Educação

Roraima: abandonados pelo governo, indígenas decidem construir sua própria escola

Após 30 anos de espera, comunidade se mobiliza para ter salas de aula "com paredes"

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Malocão de reunião foi adaptado e hoje também serve como sala de aula para crianças e adolescentes - Jefferson Ferreira

Você consegue imaginar uma escola sem paredes? Ignorados pelo governo estadual de Antonio Denaruim (sem partido), essa é a realidade vivida por milhares de estudantes em Roraima. Das 32 escolas criadas e credenciadas pelo Estado na Terra Indígena São Marcos (região norte), 18 atendem estudantes do ensino médio e, destas, apenas cinco têm prédios construídos. 

Uma das escolas "sem paredes", na comunidade de Maruwai, município de Pacaraima, na Terra Indígena de São Marcos, conta com 82 crianças e adolescentes. A Escola Estadual Indígena José Joaquim fica localizada a 150 km da capital Boa Vista e também a 150 km de Pacaraima, cidade que faz fronteira entre Brasil e Venezuela

Fundada em 1987, inicialmente a escola recebeu o nome de Elias Fraxe e atendia 20 alunos entre a 1ª e a 4ª séries. Em 2004, a instituição passou a se chamar Escola Estadual Indígena José Joaquim, em homenagem a um dos fundadores da comunidade. Atualmente, atende alunos do ensino fundamental ao médio.

Até hoje, porém, não existe uma estrutura fixa para a instituição de ensino. A comunidade conta com barracões construídos pelos moradores e tem sete salas de aulas improvisadas. A estrutura não tem paredes, o que dificulta a concentração dos estudantes e impede as aulas durante os períodos de chuva. 


Área do posto de saúde que serve como sala de aula improvisada / Jefferson Ferreira

O único prédio com paredes é o posto de saúde, que também é utilizado como sala de aula improvisada pelos moradores da comunidade. Um laboratório de informática com dez computadores com acesso à internet também está, teoricamente, à disposição dos estudantes. Mas pela falta de estrutura adequada não é possível ter um bom atendimento aos alunos. 

A cozinha da comunidade também foi adaptada para que pudesse ser usada como sala de aula. Há cadeiras, mas não há suporte ou mesas para que todos os estudantes apoiem cadernos e livros. 


Cozinha da comunidade virou sala de aula improvisada / Jefferson Ferreira

Localizados no centro da comunidade, os barracões de telhado de palha ficam expostos durante todo o dia a barulhos do cotidiano, como máquinas, motosserras, roçadeiras e tratores. 

Além das chuvas e do barulho externo, os educandos também sofrem com as pragas que, ano a ano, atingem a comunidade. Pium, carapanã e maruim são comuns na região.

A falta de estrutura torna o trabalho inviável para os professores e atrapalha o aprendizado dos 36 alunos do ensino fundamental I, 35 do fundamental II e 11 do ensino médio. As turmas são multisseriadas, ou seja, há apenas uma professora para alunos de diversas séries.  


Sala de aula de estudantes adolescentes da comunidade / Jefferson Ferreira

Além da falta de estrutura física, hoje a escola tem escassez de materiais e livros didáticos atualizados para todas as séries; não há funcionários na secretaria nem merenda escolar todo mês. 

Há mais de 30 anos, os moradores cobram o básico do governo: uma escola como qualquer outra.

"Esperamos que a nossa solicitação e o nosso sonho de muito tempo venha se concretizar, com a tão esperada construção do prédio escolar completo com sete salas de aulas, diretoria, secretaria, copa, cozinha, biblioteca, sala de leitura, laboratório de informática com computadores, internet, sala de professores e miniauditório para reuniões. Que tenhamos materiais didáticos, materiais escolares, materiais permanentes, livros didáticos, merenda escolar e transporte escolar. Também é necessário ter pessoal de apoio, como merendeira, zelador e secretário. Enfim, uma escola toda climatizada e com banheiros", diz um relatório sobre a comunidade, elaborado pelos moradores. 

Jefferson Ferreira, da etnia Makuxi, é presidente da Associação dos Povos Indígenas de Roraima (APIRR). Professor e estudante do curso de Licenciatura Intercultural pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), ele explica que a comunidade se sente abandonada pelos governos municipal, estadual e federal. 

