No próximo domingo (18), ocorrerá na Bolívia as eleições presidenciais. Não se trata de uma eleição qualquer. É a primeira que ocorre após um golpe de Estado que resultou no exílio do ex-presidente Evo Morales, em novembro de 2019.
Esse golpe está vinculado ao fortalecimento do conservadorismo na América Latina e à ofensiva do imperialismo estadunidense, que para garantir sua hegemonia insiste em atacar a soberania dos Estados latino-americanos. Trata-se de um ataque, portanto, que se soma às sanções dos Estados Unidos à Venezuela e às demais iniciativas que tem como objetivo destruir as experiências de resistência do povo latino-americano.
Por isso, é importante estarmos de olho nos próximos acontecimentos políticos na Bolívia. Ela pode representar a vitória da esquerda ou o aprofundamento do projeto da burguesia boliviana que está associada aos interesses do imperialismo no país.
Além disso, é uma peça chave no tabuleiro da política regional, tendo em vista que é o primeiro processo eleitoral entre muitos pleitos que ocorrerão nas próximas semanas: o plebiscito no Chile (25 de outubro), as eleições nos Estados Unidos (3 de novembro) -- que, a depender do resultado, terá muitas consequências para a América Latina -- e as eleições legislativas na Venezuela (6 de dezembro).
Retomando o fio dos últimos acontecimentos na Bolívia
A experiência do governo bolivariano conduzido pelo presidente Evo Morales, desde 2006, representou um avanço na diminuição da desigualdade e na construção da soberania do povo boliviano. Foi o primeiro presidente indígena a ser eleito em um país cuja população é majoritariamente indígena.
Morales foi eleito em um contexto da ascensão de diferentes líderes progressistas na América Latina, que alguns intelectuais chamam de “onda rosa”. Na Bolívia, a partir da nacionalização dos hidrocarbonetos, Evo Morales impulsionou um processo de ampla transformação do país. De 2006 até 2019, a pobreza foi reduzida de 60% para 35%, a taxa de expectativa de vida aumentou em nove anos e o analfabetismo foi erradicado
A nacionalização dos recursos naturais e das empresas estratégicas não agradou nem a burguesia do país, nem as empresas multinacionais. A burguesia boliviana vinculada ao imperialismo, sempre se movimentou com o intuito de deslegitimar e desestabilizar o governo.
Destacamos aqui a burguesia do departamento de Santa Cruz que sempre se opôs ao governo Morales e a tudo o que este representou nos avanços para o povo boliviano. Santa Cruz está entre os três departamentos mais populosos do país e concentra grande parte da produção de riqueza nacional (produção de soja, cana-de-açúcar e pecuária). Dessa forma, a maior oposição ao governo Morales era protagonizada pela burguesia de Santa Cruz.
Além disso, a experiência do Estado plurinacional da Bolívia, sob o comando de Evo Morales, esteve sempre sob os olhares da águia imperialista. Em 2008, o embaixador estadunidense Philip Goldberg teve a missão de insuflar levantes separatistas com foco em gerar instabilidade e incentivar a divisão do país. Na ocasião, Morales expulsou o embaixador do país junto com a DEA e a Usaid (agências do governo dos Estados Unidos). Como na tentativa anterior, também em 2019, o golpe teve ativa participação do imperialismo estadunidense.
E como os Estados Unidos contribuíram para o golpe na Bolívia? Como diria Vijay Prashad: “as balas de Washington são lisas e perigosas. Elas intimidam e criam lealdades através do medo”. É necessário mobilizar diferentes frentes para criar um ambiente de instabilidade política nacional e, assim, legitimar um golpe descrito de outra forma como “levante popular” ou como “um passo necessário para restabelecimento da democracia”.
Na Bolívia não foi diferente. Além de mobilização da burguesia conservadora associada aos interesses do imperialismo, utilizam-se as organizações internacionais e o isolamento diplomático como recurso para gerar instabilidade no país. No golpe na Bolívia, a Organização dos Estados Americanos (OEA) cumpriu importante papel, ao declarar fraudulentas as eleições presidenciais de outubro de 2019, sem ter evidências para basear essa análise, apesar de o resultado garantir a vitória de Evo Morales, que havia sido eleito para seu quarto mandato.
