MEMÓRIA

Artigo | CCC: jovens, anticomunistas e torturadores

Grupo terrorista dos anos 1960 surgiu como “movimento universitário de direita”, mas ganhou projeção por seus crimes

Grafites da organização terrorista Comando de Caça aos Comunistas - Arquivo Nacional / Correio da Manhã

O Comando de Caça aos Comunistas (CCC), suas ações e pautas durante a ditadura civil-militar, seus métodos de atuação, anseios sociais e políticos, marcam consideravelmente a história de que não é a primeira vez que vemos jovens atuando em nome da extrema direita no Brasil.

O CCC se organizou no ano anterior ao golpe de 1964. Apesar de uma certa controvérsia a respeito do ano de sua formação, o CCC surge primeiramente como uma ideia anticomunista, patriótica e violenta. É a partir desta perspectiva e levando em conta que a sua formação dependeu da atuação de estudantes em frentes universitárias partidárias, que se toma o ano de 1963 como data de formação do CCC.

Isso aconteceu nas dependências da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, quando João Marcos Flaquer, aluno da faculdade e membro de um dos partidos acadêmicos dessa instituição, manifesta as intenções de criar o grupo1. A João Marcos Flaquer, se juntaram outros estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É da Universidade Mackenzie, que se apresenta um dos seus mais famosos integrantes, Raul Nogueira de Lima, mais conhecido como “Raul Careca”.

Durante o período da ditadura civil-militar, a atuação de uma parcela dos estudantes ditos como “conservadores”, ou chamados de “democráticos”, tinha por interesse fazer ação paramilitar em nome do fechamento político do regime. Esse tipo de estudante, conservador, na maior parte das vezes ligado à classe média, recebeu a alcunha de “democrático” por meio dos jornais. Pode-se dizer que são um equivalente histórico da “gente do bem” dos tempos atuais.

Por um estudo produzido na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em que foram analisados diversos documentos produzidos à época, inclusive aqueles oriundos dos aparelhos repressivos, além do que era divulgado na imprensa e pelo movimento estudantil, marca-se a ideia de que nem todos os estudantes universitários das grandes capitais eram atuantes contra o regime, e mais ainda, uma parcela considerável do dito “movimento estudantil” era de direita e atuava em nome da bandeira anticomunista, medo imaginário que perpassou a política brasileira desde o início do século XX.

Portanto, a formação de associações juvenis era uma prática não adstrita aos estudantes de esquerda, tendo sido comum também entre os “estudantes conservadores” que se organizaram em movimentos como a Frente da Juventude Democrática (FJD) e o Grupo de Ação Patriótica (GAP). Os tais “estudantes democráticos” tinham suas organizações, disputavam eleições, se uniam em partidos acadêmicos. Por meio destes partidos e organizações, almejavam disputar a direção de instituições como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Estadual dos Estudantes (UEE). O objetivo de alguns estudantes, naquele momento, não era extinguir os movimentos estudantis e suas organizações, mas sim, livrá-las do “perigo vermelho”.

O que se constatou é que os membros do CCC atuaram em ambientes acadêmicos fazendo política interna em redes de ação universitária e legal, principalmente sendo parte de partidos acadêmicos das universidades e participando dos processos de mobilização política, atuando nas eleições das faculdades, na organização de chapas, etc… Agindo por dentro das universidades, atentos às legislações e regimentos, o CCC se organizou como “movimento estudantil”, amplamente favorável à ditadura. Nas instituições de ensino agiam por partidos acadêmicos, utilizando o estatuto estudantil. Para os atos violentos, seus integrantes atuavam sob a sigla CCC.

Na imprensa, o grupo aparece pela primeira vez em 1964. Retorna em 1967, mas foi a partir de 1968 que passou a ocupar com frequência as páginas dos jornais e revistas, quando atua além dos muros da Universidade2. Até meados de 1968, o grupo era tratado pela imprensa como uma organização de estudantes que se opunha ao movimento estudantil de esquerda. A análise dos atos praticados pelo grupo, a partir da imprensa, começa quando eles ainda eram circunscritos ao ambiente estudantil, especialmente os atos praticados contra as ocupações estudantis às universidades realizadas em junho de 1968, o que motivou a publicação e divulgação, na imprensa, do primeiro manifesto assinado pelo grupo.

O ano de 1968 é chave para entender o desenvolvimento deste grupo, pois ele ganha forma diante dos constantes embates entre os tais “democratas” e os “subversivos” dentro das universidades de São Paulo. É em junho de 1968 que ocorre, nos jornais, a primeira menção ao CCC, de forma isolada, como um “grupo terrorista de direita” que intimidava o movimento estudantil.

A partir do ataque à peça Roda Viva, em julho de 1968, o grupo passa a ser, paulatinamente, relacionado como organização terrorista, prática que se consolida a partir do conflito entre os estudantes da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana, a Batalha da Maria Antônia, ocorrido nos dias 2 e 3 de outubro de 1968.

O ataque à peça Roda Viva, ocorrido no dia 18 de julho de 1968, foi extremamente violento, e teve como palco o Teatro Galpão, na cidade de São Paulo (SP), que foi atacado e depredado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Contrários às “obscenidades em teatro”, mas também com o objetivo de alertar a sociedade e as autoridades para o risco de uma “ditadura marxista” no país, o grupo organizou seu atentado, em que atores foram agredidos, as atrizes despidas, o teatro destruído. Mais tarde, em outubro de 1968, desta vez em Porto Alegre (RS), a peça sofreu novo atentado. Os atores, chegando ao hotel em que se hospedavam, foram surpreendidos pelo grupo e agredidos de forma violenta. Houve também outros ataques ao meio artístico, conforme o apurado pela imprensa.

No mesmo período, aconteceu a Batalha da Maria Antônia, um conflito ocorrido nos dias 2 e 3 de outubro de 1968, entre os estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie. A presença do CCC no conflito foi mencionada pela imprensa. Vale lembrar que as sedes dessas duas instituições eram vizinhas no centro de São Paulo.

Esse conflito faz parte de um contexto mais amplo, inserido nos debates da reforma universitária em curso naquele momento. Além disso, havia a ideia de que destruir a “Maria Antônia”, como era chamada a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, tinha uma representação que atravessava o movimento estudantil: era a destruição de um símbolo de resistência ao regime.

Em 1968, acontecem vários atos em outros locais do Brasil utilizando a sigla do CCC. Não se pode dizer que estes grupos eram diretamente orientados pelo CCC com sede em São Paulo, mas, pode-se afirmar que eles se assemelhavam na prática da violência e na perseguição de quem ousava se opor ao regime, se unindo por meio de um ideal violento e autoritário. O Comando de Caça aos Comunistas (CCC) virou uma ideia. Passou além da história do grupo formado pelos estudantes das Arcadas de São Francisco e da Universidade Presbiteriana Mackenzie e se espalhou pelas mãos de muitos outros sujeitos, até meados dos anos 1980.

O grupo se difundiu pelo país, chegando ao ápice em Recife, quando foi acusado pela morte do Antonio Henrique Pereira Neto, assassinado violentamente em maio de 1969. Padre Henrique, como era conhecido, era Coordenador da Pastoral da Arquidiocese de Olinda e Recife, exercia seu ministério diretamente com a juventude e era próximo de Dom Hélder Câmara, Arcebispo de Recife, que também sofreu ameaças e atentados atribuídos ao grupo.

Com a decretação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968, os atentados do CCC vão deixando de ocupar as páginas dos jornais. Primeiro, por conta da censura imposta à imprensa quando do aumento da repressão institucional. Além disso, a sua própria ação parece ter sido arrefecida pela atuação direta do governo sobre seus oponentes, já que próprio regime passa a perseguir mais duramente os movimentos sociais que antes eram alvo do grupo.

