Solidariedade

Combater a fome e nutrir a resistência: movimentos doam marmitas no Paraná

Ação aconteceu em Campo Magro, na sexta (16), e marcou o Dia Mundial da Alimentação

Curitiba (PR) |

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Campo e cidade protestam contra a fome, em ação de doação de 3 mil marmitas em Campo Magro, no Paraná - Giorgia Prates

Das mãos calejadas de camponeses assentados e acampados da Reforma Agrária, passando pelos mutirões de dezenas de voluntários e militantes de cozinhas comunitárias, até chegar a quem está na luta por moradia e vida digna na cidade. Esse foi o caminho percorrido pelos alimentos que rechearam as três mil marmitas e mil pães caseiros distribuídos na comunidade Nova Esperança, em Campo Magro (PR), na sexta-feira (16).

Na data que marca o Dia Mundial da Alimentação, a mobilização buscou saciar a fome e também nutrir a resistência e a solidariedade entre campo e cidade. A iniciativa partiu do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Sindicato dos Petroleiros do Paraná e Santa Catarina (Sindipetro-PR/SC), Movimento Popular por Moradia (MPM) e da ação Marmitas da Terra.

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A maior parte dos ingredientes do cardápio veio de comunidades do MST com produção orgânica, especialmente da região sul. São elas o acampamentos Maria Rosa do Contestado e Padre Roque Zimmermann, de Castro; acampamento Emiliano Zapata, de Ponta Grossa; e acampamento Reduto de Caraguatá, de Paula Freitas; e assentamento Contestado.

A ação integrou uma jornada nacional de mobilizações para denunciar a volta da fome, o aumento no preço dos alimentos, a política genocida e os vetos do governo Bolsonaro (sem partido) à Lei Assis Carvalho (PL 735), que busca garantir a produção de alimentos pela agricultura familiar e camponesa.


3 mil marmitas e mil pães caseiros foram distribuídos na comunidade Nova Esperança, em Campo Magro (PR) / Thea Tavares

Por um “sistema solidário”

Com diferentes sotaques, cores, bandeiras e ritmos, a diversidade cultural e de crenças religiosas coloriram o ato realizado antes da distribuição das marmitas. E não poderia ser diferente. Quase metade das 1,2 mil famílias da comunidade Nova Esperança são de imigrantes haitianos, venezuelanos e cubanos.

O "palco" da ação foi em frente a uma arquibancada em forma de meia-lua, rodeada de araucárias, com degraus nas cores vermelho e branco, pintados dias antes por um coletivo de jovens da comunidade. Ao centro, uma grande mesa com os pães, verduras, bandeiras de diversas nacionalidades e movimentos, além de uma bíblia.

"Isso aqui não é mercadoria, isso aqui não é negócio e não pode ser um bem só dos ricos do mundo. Tudo que existe no universo, a terra, a água, as árvores, são bens comuns de todos os povos do mundo, também não podem ser propriedades só dos ricos”, enfatizou Roberto Baggio, da direção nacional do MST, referindo-se aos alimentos expostos durante o ato e às marmitas produzidas com produtos da Reforma Agrária. 


A maior parte dos ingredientes do cardápio veio de comunidades do MST com produção orgânica / Giorgia Prates

Padre Valdecir Badzinski, secretário-executivo do Regional Sul 2 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), esteve entre o grupo de religiosos a abençoar os alimentos. “Aqui nós encontramos pessoas trabalhadoras, batalhadoras, que buscam o seu alimento. Nós estamos num contexto de país e mundo em que sofremos tanto, não pela falta do que é exagero, mas pela falta do essencial”, afirmou, referindo-se aos moradores da comunidade.

O representante da CNBB fez referência à última encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti, em que propõe a solidariedade, o cuidado com a terra, com os alimentos e com a preservação desses recursos, e uma nova matriz energética sustentável pós petróleo. “A carta faz toda uma reflexão sobre um sistema vigente, criticando de certa forma o neoliberalismo, o capitalismo, as ganâncias, e dizendo que nós devemos ser comunidades de irmãos".

Segundo o padre, o Papa baseia-se em São Francisco de Assis, que há 800 anos falava sobre a importância de comunidade e de correlação entre o ser humano e a natureza, chamando a natureza de irmã. “Por isso que o Papa diz que precisamos reger um sistema com solidariedade, com fraternidade, com amor, com proteção, dentro do arcabouço chamado ‘casa-comum’”, completou.

Também participaram da bênção dos alimentos o pastor Mike Vieira da Silva, da igreja evangélica Congrega Church; padre George, missionário comboniano; reverendo Glauber, da Igreja Anglicana; irmãs apóstolas do Sagrado Coração de Jesus, Elizangela Rosa Martins e Irmã Jussara Rodrigues; padre Lionel Togo, missionário comboniano; pastor Valter, da Igreja Luterana; pastor haitiano Fely Mareochee.