A partir de então, até 10 de novembro, dia em que Morales foi obrigado a renunciar, as ruas do país passaram por momentos de muita tensão e violência. Carlos Mesa, após perder as eleições, pediu “protestos permanentes da população”. Nesse contexto, também destacou-se a figura de Fernando Camacho, que era presidente do Comitê Cívico Pró-Santa Cruz, mas que até aquele momento não tinha expressão política em outras regiões do país. No processo do golpe, Camacho é a síntese do fundamentalismo religioso: conservador, machista e racista.
Assim, os dias que antecederam a destituição de Morales foram marcados por violência direta, com incêndio a prédios públicos, além de ameaça e tortura de militantes e trabalhadores vinculados ao partido de Evo, o Movimento ao Socialismo (MAS), que contou com conivência da polícia e do exército.
As ações que levaram ao golpe na Bolívia se assemelham muito às guarimbas organizadas pela oposição na Venezuela para desestabilizar a Revolução Bolivariana, porque contam com forte influência dos Estados Unidos e presença, entre outros agentes, como ONGs estadunidenses que se autoproclamam “promotoras da democracia”.
Um elemento diferenciador e que diz muito sobre o caráter do golpe foi a alusão a símbolos cristãos e ao fundamentalismo religioso. Esse traço assemelha-se aos valores reivindicados pela base do bolsonarismo no Brasil e demonstram que há interfaces do golpe na Bolívia com o reascenso do conservadorismo em diferentes países da região latino-americana.
Elemento central para o golpe foi o posicionamento dos militares. Após a declaração pública do general Williams Kaliman, exigindo a saída do então governo, Evo Morales, Alvaro Garcia Linera (vice-presidente), o presidente da Câmara de Deputados e a presidente do Senado, Adriana Salvatierra, renunciaram.
Em meio às irregularidades, a segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez se autoproclamou presidente interina, defendendo uma agenda conservadora. O período de sua presença na presidência é marcado por xenofobia e por perseguição política à ex-funcionários do governo Morales.
Áñez dizia que assumiria a presidência apenas para convocar novas eleições. Não foi o que ocorreu, pois muitas leis foram alteradas nesse período do governo ilegítimo de Áñez, como a privatização de empresas e a autorização para importar produtos que antes eram proibidos, como transgênicos, por exemplo. O Tribunal eleitoral anulou a votação de outubro de 2019 e anunciou novas eleições, que foram prorrogadas quatro vezes e, finalmente, ocorrerão agora no dia 18 de outubro.
Nessas eleições, estão em jogo as conquistas do povo boliviano
O cenário das eleições presidenciais na Bolívia é de intensa polarização. Segundo as pesquisas, disputam a liderança Luis Arce, ex-ministro da Economia do governo Morales e candidato pelo Movimento ao Socialismo (MAS), e Carlos Mesa, pelo partido Comunidad Ciudadana, que perdeu ao concorrer nas últimas eleições de 2019.
Além de Mesa, há outras candidaturas de direita que fazem clara oposição ao MAS. Entre elas, nas últimas semanas, Jeanine Áñez - em 17 de setembro – e Jorge "Tuto" Quiroga – em 11 de outubro - retiraram suas candidaturas. O argumento: unidade para derrotar o MAS. Além dessas, também há a candidatura de Luis Fernando Camacho, pela aliança Creemos de extrema-direita, que ganhou destaque nas manifestações violentas pró-golpe em 2019. Camacho aparece em terceiro lugar nas últimas pesquisas.
Nessas eleições, está em jogo, por um lado, o aprofundamento da entrega das riquezas nacionais ao imperialismo e o retrocesso frente às conquistas que o povo boliviano obteve nos últimos catorze anos. Por outro, caso Arce saia vitorioso, vislumbra-se a possibilidade de retomada de uma agenda de promoção de direitos e soberania que vinha sendo construída por Morales.
É importante observar a existência de denúncias de irregularidades na condução desse processo eleitoral. Além disso, nessas eleições persiste a tática da direita de perseguir e criminalizar as lideranças de esquerda boliviana. O objetivo é desgastar a candidatura do MAS e inviabilizar a vitória de Arce.
Diante desse cenário turbulento, é essencial que a comunidade internacional acompanhe de perto o processo eleitoral boliviano para garantir o direito do povo ao voto, o resultado justo do pleito e evitar, assim, que mais um golpe ocorra no país. Está em jogo, mais do que nunca, o futuro da democracia boliviana.
*Mariana Davi Ferreira é cientista Social, internacionalista e militante do Levante Popular da Juventude.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas