Por Alisson Lisboa*
O Brasil inicia o mês de outubro com quase 5 milhões de casos confirmados de Covid-19, ocupando nesse quesito a terceira colocação a nível mundial, a despeito da baixa testagem. Somos também o segundo país com mais mortes em termos absolutos, totalizando mais de 140 mil mortes. Temos uma curva diária de mortes que desacelera a passos de tartaruga, em comparação a países que fizeram o dever de casa e levaram a sério a pandemia.
Sabemos que grande parte dessas mortes poderiam ter sido evitadas se Bolsonaro não fosse o presidente, se houvesse uma maior coordenação entre as esferas de governo com um plano nacional de enfrentamento, e se o SUS não estivesse sendo desfinanciado pela EC 95.
Para o ano de 2021, o SUS periga perder R$ 35 bilhões do seu orçamento graças ao teto de gastos. Apesar da grave crise sanitária que o país atravessa, o governo goza da aprovação de 40% da população e conta com apoio do Congresso Nacional para boa parte de suas reformas.
Colhendo os frutos do auxílio emergencial e de olho na reeleição em 2022, o presidente investe na consolidação de sua marca na área social por meio da substituição do Bolsa Família pelo Renda Cidadã. O general Pazuello, o qual havia assumido a chefia do Ministério da Saúde interinamente desde 3 de junho, assumiu a pasta como efetivo em 14 de setembro com a conivência de secretários municipais e estaduais de saúde.
No dia 24 de agosto, foi realizado em Brasília o evento intitulado “Brasil vencendo a Covid-19”, em que médicos bolsonaristas sugeriram ao presidente a inclusão da Hidroxicloroquina no Farmácia Popular. Apesar da comprovação científica da ineficácia da medicação e da sua não recomendação para o tratamento de Covid-19, tais médicos atribuem à cloroquina uma suposta “vitória” contra a pandemia.
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A constante referência de Bolsonaro e dos médicos bolsonaristas à cloroquina pode ter aspectos de uma manobra diversionista ou de “cortina de fumaça”. No entanto, a agenda conservadora nos costumes e anti-ciência é a sua agenda de fato, se levarmos em conta a caracterização do bolsonarismo enquanto um movimento neofascista. Essas pautas ajudam a manter a sua base de apoio mobilizada e radicalizada.
O fascismo é um movimento reacionário de massas, de mobilização permanente de sua base social, com o objetivo estratégico de tomada do poder do Estado por meio de um processo de fascistização e assim implantar uma ditadura de tipo fascista. Nesse tipo de regime de exceção, combina-se em um papel de dominância no aparelho de Estado instituições que cumprem papéis repressivos e ideológicos, como a polícia política (milícia) e a Igreja.
Em um Estado de exceção, o funcionamento do seu aparelho é subordinado à ideologia pequeno-burguesa, referente às frações de classe presentes na burocracia estatal. Nesses regimes, a pequena-burguesia “incha” de forma “monstruosa” e “parasitária” o aparelho de Estado.
No processo de fascistização, o movimento fascista ganha os aparelhos com a conivência do poder judiciário, neutraliza os setores que lhe são hostis com ajuda do aparelho repressivo (forças armadas) neste processo. Assim, há uma centralização de poder com sobreposição de funções dos aparelhos em que um assume a dominância sobre os outros.
No âmbito econômico, as experiências históricas do fascismo clássico na Alemanha e na Itália adotaram uma postura de Estado interventor com o capital monopolista assumindo a dominância no bloco no poder, antecipando o que ocorreria no pós-segunda guerra na Europa ocidental.
Essas experiências corresponderam a uma fase de consolidação do imperialismo no período entre guerras, em que há a predominância alternada entre as potências da época (Grã-Bretanha, Alemanha e EUA) e prevalece as relações entre as metrópoles e as formações sociais dominadas e dependentes.
No entanto, uma caracterização do fenômeno “fascismo” não deve ser datada historicamente. Pode ocorrer em diferentes formações sociais em que há uma crise de hegemonia no bloco no poder, crise política e da ideologia burguesa, derrota dos movimentos da classe trabalhadora e o aparecimento na cena política de um momento reacionário de massas que visa à tomada do poder de Estado e a implementação de uma guerra aberta contra as classes populares.
