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Artigo | A letra fria da lei e o calor dos arautos da sociedade

Não se pode acusar alguém pelos seus pensamentos, pela sua aparência, classe social, por ser uma pessoa ruim ou perigosa

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
O senso comum , com seus argumentos morais, aprova as prisões preventivas por periculosidade, como gente estudada tem afirmado, mas juridicamente isso é bastante equivocado - Agência Brasil

Por Edevaldo de Medeiros*
 
Muito se fala em garantismo penal no Brasil, mas pouco se explica a respeito do seu significado e menos ainda sobre a sua estrutura. Não é possível, claro, explanar uma obra densa, sua episteme, axiologia e normatividade em um texto de duas laudas, mas dá para plantar a dúvida, germe do conhecimento.

Garantismo penal, mais do que possa parecer, não é exatamente interpretar a lei de maneira mais favorável ao réu. O garantismo penal é um sistema, chamado de “Sistema Garantista – SG”, por Luigi Ferrajoli, seu criador, constituído por 10 axiomas e 45 teoremas deles derivados. São seis axiomas de direito penal e 4 de processo penal. Por se tratar de um sistema, tudo fica entrelaçado e mais ou menos fácil de compreender. O conhecimento de lógica proposicional ajuda um pouco a entender a obra, mas não é essencial. Prossegue o autor.
 
“O modelo garantista descrito em SG apresenta as dez condições, limites ou proibições que identificamos como garantias do cidadão contra o arbítrio ou o erro penal. Segundo este modelo, não se admite qualquer imposição de pena sem que se produzam a comissão de um delito, sua previsão legal como delito, a necessidade de sua proibição e punição, seus efeitos lesivos para terceiros, o caráter externo ou material da ação criminosa, a imputabilidade e a culpabilidade do seu autor e, além disso, sua prova empírica produzida por uma acusação perante um juiz imparcial, em um processo público e contraditório em face da defesa e mediante procedimentos legalmente preestabelecidos."

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Aqui, além dessa brevíssima exposição, falarei apenas e rapidamente, do que pode ser punível, da prisão preventiva, da divisão entre direito e moral, da periculosidade como instrumento de opressão das maiorias e do perigo da legislação de emergência.Tudo muito sucintamente, com o mero propósito de suscitar a curiosidade do leitor, sobretudo em razão do momento difícil pelo qual passa a humanidade com a ascensão das teorias de defesa social. Por isso a pergunta: num estado de direito garantista, o que pode dar causa à punição? Pode-se punir o réu por um comportamento, pela sua história, por seus costumes ou por suas companhias, etc?

Já no início da obra, Ferrajoli ensina que o réu só pode ser trazido a juízo quando lhe for imputado um fato, isto é, um dado empírico verificável ou refutável, conforme a Lei de Hume, cabendo ao juiz dizer se o fato existiu e se o réu foi ou não o seu autor.
 
“Em conseqüência, como quer a primeira de tais concepções, o pressuposto da pena deve ser a comissão de um fato univocamente descrito e indicado como delito não apenas pela lei mas também pela hipótese da acusação, de modo que resulte suscetível de prova ou de confrontação judicial, segundo a fórmula nulla poena et nulla culpa sine judicio. Ao mesmo tempo, para que o juízo não seja apodítico, mas se baseie no controle empírico, é preciso também que as hipóteses acusatórias, como exige a segunda condição, sejam concretamente submetidas a verificações e expostas à refutação, de modo que resultem apenas convalidadas se forem apoiadas em provas e contraprovas, segundo a máxima nullum judicium sine probatione.”
 
Isto quer dizer que ninguém deve ser processado ou punido pelo que é (direito penal do autor), mas apenas pelo que fez.
 
“Essa fronteira, definida pelo requisito da materialidade da ação, será firmemente defendida, uma vez mais, pela Escola Clássica, diante dos ataques da Escola Positiva: contra a idéia, propagada pelos positivistas, de que os delinquentes são uma espécie dentro do gênero humano, Enrico Pessina reafirmou o princípio - mais igualitário do que liberal - segundo o qual "o homem delinque não pelo que é, senão pelo que faz."

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Não se pode, por isso, acusar alguém pelos seus pensamentos, pela sua aparência, classe social, por ser uma pessoa ruim ou perigosa:
 
“Com efeito, à diferença dos estados de ânimo ou das inclinações, as ações, tanto comissivas quanto omissivas, são acontecimentos empíricos, taxativamente descritíveis, cuja verificação é questão de fatos e não de valores, e pode ser expressada por meio de asserções verificáveis e refutáveis no sentido comentado nos parágrafos 9 e 10.”
 
E Ferrajoli adverte que contraria o princípio da estrita legalidade a criminalização dos “socialmente perigosos”.
 
