses comportamentos têm “alguma coisa da ordem da rebeldia. ‘Eu sou rebelde, não recebo ordens desse conjunto de pesquisadores e cientistas que são muto radicais, do contra, que não compreendem que precisa ter uma posição equilibrada’. Não há posição equilibrada em pandemia”. E completa:
“Para essas elites no Rio e em São Paulo que vão para o Leblon e as que brigaram no Gero é preciso perguntar primeiro o que eles estavam fazendo no Gero, que é um local fechado, e o que estão fazendo no Leblon se aglomerando. Elas estão ali brigando, tentando demostrar o quanto elas são importantes, o quando elas não obedecem. É a rebeldia. Isso está acontecendo nas campanhas eleitorais, o que é muito preocupante. Tem uma parte da sociedade que faz o que quer. Dependendo de quem você é, você adota normas ou não. Isso está acontecendo em ambientes que a gente não previa. Temos um descontrole muito grande”.
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“Não é por acaso que a posse de Fux [na presidência do STF] foi presencial. A gente está aí configurando um projeto extremamente autoritário, profundamente antidemocrático e nada nacional. Para essas pessoas não tem a menor importância ter a saúde pública, ter educação pública, que a gente tente se construir como uma nação mais igualitária”, afirma.
A seguir alguns trechos da conversa:
Ajuste de contas
[Filas nas agências, discursos e ações de Bolsonaro, a cronologia das aberturas]. Todos são elementos que vamos ter que anotar para quando chegar a hora de termos ações que cobrem pelas as mortes excessivas. Tem que ter um tribunal, uma litigação judicial. E estamos nos preparando para isso.
Um conjunto de entidades (Idec, ABI, SBPC) e um conjunto de cientistas estão preparando uma ação. A ideia é que essas mortes sejam cobradas, indenizadas. Não individualmente, mas que sejam indenizadas coletivamente. Que se faça uma cobrança e que essas mortes sejam objeto de indenização. Não só pecuniária, mas moral. É preciso que a gente tenha um ajuste de contas nesses dois sentidos. É imoral que as pessoas tenham sido deixadas à morte. Uma morte que poderia não ter ocorrido.
Há um prejuízo enorme para o país com essas mortes. A gente tem profissionais de saúde que morreram com 28 anos de idade. Significa que o investimento social nessa pessoa até 28 anos não será retribuído para a sociedade.
As pessoas foram para a escola, se formaram, estavam no início da carreira e morreram. Morreram porque não tinham equipamento de proteção individual, porque trabalham em três lugares ao mesmo tempo, porque não havia profissionais para substituí-los, não tinha teste.
É preciso que a sociedade se mobilize. Estamos preparando toda uma documentação científica que fundamente esse conceito de excesso de mortes. Mortes que poderiam ser evitadas, não individualmente, mas no conjunto. Exemplo: colocar num gráfico no eixo X a cronologia das aberturas e no y as mortes. Fica muito claro. Quem foi que determinou que era para abrir? Continuamos dizendo: não façam.
Não é transformar em banco de ressarcimento. A ideia é que o Brasil se veja, e que se possa refletir sobre isso. É preciso que a gente faça uma comissão da verdade da covid. A sociedade civil americana também vai cobrar as mortes. A Itália também. Não estamos sozinhos; não é uma jabuticaba.
Paralisia criminosa e assassina
“Nós temos o que fazer, nós sabemos o que fazer, não nos deixaram fazer. A saúde pública ficou manietada no Brasil. Não podemos usar o nosso potencial. Impediram que a saúde pública atuasse para controlar essa pandemia. A gente podia ter controlado essa pandemia. O Brasil respondeu muito bem na Aids, na Zica. O Brasil tem uma infraestrutura de vigilância epidemiológica, de laboratórios, de pesquisa. Tudo isso poderia ter sido mobilizado a favor da população. Foi o que os outros países fizeram. Se a gente não tivesse o Sistema Único de Saúde (SUS), a gente estaria numa situação muito pior. Um sistema universal público e gratuito, como o SUS, é um talismã que nos protege de uma desgraça.
Mas a rede básica que temos, que é bem capilarizada, não pode funcionar adequadamente. Não teve teste, equipes não tinham nem oxímetros. Foi uma maldade o que aconteceu. A saúde básica não foi mobilizada. Foi uma paralisia criminosa, uma paralisia assassina. Porque nós tínhamos recursos, não só na saúde, mas recursos de outros equipamentos sociais que poderiam ter sido mobilizados. Por exemplo, os pontos de cultura, as rádios comunitárias. Era possível atuar de maneira coordenada e vigorosa. Tínhamos a experiência passada. E a gente sabe fazer isso. A gente perdeu tempo.