Isso não impede que o programa econômico de um governo neofascista, em um país da periferia do capitalismo, seja neoliberal. Diferentes conformações de frações da burguesia no bloco do poder de Estado podem diferir o neofascismo do fascismo clássico.
O avanço de movimentos políticos de caráter reacionário na sociedade brasileira, os quais impuseram uma profunda derrota para as forças populares, tem gerado na esquerda intensos debates sobre a caracterização dessa derrota. A retomada de um programa neoliberal ortodoxo pelo Governo Federal com o golpe de 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro são expressões desse movimento de retomada da iniciativa da direita num contexto de crise econômica, política, social e, agora, sanitária.
Ataques à democracia
No Brasil de 2020, são flagrantes os ataques à ordem democrático-burguesa: intimidação de opositores, independentemente da orientação político-ideológica, por meio de operações abusivas da Polícia Federal; ataques à liberdade de imprensa; indicações de militares em ministérios e cargos de primeiro e segundo escalão, como foi o caso da “ocupação militar” do Ministério da Saúde.
Pesquisadores da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e gestores da saúde têm sido alvos de operações da PF, a exemplo da segunda prisão de Eduardo Hage (médico e pesquisador) no Distrito Federal. O gabinete do ódio, que atua na disputa de narrativas nas redes sociais por meio de fake news, ataca constantemente a Fiocruz e a sua presidente, Nísia Trindade.
É importante frisar que em dezembro ocorrerão eleições na Fiocruz, fato que determinará os rumos do parque industrial de saúde nacional e, de forma geral, da produção de conhecimentos socialmente referenciados na área da saúde. Na última eleição da Fiocruz, em 2016, nem mesmo Michel Temer atreveu-se a indicar a candidata menos votada nas eleições para a presidência da entidade.
No entanto, nas últimas semanas, observou-se nas eleições de reitoria em instituições de ensino superior a indicação por Bolsonaro de candidatos menos votados, porém alinhados politicamente a ele.
A base social tanto do fascismo clássico, quanto do neofascismo brasileiro é de setores de classe média. No Brasil, mais especificamente, setores da classe média alta, que puxaram as manifestações de 2015 e 2016 pelo Impeachment de Dilma e que possuem afinidade ideológica com o bolsonarismo. Esses setores são a base reacionária “mobilizável”, correspondendo a uma porcentagem bem menor do que a aprovação de 40% do presidente, porém bastante representativa. Há o risco de o movimento neofascista ganhar força nas classes populares devido ao papel desempenhado por algumas igrejas neopetencostais, aliadas do presidente. Além disso, com a pandemia e o auxílio emergencial, houve uma migração da base de apoio ao governo Bolsonaro, de parcelas das classes médias para as classes mais pauperizadas.
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A classe média é composta por setores que possuem uma posição intermediária ao proletariado e à grande e média burguesia. São micro e pequenos empresários, profissionais liberais, trabalhadores assalariados da educação, da saúde, do comércio, da contabilidade etc. São setores, portanto, bastante heterogêneos.
A divisão político-ideológica realizada entre trabalho “intelectual” e “manual” (embora todos os trabalhos comportem “atividades intelectuais”) estabelece uma barreira de classe entre setores de classe média e a classe operária, tendo efeitos consideráveis na formação de sua ideologia de classe. O seu subconjunto ideológico é constituído pelos efeitos da ideologia burguesa sobre as aspirações próprias da classe média, setor que é explorado pelo capital, porém de forma distinta da sofrida pela classe operária. Vejamos alguns exemplos desse subconjunto ideológico: defesa da manutenção de hierarquias salariais; medo permanente da proletarização e resistência a uma transformação revolucionária da sociedade, sendo seduzida por ascender à burguesia; individualismo pequeno-burguês; formas corporativistas particulares na luta sindical; meritocracia.
