Uma campanha essencial para chamar a atenção para um problema complexo e urgente
Josué de Castro publicou o livro A geografia da fome em 1946. Foi a partir de sua vivência como médico no Recife que ele passou a se interessar por entender a fome. Até hoje temos dificuldade em compreender esse fenômeno complexo e assustador. Dessa maneira, foi somente quando a fome saiu da esfera individual e foi encarada como um problema político que se passou a entender melhor um dos maiores problemas da humanidade desde os tempos imemoriais.
Josué de Castro procurou entender o fenômeno da fome pensando fora dos esquemas tradicionais de associação entre fome, miséria e super população. Ou seja, para ele a fome não era algo decorrente do excesso de gente no mundo, mas era resultado da péssima distribuição de riqueza. Enquanto alguns tinham muito, muitos ficavam presos a um ciclo interminável de miséria e fome. E ele ia além afirmando que os processos de colonização e dependência econômica agravavam as crises de fome.
Logo no começo do livro “Geografia da fome” está a frase “Interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado”. A fome era um assunto tabu que ninguém queria se debruçar. Fazia pouco tempo, inclusive, que a fome havia sido incluída nos temas tratados por historiadores por causa de uma nova abordagem da história feita pela Escola dos Annales.
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Para Josué de Castro a questão da fome seria resolvida com uma melhor distribuição da riqueza, com a diminuição da desigualdade. Ele também via como fundamental para se resolver a questão da fome a distribuição de terras para pequenos agricultores – promovendo assim a reforma agrária. Era um pensamento radical para a época e ainda hoje é considerado progressista. Ele também afirmava que não porque os famintos não trabalhavam ou não queriam plantar que eles passavam fome, uma ideia comum na época. Suas teorias e sua militância contra a fome foram consideradas radicais na época. Não foi à toa que ele foi cassado pelo primeiro Ato Institucional da Ditadura Militar instaurada em 1 de abril de 1964 mesmo sendo o deputado mais votado do Nordeste pelo PTB. Para os militares não existia fome no Brasil – e muito menos vontade de diminuir a desigualdade. Pelo contrário, durante a ditadura, a miséria e a desigualdade aumentaram exponencialmente.
Josué de Castro foi embaixador do Brasil nas Nações Unidas (ONU) entre os anos de 1954 e 1958 e frequentemente discursava sobre o tema. Sua passagem pelo órgão foi marcante e criou escola. O combate à fome passou a ser uma das bandeiras da ONU, que vem alertando para o aumento da fome no mundo – segundo relatórios 1 em cada 19 pessoas passou fome no mundo em 2019. Este ano, 2020, o programa de Combate à Fome da ONU ganhou o Prêmio Nobel da Paz.
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O Brasil, graças a uma série de programas e investimentos governamentais, havia saído do mapa da fome da ONU. Mas a troca de governo em 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro interromperam uma bem sucedida trajetória de combate à fome. Bolsonaro acabou com órgãos de fiscalização e controle, inviabilizou a agricultura familiar e esvaziou as instâncias de promoção de uma alimentação saudável. Há pouco, capitaneada por uma das maiores estudiosas da obra de Josué de Castro no Brasil, Adriana Salay Leme, e inúmeros coletivos que militam pela causa contra a fome no Brasil, foi criada uma intensa campanha que está sendo promovida tanto nas redes sociais como na prática no dia a dia.
A campanha se chama “Gente é pra brilhar e não pra morrer de fome”, inspirada pela letra de Caetano Veloso. Sua face mais visível é a distribuição de alimentos para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Mas é uma campanha que vai além disso – e quer discutir o problema com a sociedade brasileira. Tem fóruns online, discussões com nutricionistas, pesquisadores, chefs, além de páginas nas redes sociais. Uma campanha essencial para chamar a atenção para um problema complexo e urgente.
Edição: Rogério Jordão