Sobre o governo estadual, conta que apenas os professores são disponibilizados pelo Estado, ainda assim de forma precária. “O que ele tem nos dado aqui é o apoio com recursos humanos. São profissionais com contrato temporário. Apenas três professores efetivos. Todo ano tem seletivo e as aulas sempre começam atrasadas”, diz Ferreira.

Sem a escola,

nós estamos abandonados

Jeans da Silva, da etnia Makuxi, tem 43 anos e também é morador da comunidade Maruwai. Pai de crianças e adolescentes, ele sonha com a escola para que seus filhos possam ter uma formação de qualidade. "A escola é importante para as crianças porque é da escola que temos os nossos futuros, da escola que vai sair doutores, enfermeiros, médicos, advogados, professor, grandes lideranças e outros profissionais. Tudo passa pela escola. Sem a escola, nós estamos abandonados. Hoje a construção da escola é de suma importância para nossa comunidade", explica.


Sala de aula, diretoria, secretaria e biblioteca improvisados pelos moradores da comunidade / Jefferson Ferreira 

A questão dos profissionais da educação também é marginalizada pelo governo estadual, segundo Jeans: "Não há espaços para os professores desenvolverem suas atividades pedagógicas e educacionais. Não temos apoio de nada, temos apenas os professores do quadro temporário e isso é uma  grande dificuldade para desenvolvermos as atividades todos os anos. Não tem concurso, o último aconteceu em 2002. Teve outro em 2008, mas não foi específico para os povos indígenas". 

Não há espaço para os professores desenvolverem suas atividades

"Dessa maneira não vamos avançar com a educação, não vamos ter educação de qualidade que nós tanto esperamos e sonhamos. Atualmente a nossa escola esta abandonada pelo Estado, pelo Município e pela União. Não temos materiais didáticos, não temos materiais de secretaria, não temos espaços físicos. As escolas das comunidades são construídas com cobertura de palha. O Malocão feito pela comunidade para fazer suas reuniões é aproveitado como sala de aula", detalha Jeans. 

A construção da nova escola

Sem ter as demandas atendidas pelo governo estadual, os moradores decidiram construir a escola por conta própria. Todas as 40 famílias que moram na comunidade estão participando da obra, que começou há 6 meses. A meta é que o prédio esteja pronto até o final de 2020.


Mães e pais reunidos no prédio que estão construindo para a nova escola, agora com parede e telhado resistentes / Jefferson Ferreira

 Ivanete Silva dos Santos, também da etnia Makuxi, é mãe de uma adolescente de 15 anos e está diretamente envolvida na construção da escola. 

Cansada de ver os cadernos do filho molharem durante o período de chuvas, se juntou aos demais moradores para erguer a escola nunca construída pelo governo estadual. 

Valdinei da Silva Oliveira tem 58 anos e é da etnia Wapichana. Ele explica que só não está todos os dias trabalhando na construção da escola porque não é sempre que tem material para a construção. O telhado está inacabado por falta de telhas para a cobertura. A falta de cimento, portas e janelas também está atrasando a entrega do prédio. 

Temos profissionais formados e esperamos o concurso público

"Sou pai, construtor e professor daqui. Essa escola foi fundada em 1987 e até hoje não recebeu nenhuma construção que é da competência do governo. Hoje já temos profissionais formados e estamos esperando o concurso público", explica Valdinei. 


Construção da escola deve acabar no final de 2020. Enquanto isso, as aulas são dadas no malocão / Jefferson Ferreira

Falta de estradas e pontes deixam os moradores ilhados

As estradas e pontes que dão acesso à comunidade estão em péssimas condições, o que atrapalha a chegada da merenda escolar e dos materiais de construção para a escola, além de dificultar a vida dos professores, que precisam viajar 150 km até Boa Vista para receber o salário. Com a precariedade, o transporte escolar tem muita dificuldade de acessar a comunidade e a demora na volta dos professores para o território acaba atrasando a continuidade das aulas. 

A comunidade também se preocupa com os professores que não tem qualquer segurança para buscarem os salários na capital do estado. 

O governo nunca fez um levantamento das nossas demandas e produção nas comunidades

“O governo diz que não constrói estradas e pontes porque os indígenas não tem produtos agrícolas para o escoamento. Mas isso não é verdade. O governo nunca fez um levantamento das nossas demandas e da nossa produção nas comunidades” explica Jefferson Ferreira, presidente da APIRR.

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Segundo ele, o governo não constrói as estradas e pontes por conta de interesses outros, já que na região há feiras todos os anos - tanto no Baixo quanto no Médio e Alto São Marcos - onde são vendidos produtos agrícolas das comunidades indígenas da região. 