Médicos e o projeto neoliberal
Dentre os setores da alta classe média, figuram os médicos. Setores dessa categoria profissional, através de suas entidades de representação, tiveram nas últimas décadas um papel fundamental na construção do projeto neoliberal para o setor saúde no Brasil.
Nos últimos 10 anos, as entidades médicas realizaram uma oposição sistemática aos programas governamentais de provimento de profissionais em áreas de difícil fixação, como o Provab em 2011 e o Mais Médicos em 2013; realizaram uma recepção xenófoba e racista aos médicos cubanos nos aeroportos; participaram ativamente das manifestações da direita em 2015, dando apoio ao golpe de 2016 e a Jair Bolsonaro em 2018.
Eleito o fascista, a AMB (Associação Médica Brasileira) e diversas sociedades de especialidade vinculadas à mesma publicaram uma carta em que indicavam o então presidente da entidade, Lincoln Ferreira, para ser o próximo ministro da saúde. Posteriormente, apoiaram o nome de Henrique Mandetta para o MS.
Atualmente, boa parte das entidades médicas são coniventes ou estimulam ativamente práticas médicas antiéticas (como a prescrição de Hidroxicloroquina para a Covid) e lavam as mãos perante a política genocida de Bolsonaro na pandemia.
A condição de classe média da categoria médica sobrepõe as ideologias de classe e profissional. Desde a consolidação da Medicina enquanto profissão científica a partir do século XIX, o paradigma biomédico é dominante e imprime elementos ideológicos característicos à sua prática clínica: os distúrbios da homeostase biológica são iguais à quebra de máquinas; a doença é um problema do indivíduo; a ciência permite o controle racional dos seres humanos; muitos aspectos da vida são adequados à administração médica; a ciência médica é ao mesmo tempo esotérica e “excelente”, fazendo com que um grupo de profissionais tenda a ter posições de elite e defensoras do status quo, monopolizando o saber.
No âmbito do mundo do trabalho, ocorreu nas últimas cinco décadas uma reestruturação produtiva no setor saúde que teve como base: (1) o desenvolvimento de novas tecnologias de diagnóstico e terapêutica; (2) o empresariamento no setor saúde e (3) a expansão dos serviços públicos. Isso gerou um processo de proletarização e de assalariamento das profissões da saúde.
Há de se considerar, no entanto, que o processo de proletarização dessas categorias profissionais deu-se de maneira heterogênea. Não houve uma subordinação completa da categoria médica aos proprietários dos meios de produção no setor saúde, pois o trabalho médico ainda guarda características artesanais, realizando muitas ações que se encerram em si mesmas, não surgindo algo como a linha de produção. Ou seja, mesmo com o desenvolvimento tecnológico, ainda não foi possível aliená-los de parte fundamental dos seus meios de produção, que é o saber médico.
É importante destacar que, embora relativamente às outras categorias da saúde a prática médica tenha sofrido menos os efeitos da proletarização, o quadro da profissão é bastante diferente de décadas atrás em que o trabalho se dava em moldes basicamente liberais.
Em 2018, apenas 10,5% dos médicos brasileiros, simultaneamente, possuíam o seu próprio consultório privado e não trabalhavam para empresas de planos de saúde. Isso corresponde, em conta de padaria, a 50-60 mil médicos que não vendem a sua força de trabalho a intermediários (Estado ou empresas), em um universo de meio milhão de médicos.
É nesse cenário de mudanças estruturais no setor saúde e no mundo do trabalho médico em que ocorre: o medo permanente da proletarização; a sedução por ascender à burguesia, alimentada por uma ideologia do empreendedorismo, mesmo que cada vez menos médicos consigam trabalhar somente para si próprios; o corporativismo das entidades médicas que se sobrepõe a projetos de saúde mais democratizantes; e a ideologia meritocrática que se opõe a políticas de compensação social.
O bolsa família e as cotas sociais e raciais, por exemplo, foram ressignificadas por alguns setores de classe média como uma perda relativa de status na sociedade devido à melhora nas condições de vida da base da pirâmide social durante os governos Lula e Dilma.