Os três sensos comuns que naturalizam as mortes
O que aconteceu no Brasil é que a gente perdeu. As autoridades têm uma importância muito grande. Sempre tiveram, desde a Idade Média. Elas são o locus de confiabilidade na transmissão de informação para a população. [Quando Bolsonaro diz que] é natural que as pessoas morram, tem sentido. Mas as pessoas podem morrer mais cedo com qualidade de vida pior, ou morrer mais tarde, com uma qualidade de vida melhor.
Esse senso comum [a morte é natural] acabou escondendo toda uma discussão sobre a necessidade de transmitir informações confiáveis. É mentira que esse número enorme de pessoas tenha morrido naturalmente, não! Não é natural! Essas mortes são um genocídio. Genocídio! Elas poderiam ter sido impedidas. Não é verdade que só foram atingidas pessoas muito velhas; morreram jovens, jovens profissionais de saúde. Não soubemos ou não podemos ou não quisemos proteger a população brasileira do genocídio. O governo federal não assumiu esse papel. O número de mortes é dramático. É um trauma que a gente nem está se dando conta.
Outra fala de Bolsonaro dizia: Se não morrer de covid, morre de fome. Colou. Virou um axioma. A gente não pode dar uma resposta política a isso. Os partidos não puderam responder, porque não era uma resposta cientifica. Era uma resposta política.
Outra ideia é a de que os velhos tinham que se sacrificar pelos jovens. Aí tem três elementos. Um, que é natural a morte. Dois, que se as pessoas não saírem para trabalhar, elas vão morrer de inanição. Elas vão morrer, porque elas não batalharam pela vida, elas são néscias.
E três: a vida é uma batalha que os mais fortes vencem. Há concorrência, quem merece, vive; quem não merece, não vive. Os velhos que sacrifiquem. Se eles morrerem, vem a chamada imunidade de rebanho –que é um conceito totalmente estapafúrdio–, e aí todos os jovens vão poder viver e ser felizes para sempre. Os velhos tem que se sacrificar pelos mais jovens. Os três sensos comuns são muito fortes na sociedade brasileira, que é uma sociedade que, de fato, naturaliza a morte.
Volta às aulas
Além de uma crise sanitária, temos uma crise educacional. Colégios privados têm aula online e estão avançando. Crianças do ensino público estão ficando para traz. É muito ruim. Esse gap não pode ser ampliado.
Não está na hora de voltar o ensino presencial. Nem pensar.
Mas é preciso retomar o vínculo que as crianças têm com as escolas. É preciso computador, internet. Está mais do que na hora de fazer uma campanha pela internet gratuita e pública. Especialmente para as populações que mais precisam dela. É preciso criar áreas de livre acesso nas favelas.
Pelo lado da saúde, o retorno está incorreto. É melhor proteger as crianças e os funcionários. É o único que está isolado e significa um terço da população.
Fiasco das empresas e privatização
As empresas privadas foram um fiasco na pandemia, não fizeram nada, tiveram atitudes irresponsáveis. Propusemos a unificação dos leitos (públicos e privados). As empresas foram contra. Tiveram prejuízo. Preferiram prejuízo a abrir suas portas para a tender a população. Tinham leitos ociosos. Foi uma atitude de quase negar água para quem está no deserto.
A gente não conseguiu canalizar recursos públicos para o público. Uma parte dos recursos públicos foram canalizados para o privado. O setor privado fechou as portas na cara dos doentes.
Isso também está sendo contabilizado para esse futuro acerto de contas. O respirador novo ficou com o privado e o velho ficou com o SUS. É um sistema de troca muito desfavorável para o SUS. Essa completa descoordenação é proposital. O que está havendo é uma ação ativa na privatização. Está se apostando na privatização.
Vacina e angústia
A afirmação de Bolsonaro de que a vacinação é livre é um movimento ideologizado, politizado e completamente criminoso. Bolsonaro não pode falar isso; ele é presidente da República e, no Brasil, a vacinação é obrigatória. Ele não pode falar em público contra a lei. O decreto da covid prevê a vacinação. Ele está duplamente infringindo a legislação brasileira e provocando uma desinformação enorme.
A situação é muito angustiante. Não se pode dar boas notícias. A gente tem um patamar muito elevado de casos. A gente vai ter a vacina, mas ainda vai continuar tendo casos. A doença é muito grave. A vacina vai ajudar muito, mas ainda teremos um longo período pela frente. Precisaremos usar máscara, lavando as mãos, diminuir os nossos contatos, construir bolhas sociais, com poucas pessoas, ter reuniões com poucas pessoas.