Jeans explica que para chegar a Boa Vista é preciso atravessar o Rio Uraricoera, que liga Maruwai à capital de Roraima de balsa, o que segundo ele é um transtorno. O trajeto conta com um trecho de balsa; travessia da Ponte do Maruwai que está numa situação precária; e travessia por um igarapé sem ponte, passando pela Comunidade Pato. “Quando a balsa quebra nós ficamos ilhados por meses. No período do inverno ficamos isolados porque onde moramos é de difícil acesso”, explica Jeans.

Merenda escolar

“A merenda escolar não tem chegado de forma correta, recebemos apenas alguns itens. Quando vem frango, não tem feijão, não tem arroz. Quando vem arroz, falta leite, falta macarrão. Vem sardinha que é enlatado e isso não é alimento saudável para nossas crianças. Sempre vem faltando algo para complementar a merenda escolar. Às vezes chega verdura toda machucada e sem condições de aproveitamento”, conta Jeans, pai de crianças e adolescentes que estudam na escola. 

Governo Federal

“O governo federal de Jair Bolsonaro quer tirar o recurso do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB) para investir em ação social. Eu não concordo porque é pouco dinheiro para investir na educação, não temos dinheiro para comprar merenda, para pagar o professor, e nem pra construir, o governo quer tirar 5% do FUNDEB nacional para pagar bolsa família. Não concordo”, pontua Jeans. 

Jefferson Ferreira, da APPIR, também discorda das políticas implementadas pelo governo de Jair Bolsonaro. “Sobre os professores do processo seletivo, o governo Bolsonaro aprovou lei, que trata da reforma administrativa, onde congela os investimentos e salários dos trabalhadores. Esperamos o concurso público específico e diferenciado para os professores indígenas. Mas desse jeito, acho que nunca vamos conseguir com tantas aprovações no congresso contra os profissionais da educação. Isso vai impactar o nosso estado e o nosso país”, desabafa. 

“O governo federal quer acabar com os direitos dos povos indígenas, tudo que conquistamos como nosso direito, o governo federal quer acabar. Está fazendo de tudo para tirar aquilo que é nosso garantido em lei”, finaliza o presidente da APIRR.

Vai ter um colapso na educação escolar indígena

As entrevistas levaram quase um mês para serem feitas e enviadas já que as condições de internet na comunidade são muito precárias. Jeans, emocionado, desabafa para a reportagem do Brasil de Fato ao fim da conversa: “O Estado de Roraima está abandonado na educação. Daqui mais uns anos vai ter um colapso na educação escolar indígena se não cuidarmos enquanto é tempo". 

Nota da Secretaria de Educação e Desporto de Roraima

Procurada para responder ao teor da reportagem, a Secretaria de Educação e Desporto de Roraima enviou uma nota para o Brasil de Fato, informando que "a educação indígena tem suas peculiaridades, dentre elas, o direito de a comunidade indígena definir sobre a abertura e formalização de uma escola, independente de haver uma unidade já em funcionamento próximo à comunidade. Esse é o caso da Escola Estadual Indígena José Joaquim, localizada no município de Pacaraima".

Segundo a Secretaria, à época da criação da escola, "a comunidade solicitou, mesmo sabendo da dificuldade em obter de imediato um prédio escolar. Hoje a unidade de ensino atende a 80 alunos no Ensino Fundamental Anos Iniciais (1° ao 5° ano) e Anos Finais (6° ao 9° ano). E tem 15 professores que lecionam o conteúdo estabelecido na legislação educacional vigente e seguem as diretrizes da educação nacional".

E prossegue a nota oficial: "Em relação à estrutura física, a Seed informa que o Governo de Roraima está trabalhando para mudar a realidade dos prédios escolares da rede estadual de ensino tão necessitados de reformas, reparos e manutenção. Esse é o caso da Escola Estadual Indígena José Joaquim. Será feito o levantamento da necessidade de estrutura física, mobiliária e de equipamentos em geral para serem adotadas as medidas, como abertura de processo, por exemplo".

Sobre a falta de merenda escolar, a nota da Secretaria diz que Roraima, por conta da pandemia de Covid, segue com aulas remotas, e que "em período de aula regular, a merenda escolar é a mesma ofertada a todos os estudantes da rede, com o envio de gêneros não perecíveis e produtos da agricultura familiar para o preparo da alimentação escolar".

Edição: Rogério Jordão