A atuação do CCC perpassou os anos 1970 e sua marca foi sendo utilizada como égide de todos aqueles que assumiam a mesma posição de intolerância à abertura democrática. Nesta década, o grupo já não é mais tratado pela imprensa como organização estudantil. Passa a ser entendido como grupo paramilitar que prática terrorismo.

O retorno do grupo à imprensa se torna mais evidente a partir de 1977. Provavelmente, a manutenção do ritmo da repressão, mesmo com o processo de reabertura democrática anunciado em 1974, fez com que o CCC não visse a necessidade de retornar à ativa logo que a transição “lenta, gradual e segura” começou a ser discutida. Todavia, a partir de 1977, o cenário começa a se alterar. Em 29 de setembro de 1977, o CCC emite seu primeiro manifesto publicado depois do AI-5 e dos longos anos de chumbo, motivado, em parte pela reorganização do movimento estudantil no ano de 1977.

Apoiado em um sistema que legitimava práticas persecutórias, por meio das leis e do judiciário, contra aqueles que o Estado classificava como criminosos políticos, o grupo praticava ameaças, sequestros e atentados, mas também agia por dentro do aparelho estatal, com a atuação de membros dos seus quadros no aparelho repressivo, atuando como informantes, participando de prisões e torturas. Relatos sobre prisões e torturas apontam para a participação in loco de membros do CCC. Nos depoimentos das vítimas, por vezes se mencionava o nome de algum elemento em específico ou a sigla designativa da organização. No quadro de ação do regime, o CCC ora era vigiado, ora era abafado, mostrando claramente esse balanço entre cumplicidade e precaução da parte do Estado para com o grupo.

A atuação do CCC como um braço da repressão a serviço do regime foi se alterando ao longo dos anos da ditadura, e esse é o eixo de toda uma pesquisa histórica que pretende jogar luz sobre essa relação. Seja partindo de seu estatuto de estudante, tutelado por professores com forte ligação com o regime, passando à prática do terrorismo, espalhando os ideais anticomunistas pelo país, sob o signo da impunidade, até a constatação de que membros do grupo agiram dentro do aparelho repressivo, sob a chancela do governo, em cooperação com os órgãos estatais, são os pontos em destaque.

Enquanto vivemos a nossa vida, nem sempre estamos cientes e pensando que somos produtores de documentações, somos agentes da história. Mas, a história tem o seu tribunal. Instituições, grupos, indivíduos, podem passar pela impunidade, enquanto vivem suas experiências. Mas, lembremos que esses grupos são feitos por gente de carne e osso, com nome, status, posição social. Podem passar impunes, mas isso não lhes garante a segurança eterna do esquecimento. O que era morto, retorna à vida, quando passa à história. O Comando de Caça aos Comunistas retorna, historiografado, à avaliação pública por seus atos vergonhosos.

O Brasil de Bolsonaro não durará para sempre. A dimensão histórica pode ser um alento.

1 A iniciativa de João Marcos Flaquer de formar o grupo, dentro de um partido acadêmico da Faculdade de Direito, foi mencionada no relato de Paulo Azevedo Gonçalves do Santos, colega de João Marcos Flaquer, ao pesquisador Gustavo Esteves Lopes, autor da pesquisa pioneira sobre o CCC, denominada “Ensaios de Terrorismo”: História Oral do Comando de Caça aos Comunistas, desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, que reúne relatos de 12 testemunhas de atuação do grupo.

2 A pesquisa problematiza 475 (quatrocentos e setenta e cinco) reportagens, de diversos jornais e 45 (quarenta) matérias de revista de diferentes locais do país, publicadas de 1963 a 1980, investigando e pautando os atos que foram atribuídos ao grupo, em todo o Brasil, dentro do período.

 

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Outras Palavras