A fé, a espiritualidade e a religiosidade fazem parte da vida e da história política do Brasil. Movimentos de religiosos em busca de terra ou da salvação são muitos, da mesma forma que outras diversas movimentações políticas tiveram seguidores de vários tipos de fé como autores importantes.
Pode-se citar a construção e o conflito de Canudos e as congregações religiosas que ajudaram na resistência contra a ditadura (1964-1988) no Brasil, apenas como dois exemplos. Da mesma forma, as várias marchas de religiosos em apoio ao golpe que derrubou o governo de João Goulart também ajudam a entender a complexidade dessa história.
Atualmente, a presença de religiosos em mandatos eletivos na política representativa do Brasil é cada vez maior, e se faz marcadamente por políticos de direita, que em sua maioria defendem pautas contra a população, como os ataques aos direitos trabalhistas e as políticas de cortes nos gastos. Majoritariamente também, esses religiosos se identificam com uma perspectiva de direita da fé cristã e que pretendem impor sua forma de ver o mundo sobre as outras.
Aprofunde-se: Domínio da fé e da política: o projeto de poder dos líderes evangélicos no Brasil
Cristãos contra o Fascismo
Em contrapartida, há cada vez mais religiosos identificados com ideais de esquerda e da classe trabalhadora, que estejam conectados com a vida e os anseios do povo. É isso que reivindicam os Cristãos contra o fascismo, movimento nacional originado em Porto Alegre, no ano de 2018. Segundo um dos seus fundadores, Tiago Santos, o movimento tem como objetivo resgatar o ideal revolucionário dos ensinamentos de Jesus, estabelecendo uma “trincheira de resistência ao discurso cristofascista, dentro e fora dos espaços religiosos”.
Tiago estudou na Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo, sendo membro, na juventude, de uma igreja batista em Porto Alegre e, após completar o seminário, engajou-se no colegiado pastoral. Teve contato com uma formação libertadora, que o ensinou uma teologia conectada à realidade do povo, “pé no chão”. Essa formação foi o começo de uma série de questionamentos que o levaram a trilhar o caminho atual.
“Como cristão, me entendi como discípulo de um preso político. Um homem que foi pobre, viveu em periferias.” Tiago fala que essa origem popular de Jesus foi se perdendo com o tempo, e o cristofascismo se apropria da parte bonita dessa história para oprimir seus inimigos. Além disso, o caráter popular e revolucionário do evangelho foi distorcido. “Os discursos de Jesus de Nazaré são denúncias à exploração dos pobres, da acumulação de riqueza.”
Leia também: Evangélicos e cultos online: as possíveis fissuras do fundamentalismo religioso
Lançamento de manifesto e a política representativa
A formação do movimento nacional se deu em meio à vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018, em momento de grande ascensão do discurso e política fascista no Brasil. A compreensão dos que passaram a construir o movimento era de que não bastava a denúncia das injustiças cometidas contra a população, mas que também se tornava necessária a ocupação dos espaços na política representativa. Era preciso apresentar uma oposição a um dos apoios do movimento fascista, a chamada Bancada da Bíblia, composta por políticos religiosos. Nesse sentido, o movimento anunciou, em 2019, o lançamento da Bancada de Cristãs e Cristãos contra o Fascismo, com candidaturas à cargos eletivos nas eleições municipais de várias partes do país.
Não discutir fé e política atende bem aos interesses do neoliberalismo e a esquerda ajudou para que este debate fosse evitado.
O movimento, em seu manifesto, se posiciona a favor da conversão e restauração das pessoas, da dignidade da pessoa humana, da acolhida dos sofredores e excluídos, do respeito às mulheres, da promoção da paz, da misericórdia e da caridade, dos refugiados e imigrantes e de todas as famílias. Da mesma forma, são contra a tortura, a pena de morte, os discursos de vingança e de ódio, o culto às armas, a xenofobia e toda forma de discriminação. Esta forma de exercer a sua fé enxerga que “o pecado se apresenta de forma também estrutural”, na forma de um capitalismo injusto, segregador e que espolia a riqueza das pessoas.
“Olhando a Bíblia, eu percebo um Deus que não pretende estar ‘acima de todos’, e sim no meio de nós, como Emanuel.” Tiago faz referência a uma passagem da Bíblia, que fala sobre o nascimento de Jesus: “E ele será chamado Emanuel, que quer dizer, Deus conosco”. O trecho do Capítulo 1 do livro de Mateus, versículo 23, é totalmente contrário ao atual lema do governo Bolsonaro.
Saiba mais: Artigo | Tetzel, Lutero e os evangélicos exploradores da fé
Estado Laico
A discussão sobre os contatos entre a religião e a política está muito presente na atualidade. No Brasil, a Constituição determina que o Estado é laico, ou seja, deve ter uma postura de imparcialidade perante às religiões, não devendo incentivar ou promover nenhuma delas. Da mesma forma, deve garantir que todas tenham garantido seu direito de culto e protegê-las de perseguições e fanatismos.
Porém, esta visão gera embates vindos de posições distintas do espectro político. Para Tiago Santos, os Cristãos contra o Fascismo defendem decididamente o Estado laico, e pontua: “O Brasil por muito tempo foi o país onde política e religião não se discutem e o resultado disso está aí. Não discutir fé e política atende bem aos interesses do neoliberalismo e a esquerda ajudou para que este debate fosse evitado”.
Ele faz referência a uma parte da esquerda que ignora a espiritualidade como dimensão humana e assim ajuda na concretização dos interesses do neoliberalismo, lembrando ainda que não se pode confundir Estado laico com Estado ateu. No Brasil, cerca de 90% da população diz professar alguma religião, e isso não pode ser ignorado no debate estratégico da classe trabalhadora no país. Ou seja, se por um lado uma parte da esquerda ignora o debate sobre a religiosidade, de outro, a direita usa a fé para tentar impôr um “teocrático, autoritário e cristofascismo”.
Tiago ressalta que um dos principais objetivos do movimento é ”juntar os cacos desse estrago todo e quem sabe ali adiante montar um lindo mosaico”.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Rodrigo Chagas e Katia Marko