“O princípio da legalidade estrita é proposto como uma técnica legislativa específica, dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e discriminatórias, as convenções penais referidas não a fatos, mas diretamente a pessoas e, portanto, com caráter "constitutivo" e não "regulamentar" daquilo que é punível: como as normas que, em terríveis ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem os "desocupados" e os "vagabundos", os "propensos a delinqüir", os "dedicados a tráficos ilícitos", os "socialmente perigosos" e outros semelhantes.”
 
Se ninguém pode ser processado criminalmente por ser perigoso, pode ser preso preventivamente por isso?

Quem leu um pouco de Ferrajoli sabe que ele, autodeclarado positivista crítico, nega validade à prisão preventiva. Segundo Ferrajoli, a prisão preventiva viola o princípio nula poena sine judicio, isto é, a necessidade de que a prisão decorra de um julgamento passado em julgado e não de mera decisão incidental em um processo. Ademais, a prisão preventiva viola o nulla poena sine crime, isto é, o princípio de retribuição, cujo sentido é de que só se prende alguém em decorrência de um crime.
 
“E é um mísero paralogismo dizer que o cárcere preventivo não contradiz o princípio nula poena sine iudicio - ou seja a submissão à jurisdição em seu sentido mais lato —, pois não se trata de uma pena, mas de outra coisa: medida cautelar, ou processual ou, seja como for, não penal. Com semelhantes trapaças nas formalidades, como veremos na quarta parte, dissolveu-se em nosso e em outros ordenamentos - a função de tutela do direito penal e o papel mesmo da pena enquanto medida preventiva exclusiva, alternativa a outras medidas certamente mais efetivas mas não tão garantistas.”
 
É verdade que o senso comum , com seus argumentos morais, aprova as prisões preventivas por periculosidade, como gente estudada tem afirmado, mas juridicamente isso é bastante equivocado.

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“A perversão mais grave do instituto, legitimada infelizmente por Carrara e antes de tudo por Pagano, foi a sua mutação de instrumento exclusivamente processual destinado à "estrita necessidade" instrutória para instrumento de prevenção e de defesa social, motivado pelas necessidades de impedir que o imputado cometa outros crimes. E claro que um argumento como esse, fazendo pesar sobre o imputado uma presunção de periculosidade baseada unicamente na suspeita da conduta delitiva, equivale de fato a uma presunção de culpabilidade; que, além disso, atribuindo à prisão preventiva as mesmas finalidades e o mesmo conteúdo aflitivo da pena, serve para privá-la daquele único argumento representado pelo sofisma segundo o qual ela seria uma medida "processual", "cautelar" ou até mesmo "não penal", ao invés de uma ilegítima pena sem juízo.”
 
Com efeito, direito e moral foram, há muito, separados, ao menos no plano abstrato.
 
“Para os nossos propósitos é mais diretamente relevante a primeira doutrina, ou seja, aquela da separação entre direito e moral, formulada pelo pensamento iluminista e posteriormente recepcionada pelo positivismo jurídico enquanto fundamento do princípio de legalidade no Estado de direito moderno”.
 
Mas as doutrinas moralistas estão por aí, às vezes sozinhas e outras misturando direito e moral:
 
“Esta ideia, como veremos no parágrafo 27, tem tido muitas e diversas versões: das doutrinas moralistas, que consideram o delito um pecado, às naturalistas, que individualizam nele um signo de anormalidade ou de patologia psicofísica do sujeito, até as pragmáticas e utilitaristas, que lhe conferem relevância somente enquanto sintoma privilegiado e alarmante da periculosidade de seu autor”.
 
Identificar um discurso moralista travestido de jurídico é fácil, porque, via de regra, seus adeptos são autodeclarados porta-vozes da sociedade. Eles sempre dizem que uma ou outra coisa não é permitida ou que a prisão é necessária, não se podendo levar a letra fria da lei à risca, porque a sociedade precisa ser protegida. E eles, claro, sabem o que é melhor para a sociedade: o senso comum. Troque sociedade por maioria e você desmascara o farsante.

O discurso de defesa social é antijurídico porque ele ignora que o núcleo primordial, o destinatário essencial da norma jurídica, é o indivíduo e não a sociedade. Esta se beneficia do respeito aos direitos individuais e, do contrário é prejudicada toda vez que eles são violados.
Não é por acaso que existem direitos individuais fundamentais. Nada pode ser construído sem fundamento, sem base, sem fundação. O respeito aos direitos fundamentais é, pois, a base para construção de uma sociedade civilizada.
 