O trecho bíblico em que o apóstolo Mateus narra o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes foi escolhido como leitura do ato inter-religioso. A escolha fez referência à união dos camponeses e camponesas sem-terras, dos petroleiros e de trabalhadores de diversas categorias em mutirão contra a fome. 


Bênção dos alimentos e ato inter-religioso marcaram a ação / Giorgia Prates

Organização popular para superar a fome

Cada marmita também carregou a denúncia do aumento da fome no Brasil e no mundo. Até o final do ano, o total de brasileiros a conviver diariamente com a fome será de 14,7 milhões, segundo estimativas do Banco Mundial. Os números já eram preocupantes antes da pandemia da covid-19: nos últimos cinco anos, três milhões deixaram de ter acesso regular à alimentação, chegando a 10,3 milhões de brasileiros, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Moradora da comunidade Nova Esperança, Juliana dos Santos Inácio, de 35 anos, relatou como percebe a piora das condições de vida na vizinhança: “Tem muitas famílias que passam necessidade de alimentação por falta de emprego. Muitos pais não têm o que dar pro filho hoje”, contou, enquanto preparava parte dos 130 quilos de arroz vindos de uma cooperativa do MST e que mais tarde fizeram parte das marmitas.

Juliana e os oito filhos vivem na comunidade desde o início da ocupação, em março deste ano. Desempregada desde o começo da pandemia do coronavírus, ela produz pão caseiro, molho de pimenta e o doce ‘cueca virada’ para vender na própria comunidade e driblar a falta de renda fixa. “Pra mim está bem difícil. Se não fosse essa comunidade pra eu morar, não sei o que seria de mim e da minha família”, desabafou.     


"Se não fosse essa comunidade pra eu morar, não sei o que seria de mim e da minha família", disse Juliana, moradora da Nova Esperança / Giorgia Prates

Junto a Juliana, um grupo de aproximadamente dez pessoas - a maioria mulheres -, preparou uma parte dos alimentos que rechearam as quentinhas distribuídas naquele dia. A outra parte saiu das panelas da ação Marmitas na Terra, iniciada pelo MST em maio e com produção semanal de 700 a mil refeições, todas as quartas-feiras. O público do projeto são pessoas em situação de rua e moradores da periferia da grande Curitiba.

Flávio José Aparecido de Carvalho, de 51 anos, está em situação de rua há três anos e recebeu uma marmita na Praça Rui Barbosa, centro de Curitiba, no início de setembro. Neste mesmo dia, ofereceu-se para ser voluntário. “É muito importante participar e estar aqui fazendo o que fizeram pra mim”, contou.

“Eu já passei muita fome na minha vida, e agora eu estou vendo que tem muita gente naquela situação que eu já passei. Hoje eu estou podendo colaborar pra que algumas não sintam fome. Enquanto eu tiver força, eu vou participar”, garantiu.

Seu Flávio é um dos mais de 100 voluntários da Marmitas da Terra, que ao todo já distribuiu 24.860 refeições desde maio. Mutirões de colheita de alimentos doados pela agricultura familiar e de plantio no assentamento Contestado, na Lapa, também estão entre as ações do grupo. 


Flavio, Voluntário da Ação Marmitas da Terra / Ednubia Ghisi

Saúde Popular

Uma horta medicinal em formato de mandala também ganhou forma na comunidade a partir de mudas preparadas e doadas por mulheres do Setor de Saúde do assentamento Contestado. O trabalho começou no dia 11, a partir da orientação de militantes do MST, e vai continuar a partir do envolvimento da comunidade.

Liane Franco, integrante do Setor e Saúde do MST e produtora agroecológica do assentamento Contestado, propõe a construção de hortas medicinais em todas as comunidades. Com o uso das hortas, é possível prevenir e ter "primeiros-socorros" naturais para tratar doenças, sem sair de casa: “Ainda mais agora nesta pandemia, que quanto mais cuidado e menos sair pra cidade pra comprar remédio, melhor”, disse Liane.

O setor de saúde também preparou 700 embalagens de mel com açafrão para doar a famílias da Nova Esperança. Produzido com produtos do próprio assentamento, o composto é ótimo para imunidade.

Outras ações no Paraná

No norte do estado, sete assentamentos e acampamentos da Reforma Agrária doaram 4,8 toneladas de alimentos (4.800 quilos) e 320 litros de leite integral para famílias em situação de vulnerabilidade de Londrina e Bela Vista do Paraíso. Parte dos alimentos compôs o cardápio de 400 marmitas produzidas pelo Levante Popular da Juventude, também em protesto contra a fome.


Regiões norte e sudoeste do Paraná também tiveram ações de solidariedade / Giorgia Prates

Já na região sudoeste, entidades e movimentos do campo e da cidade arrecadaram 2,5 toneladas de alimentos, distribuídas a cerca de 100 famílias. A ação teve participação do Fórum Regional das Organizações e Movimentos Populares do Campo e da Cidade do Sudoeste do Paraná e outras organizações sindicais, populares e estudantis ligadas ao comitê Resistência e Solidariedade.

Fonte: BdF Paraná

Edição: Lia Bianchini