O ativista de direitos humanos zimbabuano Elvis Mugari está exilado na África do Sul desde janeiro de 2019, quando entrou na lista de procurados em seu país. O motivo: organizar uma manifestação pacífica contra o aumento do preço dos alimentos, dispersada após forte repressão.
“Os militares mataram sete pessoas, centenas foram presos, mulheres foram estupradas”, relata. O governo não reconhece esses números e afirma que as forças de segurança apenas reagiram à violência dos manifestantes.
Localizado no sul do continente africano, o Zimbábue vê a pandemia de covid-19 acirrar conflitos políticos iniciados há mais de duas décadas.
Cerca de 34% da população vive em extrema pobreza, e a inflação é superior a 300% – a segunda maior do mundo. A precarização das condições de vida dos trabalhadores ampliou a insatisfação com um governo pressionado antes mesmo da posse.
“O regime responde com mão pesada às demandas dos trabalhadores e nega a eles o direito de se engajar em ações trabalhistas, petições e manifestações. Eles estão sendo presos, sequestrados e atacados por pedirem melhores condições de trabalho”, descreve Mugari, enquanto reúne forças para “voltar e encarar o monstro de frente.”
Independente da Inglaterra desde 1980, o Zimbábue realizou uma ampla reforma agrária na década seguinte, redistribuindo 85% das terras do país. O chefe de Estado que liderou aquele processo, Robert Mugabe, pertencia à União Nacional Africana do Zimbábue – o mesmo partido do seu vice e sucessor, o atual presidente Emmerson Mnangagwa.
O Congresso dos Sindicatos do Zimbábue (ZCTU), maior central sindical do país, entende que o mandato de Mnangagwa é ilegítimo. Em novembro de 2017, uma semana após ter sido demitido do cargo de vice, ele ascendeu à presidência com apoio do exército, levando Mugabe à renúncia aos 93 anos.
A lista de críticas e acusações da ZCTU a Mnangagwa inclui corrupção, aparelhamento do Judiciário, perseguição a jornalistas e opositores e violações ao direito de associação dos trabalhadores. Este último aspecto foi endossado por Clément Nyaletsossi Voule, relator especial da ONU para o direito à reunião e associação pacífica.
“Violência estatal já existia durante o governo de Mugabe, mas a situação piorou. Mugabe usou a polícia, enquanto Mnangagwa usa tanto a polícia, quanto os militares e o Judiciário”, afirma o secretário geral da ZCTU, Japhet Moyo, que usa o termo ditadura para se referir ao atual governo. “Em dois anos como presidente, ele já acusou 17 sindicatos, ativistas de direitos humanos e ativistas da oposição de traição, enquanto Mugabe acusou quatro pessoas de traição em 40 anos.”
História
As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por guerras de libertação na África Austral – porção sul do continente – após séculos de dominação europeia. Em países como Zimbábue, Angola e Moçambique, a independência só foi consolidada após luta armada com os colonizadores.
“No Zimbábue houve guerra e, ao final, uma transição negociada, em que uma das condições fundamentais era a manutenção do regime de propriedade. Então, os fazendeiros brancos mantiveram sua terra”, lembra Paris Yeros, doutor em Relações Internacionais e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC).
“Isso porque a África do Sul estava na escalada final de luta contra o apartheid, e se avaliou que o Zimbábue precisaria ‘maneirar’ um pouco para não causar conflitos desestabilizassem as negociações em curso no país vizinho.”
Assim que o apartheid terminou, em 1991, mudanças na estrutura fundiária voltaram à agenda de Mugabe, que havia assumido o poder em 1980. A reforma agrária, considerada a maior do período pós-Guerra Fria, concretizou-se na virada do século, obrigando fazendeiros brancos a entregarem suas propriedades a agricultores negros.
A notícia da redistribuição das terras no Zimbábue, sem a compensação requerida pelos ex-proprietários, ecoou no Ocidente como ameaça.
“Houve uma reação muito forte. O FMI [Fundo Monetário Internacional] e o Banco Mundial, obviamente, cortaram financiamentos. Em 1998, haviam começado as sanções militares, e o país já não conseguia mais comprar das fontes do Ocidente”, acrescenta Yeros.
Conflito estruturado
Em 2001, Estados Unidos e União Europeia iniciaram sanções econômicas unilaterais contra o Zimbábue, que restringem as trocas comerciais de bens e serviços, proíbem viagens de políticos considerados inimigos e suspendem políticas de cooperação e apoio entre governos.
Dentro do país, também houve reações – mesmo antes da reforma agrária. Ativistas políticos e setores da classe trabalhadora que haviam apoiado ou participado das lutas de libertação romperam com Mugabe e passaram a integrar as fileiras da oposição a partir de 1995. O teor das acusações era semelhante ao de hoje: autoritarismo, corrupção, aparelhamento do Estado.
“Quando chega a pandemia [de covid-19], o conflito já está estruturado há 20 anos. Então, a oposição no Zimbábue inclui desde EUA, latifundiários contra a reforma agrária, até o próprio movimento sindical”, ressalta Yeros.
Embora o propósito da reforma agrária seja quase unanimidade entre os opositores – exceto pelos ex-latifundiários –, Mugabe é criticado por utilizar aquele processo para beneficiar aliados e veteranos das lutas de libertação.
Elvis Mugari defende uma auditoria das terras do país e uma retomada da distribuição de terras baseada no conceito “um homem, uma propriedade”. Segundo o opositor, o governo nunca combateu as novas formas de grilagem que se desenvolveram no Zimbábue desde os anos 2000.
