A ligação da luta feminista com a luta por condições de reprodução da vida segue
Por Natália Lobo*
Os últimos meses, em especial as últimas semanas, foram repletos de acontecimentos no tema da alimentação. A subida do preço do arroz e outros itens da cesta básica, a tentativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) de fazer uma revisão no Guia Alimentar para a População Brasileira, e o aumento da fome e da insegurança alimentar captados pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2017-2018) divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são alguns exemplos.
Todos esses dados e notícias estão relacionados porque dizem sobre a organização dos sistemas alimentares, das políticas agrícolas e agrárias e sobre nossa própria alimentação. A política atual do governo federal em relação ao preço dos alimentos e às possíveis ações da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) é colocar o problema nas mãos do mercado.
Quando a alimentação é deixada à mercê do livre mercado, aqueles que são sistematicamente excluídos por esse sistema econômico e pela divisão sexual e racial do trabalho também são os que passam mais fome
As empresas transnacionais da alimentação lucram como nunca. Enquanto isso, o trabalho de preparar a comida é feito exclusivamente pelas mulheres que, isoladas em seus lares, encontram dificuldade de manter as famílias em situação de segurança alimentar e assumem uma sobrecarga de trabalho de cuidados.
Como chegamos aqui?
O caminho que fez o preço do arroz disparar é emblemático para compreender como a política de segurança alimentar tem sido sistematicamente desmontada. Como demonstrado no texto de Sílvio Isoppo Porto para o Le Monde Diplomatique, a área plantada de arroz no Brasil tem diminuído drasticamente ano após ano, notadamente depois de 2014.
Junto à diminuição potencial da produção, fortemente relacionada com a expansão da soja e do milho no Centro Oeste, se dá também o aumento da exportação do arroz. Ou seja: um alimento básico é considerado apenas como commodity e, ao mesmo tempo, a Conab declina em sua política de manter estoques públicos, fundamental para garantir a segurança alimentar e uma menor oscilação dos preços no mercado.
É de se esperar que esse tipo de política agrícola e agrária impacte diretamente o preço da comida e, consequentemente, a possibilidade de acesso das pessoas ao alimento.
Quando a agricultura é vista como negócio e organizada para o mercado externo, a alimentação de um povo sofre as consequências
A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) 2017-2018 do IBGE mostra que o Brasil apresentou o pior nível de segurança alimentar desde 2004. Essa piora é mais acentuada nas famílias comandadas por mulheres e pela população negra. Quando a alimentação é deixada à mercê do livre mercado, aqueles que são sistematicamente excluídos por esse sistema econômico e pela divisão sexual e racial do trabalho também são os que passam mais fome.
Os resultados da POF também mostram que, apesar das famílias brasileiras ainda consumirem uma quantidade relevante de alimentos in natura, sobretudo no Norte e no Nordeste, são os alimentos processados e ultraprocessados que ganham cada vez mais espaço na dieta brasileira.
Enquanto o consumo de arroz e feijão caiu em relação a pesquisa de 2002-2003 (queda de 37% e 52%, respectivamente), o consumo de alimentos preparados e misturas industriais subiu 56%.
A diminuição do consumo de arroz pelas famílias está conectada com a diminuição da área plantada no Brasil. Quando a agricultura é vista como negócio e organizada para o mercado externo, a alimentação de um povo sofre as consequências: come-se menos arroz e feijão, enquanto se come mais alimentos processados lotados de subprodutos do milho (xarope de glucose e amido são só alguns exemplos).
Quando o acesso ao alimento e a condições básicas de vida ficam mais difíceis, é o trabalho das mulheres que se agiganta, para dar conta da situação de precariedade
Nesse sentido, uma organização mercantil da agricultura e a soberania alimentar são projetos, necessariamente, inconciliáveis.
A popularidade do Guia Alimentar para a População Brasileira, que preconiza o consumo de alimentos in natura em detrimento dos processados, e o respeito à sazonalidade e à diversidade dos alimentos, só poderia então ser uma pedra no sapato do agronegócio.
Depois de muita mobilização e denúncia, a ministra da Agricultura Tereza Cristina rejeitou a recomendação da nota técnica, que ia no sentido de alterar as recomendações do guia em relação ao consumo de ultraprocessados.
Tal mobilização mostra como a alimentação é um tema que tem interessado cada vez mais pessoas. Através da luta pelo nosso direito a ela, poderemos fortalecer um projeto feminista, anticapitalista e antirracista para a agricultura, a economia e a organização da vida coletiva.
Mulheres por outra forma de produção e consumo
Historicamente e ao redor do mundo, a luta das mulheres entende as condições de vida e de realização do trabalho reprodutivo como elementos centrais. Quando o acesso ao alimento e a condições básicas de vida ficam mais difíceis, é o trabalho das mulheres que se agiganta, para dar conta da situação de precariedade.
O protagonismo das mulheres na luta contra a carestia no Brasil, em plena ditadura militar, foi um movimento que ganhou muita visibilidade, e que expôs algo que as mulheres sempre fizeram: se organizar territorialmente, nas comunidades, para garantir condições dignas de vida.
Nos demais países da América Latina, com destaque para o Chile, o período de ditadura e de implementação do neoliberalismo no continente também foi um momento de aumento das “ollas comunes” (panelas comuns): espaços onde o trabalho de alimentação, cuidado e escuta mútua se organizam coletivamente, saindo do domínio privado dos lares.
Hoje, quando o Chile enfrenta uma crise econômica e um aumento do desemprego, impulsionados pela pandemia, novamente as mulheres estão à frente da organização das ollas comunes, o que vemos também entre jovens mulheres do Peru.
Isso nos mostra que a ligação da luta feminista com a luta por condições de reprodução da vida segue, e é ainda mais necessária. E que a resposta das mulheres para a crise continua sendo a de coletivizar o trabalho doméstico e de cuidados e desmercantilizar a vida.
No movimento agroecológico, também são principalmente as mulheres que pautam a importância da alimentação como eixo de ligação entre campo e cidade. Na periferia do Rio de Janeiro, as mulheres da agricultura urbana criaram a ideia de “cozinha de transição agroecológica”: a ideia de que, da mesma forma que se busca a diversidade e a valorização dos alimentos locais nos cultivos agroecológicos, deve-se valorizá-los nas mesas das famílias.
Isso faz parte de um grande desafio, porque a comida processada, além de viciar o paladar e de ser barata - devido ao enorme subsídio que os governos cedem às indústrias - também servem como o caminho menos penoso para muitas mulheres, que precisam alimentar suas famílias com cada vez menos tempo para cozinhar.
Por isso, a transição agroecológica - na organização do sistema alimentar e na mesa das pessoas - só se dá com esforços conjuntos: de desmercantilizar a agricultura e a natureza, e de redistribuir o trabalho doméstico e de cuidados. Enquanto a alimentação for assunto para cada mulher pensar em sua própria cozinha, a transformação do sistema alimentar só pode se dar pela metade.
*Natália Lobo é agroecóloga e parte da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista
Edição: Leandro Melito