Boa parte dos médicos apoiou Aécio em 2014 e Bolsonaro em 2018 por enxergar em suas candidaturas a possibilidade de recomposição de seu trabalho em moldes liberais ou com mais autonomia, sem intermediários, com mais liberdade em suas condutas e contra a estatização da Medicina.
A proposta de Bolsonaro de cadastramento universal dos médicos – mimetizando o modelo de contratação pelo Estado de estabelecimentos privados via INAMPS – interessava a uma parcela de médicos, embora o compromisso desses candidatos fosse com o grande capital na área da saúde. Já as propostas de Aécio e Bolsonaro de plano de carreira médica nunca foram cumpridas até hoje, que dirá o piso salarial nacional reivindicado pela FENAM (Federação Nacional dos Médicos) de R$ 15 mil.
Cloroquina divide categoria
A postura de Bolsonaro frente à pandemia dividiu setores da classe média e da categoria médica em relação ao presidente. Para um setor da categoria médica (não sabemos quantos), amparados pela melhor evidência científica, é inadmissível a prescrição do Kit-covid (hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina).
No entanto, frente ao ainda parco arsenal terapêutico para a Covid-19, ausência de uma vacina e à grande mortalidade causada pela doença, muitos médicos, seja pelas pressões que sofrem para “fazerem alguma coisa”, seja por uma formação clínica deficiente para analisar as evidências científicas, acabam prescrevendo o kit, independentemente de serem bolsonaristas ou não.
Além disso, muitos municípios do país, mesmo não sendo dirigidos por coalizões partidárias alinhadas ao presidente, colocam o kit em seus protocolos e nos estoques de suas farmácias. Em ano eleitoral, tratam esse crime como uma vantagem. Essa é a triste realidade com a qual nos deparamos.
No entanto, sempre existiram no Brasil setores da categoria médica comprometidos com a ciência e com a justiça social. No século XIX, médicos e estudantes de medicina participaram das lutas abolicionistas. No final da década de 1970, ganhava força uma corrente sindical chamada Renovação Médica (Reme), formada em grande parte por profissionais assalariados.
Essa corrente tinha uma íntima relação com o movimento da Reforma Sanitária Brasileira, o qual apresentou um projeto de superação da grave crise sanitária que enfrentava o país e que contribuiu decisivamente na construção do SUS. Nas eleições de 2014 e 2020, tivemos movimentos de “médicos com Dilma” e “médicos com Haddad”, este último contando com uma carta assinada por 3 mil médicas e médicos do país. Temos sindicatos, movimentos e entidades médicas dirigidas por setores progressistas e de esquerda.
Por fim, não devemos tratar a categoria médica como base natural do movimento neofascista. Os setores médios da sociedade possuem uma postura vacilante frente às mudanças sociais, não necessariamente estando automaticamente alinhados com o projeto fascista, do capital ou da esquerda.
Já os setores médicos, não necessariamente serão bolsonaristas e sempre rancorosos com a sua perda parcial de status de profissão liberal. Eles poderão ser beneficiados com o fortalecimento do SUS, em que melhores condições de trabalho sejam mais vantajosas do que continuarem a ser explorados por empresas de planos de saúde. É fundamental realizar a disputa política no seio da categoria. Acumular forças e explorar as contradições no seio do bloco inimigo.
Apesar do avanço do movimento bolsonarista sobre os aparelhos de Estado, ainda não se consolidou e não se chegou a um ponto de não retorno no processo de fascistização. Observa-se um regime democrático-burguês sob risco autoritário. Ainda não temos um Estado plenamente de exceção.
Cabem às forças de esquerda estabelecer uma política de frente popular para barrar as reformas neoliberais aliada a uma coalizão democrática para evitar que se feche o regime político. Além disso, torna-se urgente recompor os laços com o proletariado e com as demais classes populares.
Ações territoriais de educação popular e trabalho de base como o Periferia Viva e os Agentes Populares de saúde são iniciativas fundamentais nesse sentido. Envolver os médicos e outros profissionais da área da saúde sensíveis às causas sociais nesse processo é uma tarefa de todo militante em defesa do SUS e da democracia.
*Alisson Lisboa, militante da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares.
Edição: Leandro Melito