Sanções
A economia do Zimbábue depende da mineração e da agricultura, principalmente do tabaco, do açúcar, do milho e do algodão. A adoção do dólar como moeda oficial, em 2009, reverteu a tendência de encolhimento do Produto Interno Bruto (PIB), mas não trouxe a estabilidade prometida.
O governo alega que as sanções encarecem as importações e restringem as exportações, devido às multas e proibições impostas por Estados Unidos e União Europeia.
Em 4 de março de 2020, quando a covid-19 começava a se espalhar pelo continente africano, Donald Trump renovou as sanções por tempo indeterminado. “O Zimbábue teve ampla oportunidade de estabilizar a África Austral e abrir as portas para uma maior cooperação com os EUA. Infelizmente, o governo de Emmerson Mnangagwa ainda não sinalizou vontade política para implementar essas reformas”, informou um comunicado da Casa Branca naquele dia.
Mugari explica que o fim das sanções não é uma das bandeiras centrais da oposição. Para o ativista, culpar as sanções pelos problemas socioeconômicos do país é tirar a responsabilidade do regime pela crise.
“A matança de manifestantes pelo exército em 2018, a repressão violenta aos protestos em 2019, o espancamento de manifestantes em agosto de 2019 e a contínua onda de sequestros, tortura de críticos do governo, líderes sindicais, membros da oposição mostram que as sanções devem ser intensificadas até que o regime se arrependa e passe a respeitar o Estado de Direito”, afirma.
Contradições
Paris Yeros chama atenção para o não-alinhamento político e militar do Zimbábue com o Ocidente. “Após 2003, a região [África Austral], com exceção de Botswana e Tanzânia, fechou um acordo multilateral de defesa mútua. Por isso, está blindada, diferentemente do resto da África, onde há presença da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte], da CIA. São conquistas dos movimentos de libertação, que conseguiram consolidar esses ganhos na matéria de segurança”, ressalta.
“Existe, claro, repressão, prisão de jornalistas”, acrescenta o professor. “É claro que isso não é saudável ao espaço democrático, mas também acontece em outros países, como a própria África do Sul. Os assassinatos políticos, a corrupção, também”.
Ao analisar violações ao Estado de Direito, Yeros aponta que não haveria reforma agrária no Zimbábue sem a radicalização do Judiciário.
“Para fazer a reforma agrária, eles violaram a propriedade privada. E aí começa o debate em torno do Estado de Direito, porque o sistema de justiça defendia automaticamente a propriedade privada. Eles tiveram que aposentar juízes [contrários à reforma], reestruturar o sistema, mobilizar o exército para defender as ocupações”, ressalta.
O professor da UFABC admite dificuldade ao caracterizar o Estado no Zimbábue. “Há problemas conceituais que nos desafiam. Tivemos uma situação revolucionária. O partido tem uma estrutura leninista, que vem da guerrilha, mas ideologicamente é ‘pequeno burguês’, e pode ir do neoliberal até o radical”, explica.
“Houve um pacote neoliberal, de desindustrialização, entre 1990 e 1996. Em seguida, o país entra na rota de colisão com o FMI, e desde 2005 há uma série de tentativas de normalizar a relação com o Ocidente, incluindo a dolarização – ao mesmo tempo, com repressão interna e com limites à exploração de minérios por empresas estrangeiras”, completa Yeros.
“Há várias contradições. Os bancos nunca foram tomados, formou-se uma burguesia interna com interesses próprios, e cultivos agrícolas foram reinseridos em cadeias globais, na lógica das multinacionais”, exemplifica.
Perspectivas
Com 15 milhões de habitantes, o Zimbábue tem menos de 300 mortes confirmadas por covid-19, mas as consequências da pandemia são mais amplas.
Como 94% da força de trabalho está na informalidade, o governo não conseguiu garantir renda mínima para todos durante a quarentena. O auxílio mensal, equivalente a R$ 15, não chegou nem à metade das famílias pobres.
As dificuldades econômicas limitam a compra de testes, o que explica o baixo número de vítimas fatais – o país é apenas o 96º do ranking mundial de óbitos por covid-19. A falta de recursos também compromete a manutenção da estrutura dos hospitais e o pagamento de salário em dia aos servidores públicos.
“Hospitais foram fechados por falta de recursos, e médicos e enfermeiros estão em greve há mais de um ano”, ressalta o secretário geral da ZCTU, Japhet Moyo.
O dirigente acrescenta que o governo Mnangagwa utilizou medidas de contenção – necessárias contra o coronavírus –, desde 30 de março, como pretexto para aumentar a repressão: “O número de pessoas presas por violar a quarentena supera o número de testados para covid-19”, resume.
Desde que a quarentena foi flexibilizada, em 16 de maio, milhares de trabalhadores protestam nos locais de trabalho todas as segundas-feiras no intervalo do almoço. Eles pedem melhores salários e dizem que as respostas do governo à crise são insuficientes.
Elvis Mugari se diz cético sobre as possibilidades de resolução do conflito internamente. “O presidente já cultivou o medo em seus críticos, e a perspectiva de resistência a seu regime militar diminui a cada dia. A oposição e os trabalhadores contam apenas com a comunidade internacional para fazer ecoar a crise que estamos vivendo”, analisa o ativista exilado.
Para Moyo, sem a intervenção de blocos regionais como a União Africana e a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral, as eleições presidenciais de 2023 serão mera formalidade. “Com ajuda do exército, eles anunciarão a reeleição de Mnangagwa mesmo com derrota nas urnas”, prevê o sindicalista.
Edição: Rodrigo Chagas