Em Paris, a 16° edição do Festival Brasil em Movimentos ocorreu às vésperas das novas medidas de restrição que o governo francês se viu obrigado a adotar em função do aumento de contaminações poucos meses após o relaxamento do isolamento social. Entre a abertura, na sexta-feira (2), e o encerramento, no domingo (4), a lotação plena da sala foi uma constante – uma média de 150 pessoas, apesar da capacidade reduzida em respeito aos protocolos de segurança.
Segundo os curadores da mostra, esta edição foi orientada por uma declarada tomada de posição sobre a conjuntura brasileira marcada pela avanço das forças de extrema direita que caracterizam o governo Bolsonaro e pela guerra cultural implementada por esses setores.
Erika Campello, co-presidenta da Associação Autrès Brésils, que organizada o Festival, explica que o “Festival é hoje, mais do que nunca, um espaço para apresentar na França e na Europa as lutas sociais brasileiras, para mostrar que há resistência face à política de destruição do governo Bolsonaro, que há lutas dos movimentos sociais e populares, e também para criar laços de solidariedade com todos esses movimentos e com a geração de cineastas documentaristas que retratam as contradições sociais do Brasil”.
Para aprofundar a abordagem dessas questões e dar visibilidade a uma produção politicamente perseguida e prejudicada pelos cortes de recursos públicos e sucateamento ou controle dos espaços institucionais, o Festival selecionou 12 filmes, nove deles inéditos na França, organizados em cinco sessões temáticas: Povos originários, Violência de Estado, Juventude das favelas, Identidades lésbicas e, completando a quinta sessão temática, Raízes/Racismo. Confira aqui a programação e o títulos de todos os filmes.
Um espaço para mostrar que há resistência face à política de destruição do governo Bolsonaro.
Entre os poucos diretores e diretoras presentes no Festival, pois as restrições europeias impediram a vinda de realizadores brasileiros para a Europa, estava Luís Henrique Leal, diretor do filme Porto de Galinhas, exibido na sessão Raízes/Racismo. Leal, cineasta pernambucano e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, ressalta que “considerando a tragédia do momento, não dá para esquecer que um ex-secretário de cultura fez homenagem ao nazismo ou que uma ex-secretária desdenhou das vítimas do terrorismo de Estado durante a ditadura militar. Não resta dúvida de que o projeto em curso é de destruição”.
Ele aponta ainda o desmonte do Ministério da Cultura e da Cinemateca Brasileira, que é o maior arquivos de filmes do país e tem o maior acervo audiovisual da América do Sul.
Além da projeção dos filmes, houve ainda momentos de debates para aprofundar a análise sobre os problemas da sociedade brasileira atual, abordando o racismo estrutural e suas raízes na formação escravocrata do país, além do aumento da violência de Estado contra populações negras periféricas, indígenas, camponesas e LGBTQ+.
Geneviève Garrigos, ex-presidenta da Anistia Internacional Francesa (2008-2016) e pelos países americanos na Anistia, afirma que o Festival “tem um papel essencial mostrando a resistência política, social e ecológica no Brasil, apesar da crise do covid”.
O fechamento do Festival no domingo foi marcado pelo debate intitulado “Brasil, país em crises”. Para abordar o tema das crises múltiplas que assolam o país, como a crise econômica, social, política, ambiental e sanitária, a curadoria convidou o advogado indígena Eloy Terena.
O representante da Articulação dos povos Indígenas do Brasil (Apib) relatou os enfrentamentos que os indígenas vêm realizando contra o governo federal para assegurarem medidas de proteção aos povos indígenas no contexto da pandemia, destacando a primeira vitória que eles tiveram no STF e apresentando os novos projetos da organização e apontando os desafios para as demarcações de terras indígenas no atual governo.
Outro tema que despertou o interesse do público foi a apresentação das ações de solidariedade que os movimentos sociais estão realizando durante a pandemia. A doação de mais de 3,4 mil toneladas de alimentos feita pelo Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), assim como as ações de solidariedade realizadas pela Frente Brasil Popular nos marcos da Periferia Viva e, conjuntamente com a Frente Povo Sem Medo, pela Vamos precisar de todo mundo.
Tiveram destaque o trabalho feito pelos agentes populares, as ações dos entregadores antifascistas e as mobilizações da torcidas organizadas contra o fascismo apontaram novas formas de resistência e indícios de novos processos organizativos ainda desconhecidos entre os franceses.
Para Garrigos, eleita nas últimas eleições municipais para o Conselho da cidade de Paris, “os filmes e os debates nos interpelam e exigem de nós engajamento e uma mobilização de apoio a uma sociedade civil que, a imagem de um David confrontando um Golias, segue em pé”.
*Douglas Estevam é militante e compõe o Coletivo de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Edição: Rodrigo Chagas