A Constituinte de 1988 inaugura um novo paradigma jurídico no que diz respeito ao direito de propriedade dos povos e comunidades tradicionais, notadamente, indígenas e quilombolas. Rompe-se com a hegemonia da propriedade privada amplamente consolidada e protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro desde a Lei de Terras de 1850, e consolida-se, pelo menos no plano constitucional, a propriedade coletiva. Alguns juristas atribuem a esse processo, a opção da carta política de 1988 por um Estado Pluriétnico.
Ao atribuir caráter coletivo à propriedade, o constituinte provoca um deslocamento paradigmático no que diz respeito ao valor normativo acerca do instituto da propriedade.
Diferente do que tradicionalmente se verifica na propriedade privada em que o privilégio do individualismo é amplamente homenageado e protegido, já na propriedade coletiva o que se tem como esteio central é a proteção dos grupos sociais em questão, tomando-a como elemento constitutivo e afirmativo da identidade de um povo. Ou seja, a terra deixa de ser terra para ser território. A terra deixa de ser mercadoria, para ser elemento identitário.
Este novo paradigma constitucional provocou reações e ataques de setores conservadores e ruralistas na mídia corporativa, no congresso nacional e no judiciário. Sucessivas foram as tentativas de sustar os efeitos do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF/88 no parlamento nacional e no judiciário a exemplo da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239/2004 que buscava fustigar o Decreto 4.887/2003 que regulamenta o referido artigo 68.
Num esforço conjunto de barrar este avanço tentaram emplacar a tese do marco temporal para indígenas e quilombolas. O marco temporal basicamente sustenta que para efeitos de regularização fundiária e titulação das áreas indígenas e quilombolas, estes deveriam estar ocupando suas respectivas áreas na promulgação da Constituição Federal de 1988.
Para estes povos, esta tese significa na prática uma sentença de morte social, uma vez que lhes impõe o destino fatal da não reprodução social e cultural, negando-lhes não só o direito à terra, mas também o direito ao futuro.
Na verdade o que se tem é uma histórica disputa ideológica e cultural imposta por uma elite branca e racista em torno da propriedade privada do grande capital financeiro que concebe a terra unicamente como bem material, portanto, comercializável, versus propriedade coletiva que busca, ao cabo, a manutenção da dignidade humana dos povos e comunidades tradicionais por meio da materialização dos direitos à vida em abundância e plena em seus territórios.
Em 2002, com a ratificação da Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (C169), povos e comunidades tradicionais conquistam um importante instrumento de defesa e proteção de seus direitos territoriais.
Dentre os direitos introduzidos pela C169 no ordenamento brasileiro, tem-se: o direito de consulta prévia, livre e informada (art. 6º) que deverá ser aplicado todas as vezes que forem previstas medidas administrativas e legislativas suscetíveis de afetá-los diretamente; o direito de escolher quais as suas prioridades no processo de desenvolvimento (art. 07); o direito de participação nos benefícios gerados pela atividade econômica (art. 15, 2); vedação à retirada das terras que ocupam (art. 16).
Por onde se leia, a C169 constitui-se num robusto documento internacional de proteção das comunidades tradicionais e se harmoniza perfeitamente com o texto constitucional de 1988. Mais que isso. Considerando que a sociedade brasileira efetivamente não rompeu com a lógica escravagista e os valores que informam o colonialismo ainda permanecem vivos em todas as instituições e estruturas do Estado, a C169 em conformidade com a Constituição Federal também cumpre a tarefa histórica de reposicionar os povos e comunidades tradicionais, alçando-as ao lugar ativo de comando e decisão sobre suas vidas e futuro, rompendo, assim, com a lógica da tutela imposta sobre estes povos e comunidades em que o poder sobre suas vidas e destino sempre foi atribuição do Outro.
O cenário atual brasileiro, resultante da atuação política institucional do Governo Bolsonaro confirma a gravidade do momento que enfrentamos que se concretiza nos ataques aos povos e comunidades tradicionais, e no desrespeito às normas constitucionais e internacionais de proteção destes povos e comunidades.
Se governos anteriores, a despeito de suas origens progressistas, trataram esses direitos com tibieza, muito embora tenham avançado no plano formal com normativas importantes previstas na Constituição Federal de 1988, o atual governo retira por completo, formal e politicamente, da pauta institucional ou da arena pública o debate acerca da proteção dos direitos territoriais dessas comunidades.
Nesse sentido o Estado brasileiro tem atuado na contramão dos direitos dos povos e comunidades tradicionais deste país: entregou Alcântara aos EUA em detrimento da vida dos quilombolas; ataca os povos indígenas publicamente; vetou políticas de proteção a estes povos na pandemia do Covid-19; ignora os desastres ambientais que tem se transformado em morte física e social dos territórios sagrados e biomas destas comunidades; e ainda, os culpabiliza dolosamente por isso perante o mundo.
Leia também: Os desafios da quarentena para quilombolas, indígenas e ribeirinhos no norte do Pará
Importante destacar que parte dos ataques hoje sofridos por povos e comunidades tradicionais deve-se também à ausência de uma política estruturante de regularização fundiária dos territórios sob domínios destes povos. Governos anteriores também falharam profundamente na proteção e defesa destes povos e suas áreas. Falharam também em não assegurar o direito de consulta prévia, nos termos da C169.
O desafio central destes povos e comunidades para sua própria sobrevivência perpassa fundamentalmente por colocar na mesa de debate de toda a sociedade brasileira o racismo estrutural que sempre conduziu e estruturou sua relação com o Estado.
Ao rememorar esta data importante alusiva aos 32 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, trazemos para reflexão a urgência da materialidade de realização dos direitos dos povos e comunidades tradicionais duramente conquistados e previstos na Constituição cidadã.
De forma que, os princípios constitucionais de proteção e defesa que se desdobram em acesso a direitos conquistados destes povos, sejam assegurados pelo Estado brasileiro e suas respectivas instituições. Bem como, a necessidade de seguirmos avançando na luta pela conquista de direitos e pela manutenção dos processos democráticos que nos permita viver com dignidade numa sociedade livre e igualitária.
*Euzamara de Carvalho é Pesquisadora no Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Direito Humanos - PPGIDH/UFG, Integrante da Secretaria Nacional do Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais – IPDMS, Membro da Executiva Nacional da ABJD.
**Danilo Serejo é Quilombola de Alcântara/MA, Pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e membro do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE). Bacharel em Direito pela UFG, Mestre em Ciência Política pela UEMA.
*** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Leandro Melito