“Um argumento no qual se baseiam muitos defensores da prisão preventiva é o clamor social originado pela ideia de que um delinqüente ainda não julgado não seja punido imediatamente. Pode ocorrer que nisso haja algo de verdade: uma parte da opinião pública seguramente associa finalidades diretamente repressivas à prisão preventiva. Mas essa idéia primordial do bode expiatório é justamente uma daquelas contra  qual nasceu aquele delicado mecanismo que é o processo penal, que não serve, como já afirmei, para proteger a maioria, mas sim para proteger, ainda que contra a maioria, aqueles cidadãos individualizados que, não obstante suspeitos, não podem ser ditos culpados sem provas.” 
 
Aliás, a razão de ser do processo penal é o indivíduo, ou estamos esquecidos do que foram as ordálias e os suplícios?
 
“Não se pode punir um cidadão só porque isso satisfaz a vontade ou o interesse da maioria. Nenhuma maioria, ainda que esmagadora, pode tornar legítima a condenação de um inocente ou sanar um erro cometido em prejuízo de um cidadão, único que seja.
(...)
Em um sistema penal garantista o consenso majoritário ou a investidura representativa do juiz não acrescenta nada à legitimidade da jurisdição, uma vez que nem a vontade ou o interesse geral e tampouco nenhum outro princípio de autoridade podem tornar verdadeiro aquilo que é falso ou vice-versa.
(...)
Ele repousa, igualmente, na necessidade de assegurar adequadamente quem se supõe desviado pela opressão da maioria não desviada, de modo que um juiz possa absolvê-lo também contra a vontade de todos.”
 
Se há um modo antigo e manjado de negar um direito é dizer que o interesse público tem que prevalecer sobre o individual ou que o direito da sociedade (leia-se, maioria) deve ser soberano. Não é fácil, porém, garantir os direitos individuais, pois nada escapa à opinião publicada pela imprensa, o que acaba por intimidar os juízes, favorecendo a tomada de decisões mais alinhadas com a moral do que com o direito.
 
“E se hoje pode-se falar de um valor simbólico e exemplar do direito penal, ele deve ser associado não tanto à pena mas, verdadeiramente , ao processo e mais exatamente à acusação e à amplificação operada sem possibilidade de defesa pela imprensa e pela televisão. Desta forma retomou-se nos nossos dias a antiga função infamante da intervenção penal que caracterizou o direito penal pré-moderno, onde a pena era pública e o processo corria em segredo penas que a berlinda e o colar de ferro hoje foram substituídos pela exibição pública do acusado nas primeiras páginas dos jornais ou na televisão, e isto não após a sua condenação mas após a sua incriminação, ainda quando o imputado é presumido inocente.”

A superexposição midiática dos réus, pobres ou ricos, virou regra há muito tempo, não só na Itália, mas no Brasil também e já não assusta mais; foi, lamentavelmente, naturalizada.

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O que assusta, hoje, nem é mais a estigmatização provocada por isso, mas a crescente legislação de emergência e intepretações de afogadilho, como respostas às demandas populistas, como o aumento da pena máxima, o tempo para progressão de regime e o acordo de não persecução penal e, agora, a tentativa de legitimação da prisão após condenação em segunda instância. A legislação de emergência contra o terrorismo, a máfia e a camorra, dos anos 80 e 90, desvirtuou o sistema penal italiano tão gravemente, a ponto de Ferrajoli entender que se tratou de uma resposta fora da lei, comparável à guerra.
 
“Em todo o caso, uma vez aberto o caminho da emergência como necessário para a defesa do Estado (contra o terrorismo e contra si mesmo), dever-se-ia ao menos ter a coragem e a honestidade de admitir que uma tal resposta ao perigo subversivo era uma resposta fora da lei, como são sempre as respostas de guerra, para não corromper desta maneira os princípios garantistas do direito penal, que é essencialmente um instrumento de paz”.
 
É claro que, como toda teoria, o garantismo penal tem limites. Ao falar sobre eles, Ferrajoli diz o óbvio, ainda não compreendido por tanta gente neste planeta, que alimenta esperanças vãs numa justiça punitivista que seja, malgrado esse grave defeito, capaz de consertar as mazelas humanas e reparar nossas misérias.
 
“Um modelo estrutural de direito penal caracterizado por alguns requisitos substanciais e por algumas formas procedimentais em grande parte funcionais a tal epistemologia: como a conseqüencialidade da pena ao delito, a exterioridade da ação criminosa e a lesividade de seus efeitos, a culpabilidade ou responsabilidade pessoal, a imparcialidade do juiz e sua separação da acusação, o ônus acusatório da prova e os direitos da defesa. Em todo caso, não garante a justiça substancial, que em sentido absoluto não é deste mundo.”
 

Cá do meu lado, fico com a letra fria da lei, porque de calor me bastam o das fogueiras da inquisição e do inferno, justiças deste, e do outro mundo.

*Edevaldo de Medeiros é juiz federal e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rogério Jordão